Traduções extraordinárias: as de Josely Vianna Baptista

Traduções extraordinárias: as de Josely Vianna Baptista
Na Aldeia Mata Verde Bonita, 20 famílias Guarani Mbyá se comunicam na língua materna (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Com uma bela novidade, Roça barroca, Josely Vianna Baptista põe em relevo a expressão escrita indígena como parte da literatura universal, familiariza os que amam ficção e poesia com uma leitura considerada estranha. Poeta ela própria, uma das melhores tradutoras brasileiras – e temos tantos tradutores de alto nível – ousou estender o que faz do espanhol para o português para uma língua mais antiga e menos documentada, do tronco tupi-guarani,  a dos Mbyá Guarani. Sua arte com as palavras, tão comprovada em tudo o que escreve, volta-se para decifrar o conteúdo e a forma enigmáticos, espirituais, de um povo não apenas diferente de nós, mas também de feições inusitadas quando comparado a outras tradições indígenas.

São poucos os escritores que enveredam por um repertório cultural minoritário. Muitos alegam que não sabem nada de índios, que o assunto deve ficar com especialistas, ou cometeriam erros grosseiros de compreensão. As mais notáveis exceções foram marcos na literatura brasileira – Mário de Andrade, Darcy Ribeiro, Raul Bopp, Guimarães Rosa e mais recentes, Ana Miranda, Alberto Mussa, Paulo Freire e outros. São os antropólogos e linguistas os encarregados de escrever com os índios, registrar, transcrever e procurar traduzir. Falta-nos, de modo geral, o dom da palavra, ou, para alguns mais hábeis, o tempo de burilar em português o sentido do que ouvimos – pois há a pressa de transmitir uma substância aproximada, gravar o que está prestes a dissolver-se, abarcar as duas centenas de povos que hoje pertencem, em sua maioria, ao mundo da escrita, deixam de ser orais apenas. Os  linguistas vão ao cerne do vocabulário, da estrutura da língua, percebem diferenças de conteúdo inesperadas, mas sua dedicação a múltiplas tarefas e povos nem sempre lhes dá espaço para ousar uma tradução poética.

Josely faz de tudo um pouco, se é que podemos chamar de pouco o muito que nos traz. Apoia-se na bibliografia clássica sobre os Guarani, sobretudo em León Cadogan, que é deles o maior entendedor e estudioso, ao qual somaram-se Nimuendaju, Bartomeu Melià, Hélène e Pierre Clastres, Alfred Métraux; como estes, conviveu com a fonte original, a indígena, debatendo e confrontando sua tradução com os narradores guaranis atuais. Sua introdução, seu glossário comentado, suas explicações sobre a pesquisa, na qual utilizou registros escritos em língua guarani e outros de sua lavra são prova de como se atirou a várias vertentes para desvendar o que traduz, pois não se limitou a intérpretes: experimentou, sem medo, aprender a língua. O resultado é uma versão lindíssima de alguns textos míticos mbyá guarani, aos quais acrescenta seus próprios poemas, outra forma de encantar-se com eles.

Uma tradução é uma caça, um facho de luz sobre um fragmento nas trevas, uma obsessão. Há anos Josely é devotada aos Guarani  e persegue o imaginário indígena em outras plagas – sua tradução e publicação do ensaio de Miguel Chase-Sardi sobre o amor Nivaklé é um primor. Ela faz lembrar Baudelaire na paixão que o tomou ao traduzir as Histórias extraordinárias de Edgar Allan Poe, um amor por um continente a descobrir, como nos conta Paulo Rónai, outro grande tradutor. Se os tradutores poetas pudessem reunir-se e conversar sobre seus métodos… É verdade que o fazem, de certo modo, através da escrita.

Hoje, em especial desde os anos 90, os índios escrevem, são escritores e professores bilíngues,  registram vozes e filmam os mais velhos. Há, no Brasil, muitos livros em guarani. Para os autores indígenas, é fundamental conhecer a literatura, os recursos da criação e da língua portuguesa – bem como de sua própria língua – e as variadíssimas formas de traduzir. Dá para imaginar Josely em oficinas e diálogo com eles, burilando textos, pensando junto sobre grandes temas como tradução, segredo, recriação, fidelidade, entendimento, gramática, semântica, metáforas, diversidade das línguas, sonoridades, ritmos, rimas, tradições literárias. Seu trabalho aponta para o rigor da palavra, ao mesmo tempo para a liberdade de caminhos abertos aos criadores índios.

