A primeira mulher a traduzir ‘Odisseia’ para o inglês em 400 anos

A primeira mulher a traduzir ‘Odisseia’ para o inglês em 400 anos
Emily Wilson, 46, já traduziu uma seleção de peças de Sêneca e quatro peças de Eurípedes (Foto Michael Bryant / Divulgação)

 

Desde a primeira versão em 1615, o poema épico Odisseia teve 60 diferentes traduções para o inglês – metade delas no último século e uma dúzia nos últimos 20 anos. No início do mês, Emily Wilson, 46, professora de Letras Clássicas da Universidade da Pensilvânia, tornou-se a primeira mulher em 400 anos a verter a obra para o inglês.

Segundo o New York Times, que publicou um longo perfil de Wilson às vésperas do lançamento do livro, trata-se de uma tradução radical, com alterações em cenas chaves jamais sugeridas por outros estudiosos. Mudanças pequenas, mas decisivas, de acordo com o jornal.

A primeira delas está logo na primeira linha do livro, quando o narrador caracteriza Odisseu, o protagonista, como um homem polytropos. Do grego, poly significa “muitos”, e tropos tem raízes em “verter” e “virar”. A palavra sugere ambiguidade: pode representar tanto alguém confuso, que dá muitas voltas, como a sagacidade de um homem assertivo, que tem o controle sobre qualquer situação.

Regra geral, tradutores costumam optar pela segunda opção: Odisseu é comumente interpretado como um homem sagaz, sábio e heroico – raramente confuso ou desorientado, características que a palavra também pode sugerir. Apenas dois tradutores, T.S. Norgate e Albert Cook, preservaram a dualidade do significado de polytropos, traduzida por Emily Wilson como “complicado” – substantivo derivado do verbo latim complicare, que significa “dobrar”.

A tradutora justifica a escolha: ao mesmo tempo em que dá pistas a respeito da ambiguidade da personalidade de Odisseu, o termo é simples e sugere que pode haver algo errado com este personagem – já que, de acordo com as raízes da palavra, ao chamar alguém de “complicado” estamos falando de uma pessoa composta de muitas camadas, difícil de desemaranhar e compreender.

“Você quer ter uma sensação de ansiedade sobre este personagem, de que há camadas de sua personalidade que veremos se desdobrando. Mas não sabemos ainda que camadas são essas. Então eu quis dizer ao leitor: fique atento a um texto que não será interpretado logo de cara”, afirmou.

Tradução x interpretação

Outra mudança empreendida pela estudiosa aparece no episódio em que, ao retornar à Ítaca, Odisseu pede ao seu filho Telêmaco que mate todas as mulheres do palácio que mantiveram relações com os pretendentes de sua esposa.

Nas traduções anteriores, elas são chamadas de “putas” e “vadias” (Robert Fagles), e “criaturas” (Richmond Lattimore), quando na verdade o termo original, afirma a estudiosa, é apenas um artigo feminino definido usado para designar as mulheres.

“Chamá-las de putas ou criaturas reflete uma agenda misógina dos tradutores”, criticou. “Se você vai admitir que histórias importam, então também importa como nós as contamos, inclusive no nível microscópico de escolha das palavras.”

Além do clássico de Homero, Wilson já havia traduzido uma seleção de peças de Sêneca em 2010 e quatro peças de Eurípedes em 2016. Junto dela, há outras mulheres se debruçando sobre textos clássicos e se somando ao grupo das “primeiras”: em 2009, Sarah Ruden foi a primeira a traduzir Eneida¸de Virgílio, para o inglês; e o mesmo aconteceu com Caroline Alexander e Ilíada, de Homero (2015); e Pamela Mensch e Vidas romanas, de Plutarco (2017).

Filha de acadêmicos – a mãe é professora universitária, especialista em Shakespeare, e o pai biógrafo, romancista e crítico literário –, Wilson afirma não ter tido uma única professora enquanto cursou Filosofia e Estudos Clássicos em Balliol College, na cidade de Oxford, na Inglaterra. Aprendeu apenas com homens.

“Eu acredito, sim, que gênero importa. Não vou dizer que é algo com o qual não estou lutando”, disse ao NY Times. “Queria apenas chacoalhar esses antigos classicistas e fazê-los perceber que toda tradução é uma interpretação.”

Por isso, sabe que deve ser alvo de críticas por não se ater a significados dicionarizados e notas de rodapé explicativas. “Eu não sei o que dizer a essas pessoas, honestamente. Eles parecem partir de um equívoco simples e fundamental sobre o papel da tradução”, disse. “Não sou uma crente, mas acredito que há algo de religioso que acompanha a prática da tradução. E eu estou tentando servir a algo”.

No Brasil, Odisseia foi traduzida pela primeira vez em 1864 por Odorico Mendes e publicada postumamente em 1928. Até a última tradução, de Christian Werner, em 2014, a obra passou por outros tradutores famosos como Trajano Vieira, Carlos Alberto Nunes, Donald Schüler e Frederico Lourenço – todos homens.

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