A psicanálise deve reinventar-se para sobreviver, diz Roudinesco em conferência na Argentina

A psicanálise deve reinventar-se para sobreviver, diz Roudinesco em conferência na Argentina
A psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco (Régis Filho)

 

Desde o dia 4 de setembro, a Biblioteca Nacional da Argentina abriga o Centro Argentino de História da Psicanálise, Psicologia e Psiquiatria. Trata-se de um arquivo que, ao reunir manuscritos, cartas, fotografias e obras de nomes importantes da psicanálise naquele país, pretende se tornar uma referência em pesquisas fundamentadas sobre a história dessa prática que é tão difundida na Argentina.

“Aqui há mais psicólogos que dentistas, deve ser o único país do mundo em que a saúde mental importa mais que a saúde dental”, disse o diretor do “Centro Psi”, Alejandro Dagfal, ao Clarín, lembrando que a Argentina é o país com a maior concentração de psicanalistas no mundo: são 145 profissionais para cada 100 mil habitantes. Em Buenos Aires, há um psicólogo para cada 120 pessoas – sendo que 90% desses profissionais possuem orientação psicanalítica.

A inauguração do espaço contou com a presença da historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, que durante a conferência “A psicanálise como revolução do íntimo” afirmou que a prática deve reinventar-se para não correr o risco de desaparecer “em uma era que relegou o psíquico e a palavra para exaltar o químico”.

Na ocasião, Roudinesco criticou o avanço de psicoterapias alternativas, que em sua visão “residem na ideia de que a vontade individual é mais potente que o peso do passado e determina o destino do sujeito”, além de estarem ligadas a processos de medicalização.

“Passamos, assim, de uma situação histórica onde a psicanálise oferecia meios para curar sua subjetividade desfeita para um estado globalizado em que o sujeito, convertido em um depressivo, já não quer saber o que se passa em seu inconsciente. Este sujeito pós-moderno reivindica práticas sexuais, experiências individuais e desempenhos, e não uma subjetividade, como pensa a psicanálise: os pacientes de hoje passam trinta anos provando um pouco de tudo, se enchem de terapias e voltam ao divã sem ideia de quem são”, disse. “Reprovam a psicanálise por nem sempre oferecer uma cura rápida, mas esses tratamentos superficiais legaram apenas promessas de felicidade.”

Frente a isso, defendeu que a psicanálise deve voltar a Freud e mudar o modo de formação dos terapeutas, que deveriam receber os pacientes cara a cara (e não deitados em um divã) e tratar qualquer pessoa, sem distinções. Também ressaltou a necessidade de a comunidade psicanalítica reformular seus enfoques históricos por meio de um diálogo com outras áreas do conhecimento, como a história, a filosofia e as ciências sociais.

“Centro Psi”

No Centro Psi, já estão guardados e disponíveis para consulta pública documentos que retomam a história da psicanálise argentina, como livros e documentos dos psicanalistas Arnaldo Rascovsky, Enrique Butelman, José Bleger e Oscar Masotta – conhecido por espalhar o pensamento lacaniano entre os falantes de castelhano. “Lacan está mais vivo na Argentina do que na França”, brincou Alejandro Dagfal em entrevista ao Clarín.

Há, também, doações privadas recentes, como a biblioteca pessoal de Celes Cárcamo, um dos fundadores da Asociación Psicoanalítica Argentina e difusor das ideias da filha de Sigmund Freud, Anna Freud, no país – todo o material do autor foi cedido ao Centro por María Cárcamo, sua filha.

Para evitar que o conhecimento fique restrito a psicanalistas de formação, o arquivo inclui também documentos de não-psicanalistas, como o jornalista Rodolfo Walsh, o líder esquerdista John William Cooke e o escritor e historiador David Viñas, por exemplo, que se debruçaram sobre o tema ao longo de suas vidas.

Isso porque, além de promover investigações sobre a história da psicanálise – e preservá-la em um só lugar -, o Centro deve fazer um esforço para difundi-la ao público leigo, que não necessariamente teve contato acadêmico com o tema, mas que se interesse por conhecê-lo de forma mais aprofundada.

Para Roudinesco, essa popularização de arquivos sobre psicanálise é fundamental para aprofundar os debates sobre doenças mentais, que crescem mundialmente, e para evitar que elas sejam tratadas como simples problemas químicos ou de fácil solução: “A psicanálise viveu muito tempo com a ideia de que tudo era psíquico, e agora, vive achando que tudo é químico. Isso necessariamente precisa ser reformulado”, disse ao jornal argentino Télam.

A única saída para a angústia, na visão da autora, é uma análise mais profunda – a psicanálise. “Essas terapias alternativas são resultado de uma época marcada pela individualidade narcisista, que se define pelo culto à felicidade, pelo interesse extremo pelo corpo, pela busca da saúde perfeita e pela superação de qualquer frustração sexual”, disse, na conferência que ministrou. “Todos os historiadores já notaram que substituímos Édipo por Narciso.”

(6) Comentários

  1. Excelente! Precisamos manter diálogo com outros saberes, para desmistificar a crença da felicidade através de medicamentos ou culto ao corpo

  2. Infelizmente a procura é maior por tratamentos superficiais que legam apenas promessas de felicidades e autoperforma.

  3. Concordo com autora,pois esse mundo globalizado de prazeres momentâneo os quais lhe causaram frustrações problemas de saúde,necessitam de um novo olhar ,onde deve ter outras interações se comportamentos os quais possam contribuir para a recuperação do sujeito de forma mais adequada.

  4. Muito bom texto sem dúvida é preciso pensar em formas de tornar a psicanálise mais acessível ao olhar leigo da comunidade.

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