A poesia mulher

A poesia mulher

Não basta para uma escrita definir-se como feminina ser apenas feita por uma pessoa que se auto designa mulher. Colocar-se o lugar do feminino requer uma posição que implica a probabilidade de conseguir ver-se no outro. Implica a prática do espelho, não como exercício de miragem de si mesmo, mas, sim, de busca dos outros que coabitam na imagem refletida e a que produz a reflexão.

De costas para o mundo da realidade das coisas modernas, autônomas no conhecimento que tem de si e do outro, o feminino se constitui ao longo da modernidade. Segundo Eugénio D’Ors, em Lo barroco, junto com o mundo vegetal, a Síria, os cultos de Elêusis, a democracia e o barroco são femininos. Por mais polêmicas que a imagem do feminino de D’Ors possa desencadear, no entanto, ela me interessa para tentar esboçar uma noção de escrita feminina ou poesia mulher.

Poesia mulher tem a ver, como disse anteriormente, com a experiência pensada como imagem. Não apenas como imagem verbal ou imagem visual nem mesmo auditiva, mas com imagem sensível que produz experiência que altera nosso estado, sempre alerta, de “estar na defensiva”, de “estar no ataque”, ou seja, de estar sempre “em guarda”, com uma disposição preconcebida diante das coisas. Quando penso em uma poesia mulher, aposto no conflito com a equação do projeto moderno ocidental que é racional, evolutivo e disjuntivo. E por isso gostaria de me referir a alguns desses trabalhos que conheço e que começo a compreendê-los como poesia mulher, são eles o de Paula Glenadel, Angélica Freitas, Lu Menezes, Josely Vianna Baptista, Claudia Roquette-Pinto e Ana Martins Marques.

Entendo essas obras justamente como alternativas à disposição moderna de conquista, divisão e dominação, distanciada da relação arte/vida. A esse processo, o pensamento teórico fundador da concepção de arte moderna denominou de autonomia; ele interrompe o fluxo vital característico da prática artística no mundo antigo e, portanto, pré-histórico, e institui uma separação definitiva entre as formas “estetizantes” da vida prosaica e a formalização estética da arte moderna. Este, me parece, é o problema vital da escrita da poesia de alguns trabalhos poéticos do contemporâneo, ou seja, uma busca por um outro tipo de relação, mas sempre textual, e que é capaz de produzir experiências extratextuais, na qual estejam pensadas a situação de interdependência entre biologia e humanismo (zoé e bios), entre ética e escrita, entre sentido e suspensão da unidade, entre mimese e mimetismo, entre fala e discurso.

Essas questões estão presentes na poesia de Glenadel, que sintomaticamente tem seu último livro intitulado como Rede (2014), quando a voz feminina e sua articulação social indicam os movimentos e deslocamentos da linguagem poética, questionando a relação mimética da linguagem e, assim, desconfiando de seu caráter mimético, como, por exemplo, em A fábrica do feminino (2008), quando investe no problema da relação discursiva sobre o gênero, compreendendo-o como uma máquina (im)produtiva. Interessante também é retomar seu segundo livro Quase uma arte (2005), pois essa ideia de não alcance da totalidade, que é derivada da poética de Baudelaire, desdobra-se em outros trabalhos de poesia no contemporâneo.

Por exemplo, no Onde o céu descasca (2011), de Lu Menezes, há uma clara proposição de escrever a partir das “1001 fontes não intencionais da poesia que nos cercam”, pois a “imperfeição é o nosso paraíso”, assim retomando a compreensão da arte como incompletude, como se pode ler na orelha do livro: “Ao longo de longos minutos, em pauta aqui está não o eterno e imutável, mas a ‘metade da arte’, o transitório, precário, pois o céu sempre descasca”. Na poesia de Menezes a escrita é imanência exterior que se situa no fora de toda linguagem interior da poesia. A realidade mais imediata estará situada no âmago do problema da representação, como se pode ler no poema “Seios feios, de Onde o céu descasca, entre o “Reino do Real” e o “paralelo/ Império da Linguagem”.