A fonte da fala

Josely Vianna Baptista

Neste canto, o deus supremo vai desdobrando de si o fulgor do fogo e a neblina que dá vida, a fonte do amor e do som sagrado. Faz a fonte da fala aflorar de si e fluir por seu corpo, tornando-a sagrada, palavra-alma de origem divina. Desdobra de si os homens e as mulheres que iriam refletir sua divindade, Ñamandu de Grande Coração, Karaí, Jakaira e Tupã, pais e mães verdadeiros da palavra inspirada que insuflará a alma em seus numerosos filhos futuros.

 

1
Ñamandu, nosso Pai verdadeiro, o primeiro,
de uma pequena parte de seu ser-de-céu,
do saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
alastrou o fulgor do fogo e a neblina que dá vida.

2
Incorporando-se,
com o saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
iluminou-se a fonte da fala.
Com o saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
nosso Pai iluminou-se a fonte da fala
e fez com que fluísse por seu ser, divinizando-a.
Antes de a Terra existir,
no caos obscuro do começo,
tudo oculto em sombras,
Ñamandu, Pai verdadeiro, o primeiro,
aflorou-se a fonte da fala e fez com que fluísse por seu ser, divinizando-a.

3
A fonte da futura palavra tendo aflorado,
com o saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
de si foi aflorando a fonte do amor.

4
Tendo aflorado a fonte da fala,
tendo aflorado um pouco de amor,
com o saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
o princípio de um som sagrado ele, a sós, criou.
Antes de a Terra existir,
no caos obscuro do começo,
tudo oculto em sombras,
o princípio de um som sagrado ele, a sós, criou.

5
Tendo aflorado, a sós, a fonte da futura fala,
e desdobrado, a sós, um pouco de amor;
tendo criado, a sós, um breve som sagrado,
ele refletiu longamente
sobre com quem compartilhar a fonte da fala;
sobre com quem compartilhar o amor,
com quem partilhar as fieiras de palavras do som sagrado.
Depois de muito meditar,
com o saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
desdobrou-se em quem refletiria
seu ser-de-céu.

6
Depois de refletir,
com o saber contido em seu ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
criou o Ñamandu de Grande Coração.
Criou-o juntamente com o sol de seu lume criador.
Antes de a Terra existir,
no caos obscuro do começo,
criou o Ñamandu de Grande Coração.
Para que fosse o pai de seus muitos filhos vindouros,
o verdadeiro pai das almas dos numerosos filhos vindouros,
ele criou o Ñamandu valoroso.

7
Depois disso,
com o saber contido em ser-de-céu,
e sob o sol de seu lume criador,
tornou lúcidos da própria divindade
o verdadeiro pai dos futuros Karaí,
o verdadeiro pai dos futuros Jakaira,
o verdadeiro pai dos futuros Tupã.

8
Depois disso,
o verdadeiro Pai Ñamandu,
para refletir seu coração,
fez que se soubesse divina
a futura Mãe verdadeira dos Ñamandu;
o verdadeiro Pai Karaí,
para refletir seu coração,
fez que se soubesse divina
a futura Mãe verdadeira dos Karaí.
Também o verdadeiro Pai Jakaira,
para refletir seu coração,
fez que se soubesse divina
a futura Mãe verdadeira dos Jakaira.
E o verdadeiro Pai Tupã,
para refletir seu coração,
fez que se soubesse divina
a futura Mãe verdadeira dos Tupã.

9
Por terem recebido o lume
divino do próprio Pai primeiro;
por terem recebido a fonte da fala;
por terem recebido a fonte do amor
e as fieiras de palavras do som sagrado;
por estarem unidos à origem do saber criador,
também os chamamos de
inspirados pais verdadeiros das palavras-almas;
inspiradas mães verdadeiras das palavras-almas.

