Leia trecho de ‘A cela um’, conto de Chimamanda Ngozi Adichie recém-lançado no Brasil
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (Divulgação)
Chega às livrarias brasileiras nesta terça (25) a coletânea de contos No seu pescoço, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Originalmente publicado em 2009 (e só agora lançado no Brasil), o livro traz doze histórias que fazem o leitor refletir sobre o racismo velado. Por meio de suas personagens, mulheres e homens nigerianos, Chimamanda explica aos leitores brancos a sensação de ser vista como “exótica” e aos homens como é sentir-se um objeto. Leia abaixo um trecho do conto que abre o livro, “A cela um”.
Na primeira vez em que nossa casa foi roubada, foi nosso vizinho Osita que entrou pela janela da sala de jantar e levou a televisão, o videocassete e as fitas de Purple Rain e Thriller, que meu pai tinha trazido dos Estados Unidos. Na segunda vez em que nossa casa foi roubada, foi meu irmão Nnamabia que forjou um arrombamento e roubou as joias da minha mãe. Era um domingo. Meus pais tinham ido para nossa cidade natal, Mbaise, visitar nossos avós, por isso eu e Nnamabia fomos à igreja sozinhos. Ele dirigiu o Peugeot 504 verde da minha mãe. Sentamos juntos na igreja, como sempre, mas não ficamos nos cutucando e sufocando risadas por causa do chapéu feio ou do cafetã surrado de alguém, pois Nnamabia foi embora sem dizer uma palavra depois de uns dez minutos. Ele voltou um pouco antes de o padre dizer: “A missa acabou. Vão em paz”. Eu fiquei um pouco chateada. Imaginei que tivesse saído para fumar e encontrar alguma menina, já que finalmente tinha o carro só para ele, mas podia pelo menos ter dito aonde ia. Voltamos para casa em silêncio e, enquanto meu irmão estacionava o carro no longo caminho que ia do nosso portão à garagem, parei no jardim para colher algumas flores do pé de ixora até que ele destrancasse a porta da frente. Quando entrei, encontrei-o parado no meio da sala de estar.
“Fomos roubados!”, ele disse em inglês.
Levou um instante até que eu compreendesse, para que absorvesse a bagunça do cômodo. Mesmo depois, senti que havia qualquer coisa de teatral no modo como as gavetas estavam escancaradas, como se tivessem sido deixadas daquela maneira por alguém que queria impressionar quem as encontrassem. Ou talvez fosse simplesmente o fato de eu conhecer meu irmão tão bem. Mais tarde, quando meus pais voltaram e os vizinhos vieram todos para dizer ndo, estalar os dedos e dar de ombros, fiquei sozinha no meu quarto e entendi o que era aquele enjoo na boca do estômago: Nnamabia tinha feito aquilo, eu sabia. Meu pai também sabia. Ele comentou que a veneziana tinha sido aberta por dentro, não por fora (Nnamabia era bastante esperto para não cometer esse erro; talvez estivesse com pressa de voltar para a igreja antes de a missa acabar), e que o ladrão sabia exatamente onde ficavam as joias da minha mãe — no canto esquerdo de seu baú de metal. Nnamabia encarou meu pai com um sofridíssimo olhar dramático e disse: “Sei que já causei uma dor terrível a vocês dois antes, mas jamais violaria sua confiança desse jeito”. Ele falou em inglês, usando palavras desnecessárias como “dor terrível” e “violaria”, exatamente como fazia sempre que estava se defendendo. Então, saiu pela porta dos fundos e não voltou para casa naquela noite. Nem na seguinte. Nem na que veio depois. Voltou duas semanas mais tarde, magro, cheirando a cerveja, chorando, dizendo que sentia muito e que tinha penhorado as joias com os comerciantes hausa de Enugu e gastado todo o dinheiro.
“Quanto eles deram pelo meu ouro?”, perguntou minha mãe. E quando Nnamabia contou, ela colocou as mãos na cabeça e exclamou: “Oh! Oh! Chi m egbuo m! Meu Deus me matou!”. Parecia que ela achava que meu irmão tivesse que pelo menos conseguir um bom preço pelas joias. Eu quis bater nela. Meu pai pediu que Nnamabia escrevesse um relatório contando como as tinha roubado, em que tinha gastado o dinheiro, com quem tinha gastado. Eu não achei que Nnamabia fosse contar a verdade, e creio que meu pai também não, mas ele gostava de relatórios, meu pai, o professor; gostava que as coisas fossem bem escritas e documentadas de maneira organizada. Além do mais, Nnamabia tinha dezessete anos e uma barba aparada com cuidado. Estava naquele hiato entre o ensino médio e a universidade, velho demais para levar uma surra. O que mais meu pai podia ter feito? Depois que Nnamabia escreveu o relatório, meu pai o arquivou na gaveta de aço do escritório, onde guardava nossos trabalhos escolares.