Na poesia de Claudia Roquette-Pinto, que já em Saxífraga (1993) estabelece uma relação implícita entre voz e linguagem, a linguagem permite que a voz (autêntica) da linguagem manifeste o sem o fundo (realidade) de um sentido fixo. A aparição desse jogo entre voz e linguagem se manifesta, por exemplo, nos seguintes versos do poema “rastros”: “e eu no espinheiro, sem rumo/longe, o chão de pedregulhos/a flor essência saxátil”. O “eu” no espinheiro encontra sua essência exatamente na escrita da poesia, uma vez que a flor “saxátil” que é a flor do espinheiro, e também “brote” do “eu”, e localiza seu fundo na própria palavra, na poesia, na “rosa saxífraga”. Sobre a relação entre realidade e linguagem na poesia de Claudia Roquette-Pinto, Iumna Maria Simon, em “Situação de Sítio” (2008), sobre o poema “Sítio”, do livro Margem de manobra (2005), afirmaria que a poesia de Claudia constrói uma específica “relação com a realidade”. Em que pese a definição de relação com a realidade a partir da qual Simon estrutura sua análise da poesia brasileira contemporânea, diga-se, pautada por uma expectativa pessoal de referencialidade da linguagem, Simon parece observar que há algo singular nesse processo de escrita, seja em relação a si mesma, uma vez que considera que a poesia escrita por Claudia Roquette-Pinto antes do livro Margem de manobra (2005) era “referencialmente rarefeita”, seja em relação a seus companheiros poetas de contemporaneidade, caracterizada, segundo Simon, por um “cultivo da desrealização do referente, do lacunar, imagens obscuras e autônomas […] cuja prática poética não se disciplinou na relação com o dado imediato da realidade”. É justamente disso que se trata, não estamos tratando de poesia domesticada, no entanto, a observação de Simon confirmaria, ao revés, a minha leitura de que há um movimento de entrar e sair da formalização discursiva na poesia de Claudia Roquette-Pinto, pois ele permite ao poema transitar entre música e discurso, imagem e linguagem, entre forma e fundo, entretanto, em um movimento que envolve de modo não ingênuo, portanto, descrente e desconfiado, o sentido oferecido pelo caráter mimético da linguagem e o processo de formalização escrita.

Na poesia de Josely Vianna Baptista a relação entre voz e linguagem, natureza e escrita, se materializa com um foco mais aguçado na preponderância do efeito produzido pela linguagem, quando esta se dispõe a recriar uma segunda natureza para pensar a interdependência entre biologia e humanismo (zoé e bios), como, por exemplo, no poema “Hiléias, do livro Corpografia (1992), no qual se monta a imagem do feminino como “gozo invisível”, muito próxima à noção de “informe” desenvolvida por Georges Bataille em seu Dicionário crítico: “orquídea rara góngorabuffoniaidéia da idéia gozo invizível”. De alguma maneira, em meu livro Literatura do presente(2007), apresentei uma leitura da poesia de Vianna Baptista como trânsito entre arquivos da experiência que inclui a memória sensorial e a cultural, tomando a linguagem articulada no discurso como ponto de partida para a “desorganização” da hierarquia moderna.  A textura que o poema constrói produz “estratos com a matéria destruída e, num movimento circular, o repertório poético recorre a esses mesmos estratos para recompor-se”.

Angélica Freitas, com seu segundo livro de poemas, Um útero é do tamanho de um punho (2012), desdobra de modo inusitado a cena montada no livro de poemas de Paula Glenadel, A fábrica do feminino (2008): em ambos os livros, há poemas nos quais o pensamento sobre o “feminino” se apresenta como dependente da relação que este estabelece com a linguagem. Se neste livro de Glenadel a relação linguagem/pensamento se apresenta de modo igualitário, no livro de Freitas, a linguagem ganha função de articuladora maior do jogo estabelecido, criando o que denomino como “teatralidade da linguagem”, que se apresenta como promotora/condutora da “voz” na relação com a escrita, criando um interessante e potente “efeito” “desconstrutor” da “naturalidade” na voz e, também, da “artificialidade” no discurso.

Na poesia de Ana Martins Marques, o forte apelo de sua escrita à teatralidade da linguagem como meio de produzir essa zona de indiferenciação entre voz e linguagem faz com que algumas das questões de seus textos sejam retomadas, de modo mais “artificializado”, a partir de lugares importantes do discurso poético de algumas das autoras aqui referidas, a saber, a imagem especular pensada e operada como lugar de criação artística, como se vê, por exemplo, em seu poema “Espelho”, do livro A vida submarina (2009), onde se lê: “Do outro lado do poema não há nada”. Interessa especialmente o jogo com a “teatralização”, tanto da mimese da linguagem, quanto da constatação e aceitação da sua falência. Cogita-se, inclusive, esse impasse. Estamos novamente no âmbito dos impasses e impossibilidades de que são feitas algumas obras da poesia contemporânea. Em Da artedas armadilhas (2011), se lê no poema “Teatro”: “Certa noite/você me disse/que eu não tinha/coração/ Nessa noite/aberta/como uma estranha flor/expus a todos/ meu coração/que não tenho”.