 

Ayvu rapyta

1
Ñamandu Ru Ete tenondegua
oyvára peteîgui,
oyvárapy mba’ekuaágui,
okuaararávyma
tataendy, tatachina ogueromoñemoña.

2
Oãmyvyma,
oyvárapy mba’ekuaágui,
okuaararávyma
ayvu rapytarã i oikuaa ojeupe.
Oyvárapy mba’ekuaágui,
okuaararávyma,
ayvu rapyta oguerojera,
ogueroyvára Ñande Ru.
Yvy oiko’eÿre,
pytû yma mbytére,
mba’e jekuaa’eÿre,
ayvu rapytarã i oguerojera,
ogueroyvára Ñamandu Ru Ete tenondegua.

3
Ayvu rapytarã i oikuaámavy ojeupe,
oyvárapy mba’ekuaágui,
okuaararávyma
mborayu rapytarã oikuaa ojeupe.
Yvy oiko’eÿre,
pytû yma mbytére,
mba’e jekuaa’eÿre,
okuaararávyma
mborayu rapytarã i oikuaa ojeupe.

4
Ayvu rapytarã i oguerojera i mavy,
mborayu peteî i oguerojera i mavy,
oyvárapy mba’ekuaágui,
okuaararávyma
mba’e a’ã rapyta peteî oguerojera.
Yvy oiko’eÿre,
pytû yma mbytére,
mba’e jekuaa’eÿre
mba’e a’ã peteî i oguerojera ojeupe.

5
Ayvu rapytarã i oguerojera i mavy ojeupe;
mborayu peteî oguerojera i mavy ojeupe;
mba’e a’ã peteî oguerojera i mavy ojeupe,
ochareko iñomá
mavaêpepa ayvu rapyta omboja’o i anguã;
mborayu peteî i omboja’o i anguã;
mba’e a’ã ñeychyrõgui omboja’o i anguã.
Ochareko iñomavy,
oyvárapy mba’ekuaágui,
okuaararávyma
oyvára irûrã i oguerojera.

6
Ochareko iñomavy,
oyvárapy mba’ekuaágui,
okuaararávyma
Ñamandu Py’a Guachu oguerojera.
Jechaka mba’ekuaa reve oguerojera.
Yvy oiko’eÿre,
pytû yma mbytére,
Nãmandu Py’a Guachu oguerojera.
Gua’y reta ru eterã,
gua’y reta ñe’êy ru eterã,
Ñamandu Py’a Guachu oguerojera.
A’e va’e rakyguégui,
oyvárapy mba’ekuaágui,
okuaararávyma,
Karaí Ru Eterã,
Jakaira Ru Eterã,
Tupã Ru Eterã,
omboyvárajekuaa.
Gua’y reta ru eterã,
gua’y reta ñe’êy ru eterã,
omboyvára jekuaa.

7
A’e va’e rakyguégui,
oyvárapy mba’ekuaágui,
okuaararávyma,
Karaí Ru Eterã,
Jakaira Ru Eterã,
Tupã Ru Eterã,
omboyvárajekuaa.
Gua’y reta ru eterã,
gua’y reta ñe’êy ru eterã,
omboyvára jekuaa.

8
A’e va’e rakykuégui,
Ñamandu Ru Ete
opy’a rechéiguarã
omboyvára jekuaa
Ñamandu Chy Eterã i;
Karaí Ru Ete,
omboyvára jekuaa
opy’a rechéiguarã
Karaí Chy Eterã i.
Jakaira Ru Ete, a’érami avei,
opy’a rechéi guarã
omboyvárajekuaa
Jakaira Chy Eterã i.
Tupã Ru Ete, a’érami avei,
opy’a rechéi guarã
omboyvárajekuaa
Tupã Chy Eterã i.

9
Guu tenondegua yvárapy
mba’ekuaa omboja’o riréma;
ayvu rapytarã i omboja riréma;
mborayu rapyta omboja’o riréma;
mba’e a’ã ñeychyrõ omboja’o riréma;
kuaarara rapyta ogueno’ã rire,
a’ekue ípy:
Ñe’êy Ru Ete pavêngatu,
Ñe’êy Chy Ete pavêngatu,
ja’e.

