A cultura no centro do debate

A cultura no centro do debate

Pablo C. Claudino

Acostumada ao obscurantismo a que estava relegada no Brasil, a cultura passou, nos últimos anos, a ser protagonista de políticas públicas no país. Esteve no centro de debates acalorados, alguns deles colocando grandes amigos em lados opostos, como aconteceu com o ex-ministro Gilberto Gil e Caetano Veloso. Foi um período em que se passou a produção cultural a limpo. E, durante todo esse tempo, um personagem esteve firme com sua lança quixotesca na defesa da democratização da cultura: o atual ministro da Cultura, Juca Ferreira.

São vários os projetos enviados pelo Ministério da Cultura (MinC) que estão prestes a ser aprovados pelo Congresso Nacional. A revisão da Lei de Direitos Autorais, a criação do Vale-Cultura, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 150 e o que gerou mais polêmica em alguns segmentos da classe artística: o Procultura. Outro projeto, que estabelece diretrizes e metas para os próximos dez anos, o Plano Nacional de Cultura foi aprovado por unanimidade pelo Senado Federal em novembro.

Cada um desses projetos foi amplamente debatido com a sociedade e Juca Ferreira não se furtou a ir para a linha de frente e participar de eventos muitas vezes desgastantes. “Quando tomei posse, falei que a marca da minha administração seria muito diálogo e que tínhamos consciência de que política pública se constrói no debate, na discussão – não é dentro de gabinete”, relembra. “Rodei o Brasil, não me neguei a ir a nenhum ambiente para discutir a mudança da Lei Rouanet, tivesse dez pessoas ou 5 mil.” Juca é daquelas pessoas que se envolvem de corpo e alma no que fazem. Não foram raras as vezes em que, em meio a um debate, as lágrimas vieram. Aos 61 anos, boa parte deles dedicada à cultura e à luta pela democracia, não se deixou vencer pelo conformismo nem pelo cinismo que muito comumente arrebatam pessoas no meio político.

Inquieto
Foi justamente a inquietação que levou Juca à vida pública. Ainda lembra bem do que chama de sua “primeira ação política”. Em 1964, quando estudava em um colégio militar em Salvador, presenciou uma cena comum nos anos de chumbo. O comandante do colégio queimou livros considerados subversivos pelo regime militar. Juca, então, organizou um clube do livro, cujo principal objetivo era repor as obras perdidas. “Para isso, conseguimos, inclusive, uma cópia da lista dos livros que haviam sido queimados”, conta. A vida do garoto que sonhava em ser arquiteto e cineasta começou a mudar.

Juca tornou-se líder estudantil. Foi eleito presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). O dia da eleição não poderia ter sido pior: 13 de dezembro de 1968 – o dia que marcou o início do período mais dramático da história contemporânea brasileira, o dia em que o governo decretou o Ato Institucional nº 5, o temido AI-5. “Fui eleito e não tomei posse.”

Ingressou, então, na resistência ao regime militar. Passou no vestibular de história e cursou a faculdade por dois anos. Em 1970, foi preso. Depois de alguns meses na prisão, foi solto.

“Quando quiseram me prender novamente, fui embora para o Rio de Janeiro”, recorda o ministro. “Aí é que a barra pesou para mim.” Rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, ao lado de nomes como Vladimir Palmeira, Franklin Martins e Fernando Gabeira, constituiu a Dissidência da Guanabara, uma alternativa à linha militarista que dominava algumas organizações de esquerda.

Cartazes com a foto de Juca foram espalhados com o aviso de “Procura-se”. Depois de um ano e meio na clandestinidade, optou pelo exílio. Foram quase nove anos no Chile, na Suécia e na França. Aproveitou esse período para se formar. Estudou línguas latinas na Universidade de Estocolmo e ciências sociais na Universidade de Paris – Sorbonne.

De volta ao Brasil, Juca trabalhou em diversos órgãos, instituições e projetos ligados à cultura e ao meio ambiente. Foi eleito duas vezes vereador de Salvador. Durante o último mandato, em 2003, foi convidado pelo então ministro da Cultura, Gilberto Gil, para assumir a Secretaria Executiva do Ministério. Cinco anos mais tarde, assumiu o comando da pasta.

Os desafios assumidos por Gil e Juca não foram pequenos. A área cultural brasileira passou por diversas dificuldades nos anos 1990 e ainda carecia de investimento e estrutura no início dos anos 2000. Um porcentual muito pequeno do orçamento da União era destinado à cultura e cerca de 80% desse total era via renúncia fiscal. “Tivemos de aumentar os recursos e esse foi um esforço descomunal porque era 0,2% – cerca de R$ 287 milhões anuais – em 2003 e fomos avançando até os atuais R$ 2,3 bilhões, que correspondem a 1,3% do orçamento.”

