A carta-testamento
Durante a juventude investi em cultura. Lia tudo o que passava pela frente: Dostoievski, Tolstói, Flaubert, Machado, Drummond, Kafka, Faulkner, Bandeira. (Neide! Neide! Tá ouvindo?)
Quando cheguei aos 40, pausei as leituras e iniciei as viagens. Ouvi dezenas de sotaques, conheci costumes esdrúxulos, senti todos os climas. Tudo para poder, um dia, como se fosse uma esponja de vivências, apertá-la sobre o teclado. E este, passando pelo meu filtro da maturidade, fosse redigindo meu teatro íntimo completo. (Neide, atende o interfone, que eu estou escrevendo).
É o que eu, literato tarimbado, desejo transmitir a vocês, queridos descendentes. Que o importante, enquanto estiverem na flor da idade, é experienciar situações. Aqui, ali, acolá. Sempre com os sentidos afiados. Se eu não tivesse cometido tantas leituras e jornadas (Atendeu o interfone?), talvez não tivesse produzido os 37 livros que deixarei a vocês como meu legado. 17 romances, dez livros de poesia, seis de contos e quatro de ensaios. Todos premiados com Jabuti, Oceanos, Camões, e uma indicação ao Nobel de Literatura (Pelo amor de Deus, essa joça não para de tocar, só tenho agora para fazer um texto).
Lembro-me vivamente do encontro que, há alguns anos, tive com Gabriel García Márquez. Estávamos num colóquio em Viena e o convidei para um jerez num café na Wienitätsring. G.G. estava numa tarde inspirada, me deu muitos insights. (Com quem você tanto fala, mulher? É o porteiro?). O mais notável foi ele, em determinado momento, confessar que havia plagiado minha novela Os Píncaros para criar Cem anos de solidão. Fica só entre nós, aqui na minha carta-testamento, tal revelação. O fato é que, após a confidência do colombiano, o esmurrei e caímos em cima do bufê de chá para o espanto dos frequentadores da tradicional casa austríaca. (Oficial de Justiça? Policial? Não, não. Deve ser gente tocando no apartamento errado. Pede ao porteiro pra orientar a pessoa, não posso falar agora nem o papa!).
Foi então, filhos e netos, que mais tarde visitei Gabo no hospital. Mesmo com uma sonda metida na boca, ele conseguiu declamar o trecho de um poema de Cesar Vallejo que mudou meu destino:
De tudu iso sô u únco qui parte.
Dêfi banco á vou, défas cuecas,
défa sort em par, défa hifo…hipoteca,
du eu úmero extinto em fantas partes,
De tudu iso sô u únco qui parte.
Após ouvir os versos, ainda que ditos de modo tão indecifrável, sai comovidíssimo do quarto de Gabo. Arrumei as malas e me mudei para Bulgária. Ali interrompi minha produção em português e comecei a escrever apenas em búlgaro (Diga ao oficial o seguinte, Neide: eu não tenho ideia de nenhum livro que mandei imprimir e não paguei à gráfica. Muito menos essas 123 obras que eles estão falando…).
Em Pazardžik, certa manhã, tive a maior epifania de toda minha vida, foi depois de ler Dante. Queria dividi-la com vocês (Algemado não vou, posso até acompanhar os senhores, mas com um mínimo de gentileza. Neide, não esquece de botar o alpiste do Juca na gaiola, está na despensa…).
Leia mais crônicas do Palavrório
Carlos Castelo é jornalista e cofundador do grupo musical Língua de Trapo. É autor de 16 livros que vão de crônicas à poesia, e de aforismos a micronarrativas.