 


Breve elucidário:
(As notas lexicológicas e os comentários foram feitos a partir de vocábulos, versos ou blocos de versos (conforme a necessidade de contextualização), com aquelas se concentrando nos dois primeiros cantos, pois no último se repetem muitas palavras e conceitos já esclarecidos anteriormente. Eventualmente “disseco” um verso ou estrofe para dar um vislumbre do arcabouço da língua original, mas, para poupar o leitor de minha “oficina”, tais ocorrências se limitam a uma fração mínima do trabalho percorrido para a tradução).

 

Ayvu rapyta/A fonte da fala
ayvu: linguagem humana; idioma, fala.
apyta: base, alicerce, origem; apy: extremidade; yta: apoio.
O fundamento da linguagem humana, a fonte da fala, é a palavra-alma originária, “aquela que Nossos Primeiros Pais repartiriam com seus numerosos filhos ao enviá-los à morada terrena para se erguerem [nascerem]”, conforme relato do cacique Pablo Vera num encontro com Cadogan. Na versão do mburuvicha Kachirito, de Paso Jovái, “a fonte da fala foi criada por Nosso Primeiro Pai, que a fez parte de sua divindade, para medula da palavra-alma”. (Ayvu, 42) Aliás, foi a descoberta intrigante e instigante de que ayvu (linguagem humana), ñe´êy (palavra) e e (dizer) contêm o duplo conceito de “expressar ideias” e “porção divina da alma” que levou Cadogan a debruçar-se, anos a fio, no estudo da religião guarani.

 

1
okuaararávyma
kuaarara:, significa sabedoria, poder criador (kuaa: saber; ra: radical de jera, mbojera, guerojera: criar).
Kuaarara é um dos termos sagrados mais importantes para os Guarani, que não o pronunciam diante de estranhos. Em meio ao caos obscuro do começo, o deus supremo foi iluminado pelo brilho de seu próprio coração, sendo kuaarara a fonte dessa luz que antecedeu a criação do sol: seu “sol” era o saber contido em seu “ser-de-céu”.
tataendy, tatachina ogueromoñemoña.
tataendy: chamas (manifestação visível da divindade). Karaí Ru Ete é o nume protetor das chamas divinas. De tata: – ata: fogo e endy: brilho, luz.
tatachina (tatachi: fumaça; na: semelhante a): termo pertencente ao vocabulário religioso, nomeia a neblina que aparece no fim do inverno, prenunciando o viço da primavera e o calor. Ñamandu vai multiplicando o fogo fulgurante e a névoa que dá vida. Essa neblina, que para os Mbyá propicia a revitalização de todos os seres, tem seu “duplo terreno” na fumaça de tabaco que “ascende” ao ser exalada pelos sacerdotes indígenas em seus rituais, simbolizando um meio de comunicação com o deus primeiro. Jakaira Ru Ete é seu nume protetor.

 

2
Oãmyvyma
ã: estar erguido; py, mby: partícula verbal; ma: já
> Incorporando-se/Tendo-se erguido,
Ou seja, tendo tomado a forma humana.


3
mborayu rapytarã oikuaa ojeupe
Embora literalmente mborayu signifique “amor”, seu sentido neste canto é controverso. A tradução de Cadogan, “amor ao próximo”, encontra eco na acepção dada por Montoya em seu Tesoro de la Lengua Guarani, qual seja, o amor de Deus por suas criaturas e vice-versa. Discordando, Pierre Clastres argumenta que os missionários adotaram tendenciosamente o termo mborayu “para exprimir a ideia cristã do amor”, e que, nesse sentido, a tradução de Cadogan “não é falsa, mas imprópria” (A fala sagrada, 31). Clastres optou por uma expressão, “o que está destinado a reunir”, por acreditar que o termo irradia o conceito de “solidariedade tribal”.


