A paixão de Clarice Lispector

A paixão de Clarice Lispector

Biografia escrita pelo crítico norte-americano Benjamin Moser revela episódio marcante na história de Clarice Lispector

Wilker Sousa

Fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa culpa: fizeram-me para uma missão e eu falhei.” O peso da culpa – a que se refere Clarice Lispector no trecho pertencente ao livro A Descoberta do Mundo, de 1968 – teve papel decisivo na vida e na obra da escritora, é o que defende o crítico e tradutor norte-americano Benjamin Moser, autor de Clarice, uma Biografia. Em seu livro, um caudaloso empreendimento sobre a vida da mais importante escritora da literatura brasileira, Moser traz à tona um dado até então não abordado em outras biografias dedicadas a Clarice: o estupro de Mania Lispector, sua mãe. Se o ocorrido foi uma nódoa para a família Lispector, para Clarice, em particular, o terrível episódio representou um fardo a ser carregado por toda a vida.

Setembro de 1919. Em meio à guerra civil, judeus ucranianos eram assolados por ondas de pogroms. Bandos de soldados russos invadiam lares, saqueavam quanto podiam, cometiam estupros e assassinavam a esmo. Em um desses brutais ataques, segundo aponta o livro, Mania foi estuprada por soldados e contraiu sífilis. Amparados em uma superstição vigente entre os judeus moradores da pequena Haysnyn, localizada na província ucraniana da Podólia, Mania e seu marido, Pinkhas, decidiram ter um filho na esperança de encontrar a cura. O nascimento de Clarice, em 10 de dezembro de 1920, contudo, não cessou o sofrimento de sua mãe, que faleceria dez anos mais tarde em decorrência da doença. “Foi o episódio mais importante de sua vida, embora tenha acontecido antes [de seu nascimento]. Menina, incapaz de fazer o que seja para ajudar a mãe que estava morrendo, ela começa a contar historinhas em que alguma coisa mágica chega a salvá-la. Então não só é a origem da pessoa Clarice, mas também da escritora Clarice”, defende Moser.

Hipóteses?

A também biógrafa de Clarice Nádia Batella Gotlib, autora de Clarice, uma História que se Conta (cuja reedição será publicada neste mês pela Edusp), embora não tenha lido o livro de Moser, é receosa quanto ao estupro de Mania: “Não conheço nenhuma afirmação explícita sobre a questão do estupro que teria ocorrido com a mãe de Clarice. Há apenas hipóteses construídas com base num possível diagnóstico da doença da mãe, que sofria de paralisia progressiva talvez como consequência de sífilis, talvez contraída em ato de violência sexual. Mas é mera hipótese, que assim deve ser considerada”. Moser fundamenta-se nos depoimentos de Clarice e, sobretudo, no romance No Exílio e nos manuscritos Retratos Antigos, ambos de autoria de Elisa Lispector, irmã de Clarice, os quais discorrem sobre o passado da família. Quando questionado sobre a possibilidade de ter havido certo pudor ao não se tratar o assunto anteriormente, Moser concorda: “Claro. (…) A marca dessa vergonha é muito profunda. No caso da família de Clarice, é um assunto dolorido até hoje, 90 anos depois do acontecido”.

Precisar ou não tal episódio é apenas um exemplo de quão ardilosa é a tarefa de responder às múltiplas questões que cercam a vida da autora de A Paixão Segundo GH.

Os hiatos, especialmente no que concerne às suas origens, permanecem como obstáculos à plena compreensão de sua vida. Aos leitores, cabe felicitar aqueles que se embrenham na tarefa de decifrá-la, uma vez que, para ela, “viver ultrapassa qualquer entendimento”.

(1) Comentário

  1. Li o livro e ele se salva pelos excertos da própria Clarice. O livro deveria chamar-se a reconstrução da história judaica no Brasil. A postura e o recorte do autor são preconceituosos, traz uma mística sobre o papel do judaísmo para a formação da autora e desconsidera tudo que ela viveu “alem-judaísmo”. O livro é assim, 50 páginas sobre a história do judaísmo para explicar a vinda da clarice para o Brasil, mais 50 para falar do bairro “judaico” onde viveu (vá lá, quem conhece o bairro de recife que fala sabe que é mais que isso!), depois meia frase sobre o entorno e tudo mais da vida de clarice e vai assim do começo ao fim. Impressionante é o livro fazer tanto sucesso. Para quem for ler, recomendo, leia em transverso o que o autor escreve e vá direto para o que clarice escreveu.

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