Contra a “privatização  do Ministério”
Outro desafio era democratizar o acesso aos recursos oriundos da Lei Rouanet. “Herdamos uma armadilha montada no governo passado, em que 80% dos recursos saíam na forma de incentivo fiscal e sem critério”, afirma. “Os departamentos de marketing das empresas é que diziam como usar esse dinheiro.” Segundo o ministro, isso gerou “distorções monstruosas”, como a má distribuição da verba. Ele diz que 80% do total era destinado aos estados de São Paulo e Rio de Janeiro e, desses, 60% ficavam nas duas capitais, nas mãos de 3% dos proponentes. “E esses 3% eram sempre os mesmos, ou seja, havia se propiciado uma privatização do Ministério”, relata. “Ter de reconstituir isso foi um trabalho porque, no Brasil, quem tem privilégio acha que tem direito adquirido.”

Juca também reclama que o debate colocado à mesa por alguns produtores da área cultural e por parte da imprensa era artificial. “Alegavam que queríamos estatizar a cultura”, relata. “Na verdade, queríamos responsabilizar a utilização do dinheiro público. O que a gente quer é definir claramente qual é o papel do Estado, qual o papel do empresariado e qual o papel das organizações da sociedade que desenvolvem produtos em cultura.”

O ministro diz contar com o apoio dos 20 maiores patrocinadores de cultura e de parlamentares da base governista e da oposição. “Os deputados e senadores sabem, por exemplo, que seus estados merecem um porcentual maior do orçamento do Ministério”, avalia Juca. “A usura foi tão grande que, sob esse aspecto [o da distribuição do orçamento], não foi difícil convencer os parlamentares – foi só revelar os dados.”

Outra crítica que Juca teve de enfrentar é a de que artistas de grande visibilidade e comercialmente viáveis, como Caetano Veloso e Ivete Sangalo, estariam se utilizando da Lei Rouanet em detrimento de outros com mais dificuldades para a captação de recursos. “Eu não posso, arbitrariamente, dizer que A ou B não pode receber recursos”, defende-se. “Mas é evidente que nós não podemos abrir mão de artistas que foram ícones de dimensões da cultura brasileira, independentemente de eles terem dado certo ou não economicamente.”

Juca acredita que a aprovação do Procultura, em substituição à Lei Rouanet, eliminará muitas distorções. A ideia é que 80% do financiamento com recursos do MinC seja oriundo do Fundo Nacional de Cultura, que permite a transferência direta de recursos ao produtor. Atualmente, a maioria dos projetos ainda é financiada via renúncia, que o ministro chama de “hipocrisia fiscal”.

Com a nova lei, o Estado terá maior participação nas produções que financia. “Quando a gente desloca os recursos da renúncia fiscal para o fundo, como ele não precisa de anuência da empresa, faz com que o critério seja definido publicamente, e critério público é transparente, é previamente definido, não emite valor estético, mas define uma série de possibilidades”, analisa. “É assim no mundo inteiro. Por que no Brasil não pode ser? Por que a gestão cultural no Brasil não pode amadurecer o suficiente para que o repasse do dinheiro para a produção cultural atinja um conjunto baseado em determinados critérios públicos?”

O ministro diz haver uma espécie de indústria por trás da captação de recursos da Lei Rouanet. Ele diz que, para ter acesso ao financiamento, é preciso recorrer ao que chama de “despachante”. Segundo Juca, o proponente apresenta o projeto ao MinC. Como a lei não estabelece critérios públicos, o projeto geralmente é aprovado. O problema é na hora de captar. Apenas 20% dos que recebem o certificado conseguem financiamento no mercado. Daí surgem os intermediários. “O acesso aos departamentos de marketing das empresas virou um negócio altamente rentável porque aí é que é decidida a aprovação de fato”, afirma.

Juca vai além na denúncia. “Eu recebi a informação dos órgãos de controle do Estado de que em torno de 30% ou mais é negociado por debaixo da mesa. O orçamento já é feito embutindo esse custo sobre o que já é legalmente possível de ser destinado para captação”, revela. “Então, criam-se escritórios, alguns de advocacia, outros de captadores, só para fazer essa transação, estabelecendo negócios em torno da Lei Rouanet que levam mais de 30% desse dinheiro. É o velho mecanismo do despachante.”

Apesar do trabalho bem avaliado, o ministro sabe que é possível avançar mais, principalmente com a aprovação no Congresso. “Muito foi feito, mas ainda há um caminho a percorrer”, diz. Recentemente, recebeu o apoio público de vários artistas, como os dramaturgos Zé Celso Martinez e Aderbal Freire-Filho e o maestro John Neschling, que encabeçam um movimento por sua permanência à frente do MinC. E, se alguém tem dúvida sobre o que Juca acha disso, ele mesmo responde: “Caso a presidente queira, eu permanecerei. É o meu desejo”.

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