4
mba’e a’ã rapyta peteî oguerojera
mba’e a’ã: canto ou hino sagrado.
a’ã (ha’ã): empenhar-se (em busca de força espiritual).
Cantos e rezas são um esforço em busca de alento e coragem. Os Guarani “recebem em sonhos” seus próprios cantos rituais. Tomo a liberdade de relatar aqui uma experiência ocorrida em Ocoy, quando lá estive para conversar com os índios sobre os mitos que estava traduzindo. Eu levava em mãos os originais dos cantos e um esboço da tradução. Entreguei-os a Teodoro. Ele primeiro presenteou meu filho Pedro Jerônimo com um arco e flecha de sua própria lavra, e então começou a “cantar” sua versão do primeiro canto, parando, por vezes, para relembrar alguma passagem, e consultando o manuscrito com genuíno interesse. Depois nos levou até o líder religioso da aldeia. Logo estávamos rodeados de moradores, que comentavam passagens dos cantos, discordavam aqui e ali do registro, aportavam e explicavam variantes, numa reunião memorável de revivificação do mito.


5
mavaêpepa ayvu rapyta omboja’o i anguã
mboja’o: repartir, distribuir. Diz-se também amboja’o arandu: assimilo sabedoria dos deuses.
> sobre com quem compartilhar a fonte da fala
mba’e a’ã ñeychyrõgui omboja’o i anguã.
ñeychyrõ: repetir-se, pôr-se em filas.
> sobre com quem compartilhar as séries de palavras do som sagrado.

6
Ñamandu Py’a Guachu
guachu: grande; py’a: fígado, coração; py’a guachu: lit.: de fígado grande; aqueles que têm
grande coração, os valorosos.
gua’y reta ñe’êy ru eterã,
ñe’êy: espírito que os deuses enviam para encarnar-se na criança que está para nascer; porção divina da alma, palavra-alma.
> Da palavra-alma de seus muitos futuros filhos o verdadeiro pai
O conceito de palavra-alma é central na mitologia dos Mbyá. Vimos como se descreve a criação da linguagem pelo deus supremo, sendo, ela, portanto, de origem divina, embrião da palavra-alma que os deuses enviam à Terra para “habitar” um recém-nascido. Em El Guaraní: experiencia religiosa, Bartomeu Melià afirma que a união sexual entre um homem e uma mulher é a ocasião “para que se dê esse ato poético mediante o qual a palavra sonhada pelo pai é comunicada à mãe, que desse modo engravida dessa mesma palavra. O fato de ser gerado e concebido um ser humano é designado metaforicamente pelos Mbyá com a expressão: oñemboapyka, “se dá assento”, com clara alusão ao modo como Ñande Ru (Nosso Pai), senta-se em seu banquinho ritual, iluminando-se a si mesmo em meio às trevas. (…) Se a concepção e o nascimento de um Guarani se resume a um ato poético de encarnação da palavra, toda a vida do mesmo será recriação desse ato inicial, de diversas maneiras.” (trad. D. Diegues)

7
Karaí Ru Eterã
> o verdadeiro pai dos futuros Karaí
Karaí é o nume protetor do fogo. Assim, surgiriam labaredas nas mãos e nos pés dos tocados pela inspiração divina. As chamas seriam a manifestação visível da divindade. Clastres estende o sentido para chama, fogo solar e calor, sugerindo que o movimento do sol “garante aos Guarani que os deuses não estão mortos”. (A fala sagrada, 39) Vale notar que para os Guarani o fim do mundo está ligado ao sol: a Terra começará a ruir pelo poente, e o sol não mais surgirá.
Jakaira Ru Eterã
> o verdadeiro pai dos futuros Jakaira
Jakaira é o nume protetor da primavera e da neblina vivificante.
Tupã Ru Eterã
> o verdadeiro pai dos futuros Tupã
Tupã é o nume protetor das tempestades, trovões, raios, relâmpagos, nuvens, águas. Segundo Chase-Sardi, embora houvesse muitos outros deuses na teogonia guarani a catequização colonial o “transformou em único e supremo Deus”. (Neblina vivificante, 13)