“Como ele pôde magoar a mãe desse jeito?”, murmurou meu pai. Foi a última coisa que disse sobre o assunto.
Mas Nnamabia, na verdade, nunca quis magoá-la. Ele fez aquilo porque as joias da minha mãe eram os únicos objetos de valor da casa: toda uma vida reunindo uma coleção de peças de ouro maciço. Também fez aquilo porque outros filhos de professores estavam fazendo. Era a temporada de furtos no nosso sereno campus em Nsukka. Meninos que tinham passado a infância assistindo à Vila Sésamo, lendo Enid Blyton, comendo cereal no café da manhã e frequentando a escola primária reservada aos filhos dos professores da universidade com suas sandálias marrons brilhantes agora cortavam as telas contra mosquito dos vizinhos, deslizavam as venezianas de vidro e pulavam pelas janelas para roubar televisões e videocassetes. Nós conhecíamos os ladrões. O campus de Nsukka era um lugar tão pequeno — com ruas arborizadas e casas dispostas lado a lado, separadas apenas por cercas baixas — que era impossível não saber quem estava roubando. Mesmo assim, quando os pais professores se encontravam no clube reservado aos docentes, na igreja ou nas reuniões da universidade, continuavam a lamentar o fato de que a ralé da cidade estava entrando em seu campus sagrado para roubar.
Os meninos que roubavam eram os mais populares. Eles dirigiam os carros dos pais à noite, com os bancos inclinados para trás e os braços esticados para alcançar o volante. Osita, o vizinho que roubara nossa televisão poucas semanas antes do incidente com Nnamabia, era ágil, tinha uma espécie de beleza prestes a aflorar e andava com a elegância de um gato. Suas camisas estavam sempre bem engomadas; eu costumava olhar por cima da cerca, vê-lo e fechar os olhos imaginando que ele estava caminhando na minha direção, vindo declarar que eu lhe pertencia. Ele nunca me notou. Quando nos roubou, meus pais não foram até a casa do professor Ebube para dizer a ele que pedisse ao filho para devolver nossas coisas. Disseram publicamente que tinha sido a ralé da cidade. Mas sabiam que tinha sido Osita. Osita era dois anos mais velho que Nnamabia; a maioria dos meninos que roubavam era um pouco mais velha que meu irmão, e talvez por isso ele não tenha roubado a casa de outra pessoa. Talvez não se sentisse velho o suficiente, experiente o suficiente, para nada maior do que as joias da minha mãe.
Nnamabia era igualzinho à minha mãe, com a pele clara cor de mel, olhos grandes e uma boca generosa que se curvava perfeitamente. Quando minha mãe nos levava ao mercado, os feirantes gritavam: “Ei! Senhora, por que desperdiçou sua pele clara num menino e deixou a menina tão escura? O que um menino está fazendo com tanta beleza?”. E minha mãe ria, como se assumisse uma alegre e travessa responsabilidade pela beleza de Nnamabia. Quando, aos onze anos, Nnamabia quebrou a janela da sala de aula com uma pedra, minha mãe deu a ele o dinheiro para pagar pelo conserto e não contou para o meu pai. Quando ele perdeu alguns livros da biblioteca no segundo ano, ela disse à professora que eles tinham sido roubados pelo menino que trabalhava lá em casa. Quando, no terceiro ano, Nnamabia, apesar de sair cedo todos os dias para ir ao catecismo, não pôde receber a primeira comunhão, pois depois se descobriu que ele não tinha ido nem uma vez, ela disse aos outros pais que ele teve malária no dia da prova. Quando Nnamabia pegou a chave do carro do meu pai e fez um molde num pedaço de sabão que meu pai encontrou antes que ele pudesse levar a um chaveiro, ela disse vagamente que aquilo era coisa da juventude e não significava nada. Quando Nnamabia roubou do escritório as questões da prova e vendeu para os alunos do meu pai, minha mãe gritou com ele, mas depois disse ao meu pai que Nnamabia afinal de contas já tinha dezesseis anos, e devia receber uma mesada maior.