ANTOLOGIA

Claudia Roquette-Pinto

rastros, de Saxífraga (1993)

 

cogumelos gratuitos, vetustos
dando à relva um reflexo escuro
compostura desses cogumelos
a da pele, dos bagos de um velho

os pendões não pediriam licença
e perdem a crença, solitários
raízes não se sabem raízes
raiz se confunde com galho

clangor da folhagem enteabrindo
disfarça o cicio do limo

o cheiro dos gomos pisados
alastra-se feitos um boato
e eu no espinheiro, sem rumo

longe, o chão de pedregulhos
a flor essência saxátil

Josely Vianna Baptista
Hiléias, em Corpografia (1992)

 

Sem título

Paula Glenadel

Espelho, em A fábrica do feminino (2008)

 

 

Como é que se separa
imagem de semelhança
um tempo para cada coisa
vacas magras e vacas gordas

ruminando dietas capas cartazes
sonhando celulose e superfície
mulheres sem celulite

parcelando plásticas
mastigando críticas
maquinando máscaras
maquiando cílios

 

Lu Menezes

Seios Feios, em Onde o céu descasca (2011)

 

 

No Reino do Real, terra “ruim” por ser
ácida e isso  e aquilo, pode ser
boa para o cultivo
de girassol ou milho

No paralelo
Império da Linguagem,
onde couves nos ouvem e, mais que os bonitos,
seios feios rimam como mamilos com pistilos
um Midas que não se arrepende
rege o plantio
da terra indizível sempre “boa”

Só nela cresce
de ouro o cabelo louro do milho
Só ao sol
do Verbo que a governa
se torna
do ouro o olho amoroso do giralssol

Diverso do vazio do pensamento, o desta terra
parece mais suculento: quando se pensa,por exemplo,
num deserto absoluto, sombra alguma se apresenta;

aqui, contudo, implantada “na calma areia da página”
a sombra ausente se assoma
e conta sem a gente se dar conta

 

Angélica Freitas
Uma serpente com a boca cheia de colgate, em Um útero é do tamanho de um punho (2012)

1.
tomo café
vou ao banheiro
me olho no espelho
tomo mais café

vou ao banheiro
me olho no espelho
escovo os dentes

metocolgate
na boca
diariamente

tomo café
tomo mais café
me olho no espelho
34 quase 35

é uma senhora
bonjour madame
é uma serpente
sssssssss
com a boca cheia
decolgate

 

2.
34 quase 35

molares obturados
sisos removidos
é uma amiga minha
é a filha da minha mãe
é a mulher maravilha
do carnaval de 79

 

3.
me olho no espelho
daandrade neves
da general osório
dagarturkstreet
dajohanitterstrasse
da barão do tatuí
da 11 de abril
dapoptahof-zuid

 

bu
buu
buuu

 

é uma serpente
com a boca cheia
completamente
respeitável público
na dúvida
não atrapalhe

 

4.
não diz coisa com
coisa nem escreve nada
que preste
não alivia as massas
nem seduz as cobras

se reduz a isso

a palhaça
toca fagote
com a boca cheia
decolgate

 

Ana Martins Marques
Espelho, em A Vida submarina (2009)

 

Dentro do armário
do seu quarto de dormir
deve haver um espelho.

Se você sai
e deixa o armário aberto
durante todo o dia
o espelho reflete
um pedaço da sua cama
desfeita.

Se você sai
e deixa a porta fechada
durante todo o dia
o espelho reflete o escuro
do seu armário de roupas,
a luz contida dos vidros
de perfume.

Do outro lado do poema
não há nada.


Susana Scramim
é professora de Teoria Literária na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora produtividade do CNPq. Sua pesquisa envolve o estudo da poesia brasileira moderna e contemporânea e a teoria da modernidade. É autora de Literatura do presente (2007), Carlito Azevedo (2010) e organizou recentemente o livro Alteridades na poesia. Riscos, aberturas, sobrevivências (2016)

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