8
Ñamandu Chy Eterã i
Chy: mãe.
> a futura Mãe verdadeira dos Ñamandu

9
Ñe’êy Ru Ete pavêngatu,
Ñe’êy Chy Ete pavêngatu
> inspirados pais verdadeiros das palavras-almas;
inspiradas mães verdadeiras das palavras-almas
Ñe’êy é o espírito enviado pelos deuses para que se encarne na criança prestes a nascer, diz Cadogan. Seu longo comentário sobre o papel da palavra na religião guarani, fruto de exaustivas pesquisas, é valioso para sua compreensão: “Em guarani comum ñe’ê significa linguagem humana, aplicando-se também ao cantar das aves, ao chirriar de algus insetos, etc. Em mbyá, aplica-se ao ruído de insetos, aves e animais; em ñe’ê porã tenonde significa “as primeiras palavras bonitas”, por exemplo, as tradições e mitos “esotéricos”, embora para designar estes aplique-se mais frequentemente a frase ayvu porã. Ñe’enguchu: voz forte, potente; a mudança de voz na puberdade; com a palavra ñemoñe’ê designam algumas mensagens recebidas dos deuses, especialmente as recebidas de Karaí Ru Ete. Nestes casos, a pronúncia de ñe’ê é idêntica à que tem em nosso guarani. Tem, no entanto, outro significado: “porção divina da alma” ou “palavra-alma”, e neste caso é pronunciada ñe’eng, com o som da ng final inglesa e alemã, seguida de um brevíssimo y nasal. (…) Ñe’êy, a palavra-alma de origem divina, não deve ser confundida com ãngue, palavra empregada no vernáculo para designar a alma de um defunto. (Ayvu, 43)

 

Betty Mindlin
Antropóloga, com doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e economista, com mestrado pela Universidade de Cornell, trabalha há anos em projetos de pesquisa e apoio a numerosos povos indígenas da Amazônia e outras regiões. Seus assuntos prediletos são mitos indígenas, escrita / oralidade / música e apoio a professores indígenas. Atuou também na área de direitos reprodutivos, direitos dos povos, diversidade cultural, educação diferenciada, saúde, grandes projetos e ambiente, demarcação de terras indígenas. Publicou em português sete livros de mitos em coautoria com narradores sem escrita, nascidos antes do contato. O mais conhecido é Moqueca de maridos, Paz e Terra, 2014 (terceira edição), traduzido em várias línguas. Seus diários de campo de 1978 a 1983 foram publicados como Diários da floresta, Terceiro Nome, 2006, traduzidos para o francês como Carnetssauvages (Métailié, 2008). Dedica-se atualmente a escrever e registrar com professores e narradores indígenas a sua tradição e sua música, em mais de dez línguas, procurando criar um sistema para devolver às comunidades e aos jovens todos os registros gravados em pesquisas passadas.

Josely Vianna Baptista
é autora de Ar e Corpografia (Iluminuras, 1991/92), A Concha das Mil Coisas Maravilhosas do Velho Caramujo (Mirabilia, 2001, ilust. G. Zamoner – VI Prémio Internacional del Libro Ilustrado Infantil y Juvenil do Governo do México), On the shining screen of the eyelids (Manifest, 2003, trad. Chris Daniels), Florid pores (in 1913. A journal of forms. Roanoke, 2006, trad. Daniels e Alfarano), Sol sobre nuvens (Perspectiva, 2007, apres. Augusto de Campos), Roça Barroca (Cosac Naify), entre outros. Em 2009 teve seu trabalho representado em The Oxford Book of Latin American Poetry (NY, Oxford University Press. Org. E. Livon-Grosman e C. Vicuña). Criou a coleção Cadernos da Ameríndia. Tradutora de literatura hispanoamericana, trouxe ao português obras de Roa Bastos, Lezama Lima, Onetti, Arguedas, Cortázar, Cabrera Infante e Borges, entre outros. Desde 1992 desenvolve com Francisco Faria um trabalho que associa poesia a artes visuais. Seu trabalho mais recente é o site multimídia Na tela rútila das pálpebrasfeito em colaboração com diversos poetas e artistas (apoio Rumos Itaú Cultural). Mora na Ilha de Santa Catarina.

 

roca-barroca-1419161765.184x273Roça barroca
Josely Vianna Baptista
Cosac Naify
152 págs.

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