Não sei se Nnamabia sentiu remorso por roubar as joias dela. Nem sempre eu conseguia saber o que realmente seu rosto encantador e sorridente dizia. E nós não conversamos sobre isso. Apesar de as irmãs da minha mãe terem lhe mandado seus brincos de ouro, apesar de ela ter comprado um conjunto de brincos e pingente da sra. Mozie, a mulher glamorosa que importava ouro da Itália, e de ter começado a ir à sua casa de carro uma vez por mês para pagar as prestações, nós, depois daquele dia, nunca mais falamos sobre o fato de que Nnamabia roubara suas joias. Era como se fingir que Nnamabia não tinha feito o que fizera fosse lhe dar a oportunidade de começar do zero. Talvez o roubo jamais voltasse a ser mencionado se, três anos depois, quando estava no terceiro ano da faculdade, Nnamabia não tivesse sido preso e trancado numa cela na delegacia.
Era a época dos cultos no nosso sereno campus em Nsukka. A época em que surgiram cartazes por toda a universidade que diziam, em letras grandes: “diga não aos cultos”. Os mais conhecidos eram o Black Axe, os Buccaneers e os Pirates. Podiam ter começado como fraternidades inofensivas, mas tinham evoluído e agora eram chamados de “cultos”; jovens de dezoito anos que haviam aprendido a imitar com perfeição as bravatas vistas nos vídeos de rap americanos passavam por cerimônias de iniciação secretas e estranhas que às vezes deixavam um ou dois cadáveres na colina Odim. Armas, lealdades forçadas e machados agora eram comuns. Guerras entre os cultos agora eram comuns: um menino dizia uma gracinha para uma menina que, por acaso, era a namorada de um chefão do Black Axe, e mais tarde aquele menino, ao andar até um quiosque para comprar um cigarro, levava uma facada na coxa. Mas ele, por acaso, era membro dos Buccaneers, de modo que os outros rapazes do culto iam a um bar e atiravam no primeiro membro do Black Axe que viam, e então no dia seguinte um Buccaneer era morto a tiros no refeitório, com o cadáver caindo sobre as tigelas de sopa de alumínio, e naquela tarde um Black Axe era estraçalhado em seu quarto num alojamento masculino, deixando seu cd player todo manchado de sangue. Era insano. Isso era tão anormal que logo se tornou normal. As meninas não saíam dos alojamentos depois das aulas, os professores tremiam, e bastava que uma mosca zumbisse alto demais para que todos sentissem medo. Por isso, a polícia foi chamada. Eles passavam a toda pelo campus em seu Peugeot 505 azul, uma lata-velha, com armas enferrujadas saindo pelas janelas, olhando feio para os estudantes. Nnamabia chegava em casa das aulas rindo. Ele achava que a polícia ia ter que se esforçar mais; todo mundo sabia que os meninos dos cultos tinham armas mais modernas.
Meus pais observavam o rosto sorridente de Nnamabia com uma preocupação silenciosa e eu soube que eles também se perguntavam se ele pertencia a um culto. Eu, às vezes, achava que sim. Todo mundo admirava os membros dos cultos e todo mundo admirava Nnamabia. Os meninos gritavam seu apelido — The Funk! — e apertavam sua mão por onde quer que ele passasse, e as meninas, principalmente as famosas Big Chicks, lhe davam um abraço longo demais sempre que ele as cumprimentava. Ele ia a todas as festas, tanto às mais tranquilas no campus como às mais loucas na cidade, e era um conquistador que ao mesmo tempo tinha muitos amigos homens, do tipo que fumava um maço de Rothmans por dia e cultivava a fama de conseguir beber uma dúzia de latas de cerveja Star numa noite. Às vezes, eu achava que Nnamabia não pertencia a um culto justamente por ser tão popular, pois me parecia mais seu estilo ficar amigo dos meninos de todos os cultos e não ser inimigo de ninguém. Além do mais, eu não tinha nenhuma certeza de que meu irmão tinha a característica necessária — fosse coragem ou insegurança — para ser membro de um culto. Na única ocasião em que lhe perguntei se fazia parte de um deles, ele me olhou com surpresa, com aqueles cílios longos e espessos, como se eu já devesse saber a resposta, e disse: “É claro que não”. Eu acreditei. Meu pai também acreditou. Mas a nossa fé nele não fez muita diferença, pois Nnamabia já tinha sido preso e acusado de ser um membro. Ele me disse esse “É claro que não” em nossa primeira visita à delegacia onde estava preso. (…)
(1) Comentário
Que narrativa escorreita, leve, gostosa de ler. Maravilhoso ver nossos irmãos além mar produzindo literatura de verdade, uma literatura que mostra de que tinta são feitos. Sempre achei que um bom escritor deve ser também um bom antropólogo. Parabéns Chimamanda Ngozi Adichie!