A guerra santa

A guerra santa

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Encontrei um querido amigo bolsonarista em estado de profunda irritação. A razão é simples: mexe muito com ele, emocional e cognitivamente, a iminente decisão eleitoral que o país terá que tomar entre dar mais 4 anos de presidência a Bolsonaro e a seu projeto ou substituí-lo justamente pelo partido e pelo candidato que o bolsonarismo odeia com maior intensidade. Mexe com todos nós, na verdade, mas alguns sentem que o país está à beira do abismo, considerando se salta ou não para uma morte trágica. A morte, para ele, é abraçar o PT mais uma vez.

O meu amigo bolsonarista, como muitos, pensa que se travou no Brasil uma batalha épica contra a corrupção, a roubalheira e a maldade até a monumental vitória de Bolsonaro em 2018, mas que agora, quando os salteadores e perversos contra-atacam, talvez não seja mais possível salvar esta nação que insiste na sua inclinação para o mal.

Meu amigo nem cogita admitir que o seu candidato é uma ameaça real e imediata à democracia. Para ele, é natural que o presidente tenha como meta enunciada eliminar o STF, entendido como obstáculo aos seus projetos. Ele sequer entende por que o presidente não é simplesmente o líder do Judiciário, nomeando juízes justos e imparciais, o que equivale a dizer que concordam com o projeto político e moral que Bolsonaro tem a obrigação de implementar.

Assim como lhe é cristalina a ideia de que alguma coisa precisa ser feita com a mídia dominante, completamente parcial, hostil e mal-intencionada, imprestável para apresentar um relato justo e adequado dos feitos dos que agora nos governam.

Reagir e controlar o jornalismo e o Judiciário nada têm a ver, segundo ele, com um ataque à democracia. Consiste apenas em uma forma vigorosa e necessária de enfrentar um grande conluio global contra Bolsonaro e o bolsonarismo.

O meu amigo bolsonarista, contudo, não está irritado só com o país, mas também comigo. Ele lida bem com o pensamento adversário à sua posição, proveniente de vários ambientes sociais. O meu amigo tem certeza de que as pessoas que não compartilham sua visão de mundo e sua perspectiva política só o fazem por burrice, ignorância ou maldade.

A questão é que ele não me considera estúpido, desinformado ou moralmente sem princípios, constituindo-me, portanto, em um estorvo ao seu modo de pensar ou sentir. Eu sou a materialização da sua dissonância cognitiva e emocional. Involuntariamente, tornei-me um espinho na carne, e isso é ruim.

Por que estou contando essa história? Para que se entendam algumas coisas a respeito da resposta à pergunta que mais nos intriga: por que os bolsonaristas não se movem das suas posições de apoio ao presidente, apesar de uma lista com mais de 50 itens de crimes, pecados e indecências, feitos ou prometidos, que em outros tempos e em outras circunstâncias destruiriam a reputação e as pretensões de qualquer candidato.

A resposta é simples: eles aderiram a uma narrativa segundo a qual nesta eleição não se trata de uma mera disputa entre candidaturas, coisa cotidiana na política democrática, mas de um momento decisivo da História da Salvação, em que se o Mal prevalecer, a vida, os valores e os princípios fatalmente sucumbirão.

Estão convencidos, em suma, de que estamos em uma guerra épica, enfrentando uma batalha decisiva, em que do outro lado estão todas as forças do Mal e da ignorância e do lado deles está a heroica resistência moral. Consideram, assim, que por pior que sejam os pecadilhos e o mau jeito do presidente, nada se compara ao oceano de perversidades que representaria a vitória do Mal. Os bolsonaristas não se sentem simplesmente eleitores, mas guerreiros que lutarão até o último suspiro contra as trevas da ignorância, da desinformação e da maldade.

Como repito por aqui há anos, nada como uma boa história para que os fatos sejam arrumados, filtrados e encaixados explicando tudo do jeitinho que queremos. Principalmente, quando nessa história somos a parte nobre de uma batalha épica que dá sentido às nossas pobres vidas.

 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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