Aquele ali, ó

Aquele ali, ó
(Arte: @fsaraiva)

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Quem é do tempo em que Crush significava apenas uma marca de refrigerante de laranja e usava ficha nos orelhões vermelhos da Telesp vai se lembrar dessa cena, principalmente nos bairros pobres e periféricos. Um garoto queimado de sol com sua lata de linha no bolso continuamente olhando pro céu, à espreita de um papagaio desgarrado para fazer sua alegria até o próximo corte, entra esbaforido na avícola do seu Tonho e pede um frango. Duvido que hoje em dia no site da Amazon se encontre um “frango vivo abatido na hora” como se comprava ali.

Naquele era o verdadeiro estabelecimento havia de tudo: wafer do Fofão, cigarrilhas de chocolate Pan, o saudoso baleiro giratório de vidro recheado de bombas calóricas coloridas… Tudo o que era importante pra molecada, além, é claro, de café moído na hora vendido em quartos e daquelas enormes gaiolas cheias de frangos que nunca chegariam a galos, e de galinhas que nunca chegariam a pôr ovos. Triste? Não para Rocky, um frangote jovem ainda, mas que já tinha sobrevivido a três reposições e a três novas chegadas de integrantes à gaiola, e que estava decidido a mudar sua sorte. Rocky não tinha certeza de tudo, mas já sabia que, quando algum cliente dizia uma frase e apontava o dedo para algum semelhante seu, não demorava muito para que este fosse logo capturado e aparecesse, instantes depois, em um cone metálico, de cabeça pra baixo, vertendo sangue e com o olhar opaco. Sabia também que naquele dia, ao menos, iria sobrar mais milho.

Não deu outra quando o moleque queimado de sol entrou na avícola. Rocky disfarçadamente foi pro fundo da gaiola, ouviu a frase e viu seu amigo Godofredo ser arrancado de lá. Calculou o tempo em que a portinhola ficava aberta e, enquanto comia sua porção dobrada de milho, podia ver o ex-companheiro de cabeça pra baixo no funil, esvaindo-se em sangue e se debatendo, enquanto o freguês e o vendedor papeavam.

O tempo passou, e Rocky já era um galinho alto e forte, com uma pequena crista teimando em despontar (que ele disfarçava encolhendo o pescoço) e um pequeno projeto de espora aparecendo, que o enchia de orgulho e vaidade. Quando a gaiola se esvaziava e o milho abundava, Rocky colocava em prática um plano audacioso para se manter vivo. Arrumava briga com seus companheiros sem motivo algum e apanhava de propósito. Assim, suas penas eram arrancadas, ele ficava machucado e não despertava muito interesse nos moleques acostumados a ir buscar frango para a mãe. Quando o velho caminhão abarrotado de frangos novos chegava, era uma alegria para Rocky, que sabia que conseguiria ficar vivo por mais algum tempo. De bom grado, ele deixava todos comerem à vontade e engordarem o papo, enquanto traçava seu plano de fuga e liberdade, que consistia em pular no chão enquanto a portinha estivesse aberta e fugir correndo pela calçada. O resto decidiria depois. Seria fácil, afinal, ele já tinha crista e espora para se defender e, se preciso, atacar o resto do mundo.

Durante uma das reposições populacionais pelas quais passou, chegou uma franguinha novinha, bonitinha, branquinha e muito sonsinha, que chamou a atenção do aspirante a galo, Rocky.

Ele a tratou bem, expulsou a bicadas alguns que estavam por perto e deixou a pequena donzela comer todo o milho que quisesse, o que ela fez muito contente até que todo ele se acabasse e ela ficasse com o papo gigante, como se tivesse engolido uma melancia.

Galanteios e gentilezas se repetiam, Rocky passou a paquerar a pequena, e aos poucos tentava cooptá-la e colocá-la a par de seus planos de fuga, e de serem felizes para sempre em algum paraíso galináceo. Um extenso campo de milho, e muitos ovos que ela poderia chocar com tranquilidade, era o que ele prometia à sua amada, enquanto ela se contentava em comer todo o milho que podia estando sob sua proteção.

Contudo, Giselda não entendeu ou não quis seguir seus conselhos e numa das reposições, toda senhora de si, se sentindo a primeira dama da gaiola, em vez de se esconder no fundo com Rocky, preferiu expulsar as novatas que se alimentavam no cocho –no seu cocho– como Rocky havia solenemente dito, justamente no dia de pagamento, em que a avícola estava cheia de clientes e não eram os filhos.

Eram as próprias mães que vieram escolher o frango para o domingo, e pagar o fiado do mês. Tinham mais experiência e olhar apurado, e Giselda foi até motivo de uma pequena disputa entre duas vizinhas fofoqueiras que se odiavam, que tinham colocado os olhos nela ao mesmo tempo, dizendo a famigerada frase ao seu Tonho e apontando o dedo para aquela ali no cocho: branquelinha e gordinha com cara de sonsa. Falavam de Giselda, mas no íntimo pensavam assim uma da outra.

Do fundo da gaiola Rocky percebeu a sorte que sua amada teria e ensaiou uma tentativa de resgate causando um tumulto e empurrando outros frangos gordinhos pra cima dela, mas foi em vão; as vizinhas estavam decididas a almoçar Giselda com batatas, e a querela entre rivais só não se prolongou mais porque seu Tonho usando de toda sua sutileza, educação e experiência de 30 anos atrás daquele balcão, pegou solenemente o caderno de fiado e disse em voz alta que quem fosse quitar a dívida toda naquele dia levaria a galinha e ainda ganharia uma tubaína de brinde se trouxesse o casco.

As fofoqueiras se entreolharam. Uma sorriu exibindo a ponte recém-colocada e a outra amuou, escondendo o molar ausente e pedindo apenas um quartinho de café e meia dúzia de ovos.

Ostentação de época. Fosse hoje, a fofoqueira mais abastada pagaria no celular por aproximação, exibiria seu sorriso extremamente branco e artificial com facetas, e levaria Giselda a tiracolo numa bolsa super cara, além de instagramar toda a cena.

Rocky viu a cara sonsa de Giselda de cabeça pra baixo no funil. Teve sua primeira decepção amorosa, e ficou ainda mais determinado a fugir e conhecer o que mais havia no mundo, além das portas da avícola do seu Tonho que tinha tudo, menos sua tão desejada liberdade.

Calculava que sua fuga deveria ser durante uma reposição, quando a portinha ficava aberta por mais tempo. Há algum tempo, já vinha percebendo o olhar curioso e feliz de seu Tonho em sua direção.

Foi quando o velho caminhão cheio de recrutas chegou e ele decidiu que teria que apanhar. A princípio, os frangotes jovens não ousaram tocá-lo, mesmo com suas provocações, mas depois que um mais ousado e com sentimento de vingança reprimido pelas surras que havia levado de Rocky deu a primeira bicada não houve revide; foi logo no parquinho, apanhou bem mais do que havia planejado; seu Tonho, aos berros, que interveio a tempo.

Mal se sustentava em pé. Praticamente sem nenhuma pena no corpo, olho roxo e crista pingando sangue. Um frangote digno de dó, lembrava um bêbado quando apanha na rua. Quando enfim pararam de espancá-lo e conseguiu enxergar algo pelo único olho que ainda funcionava e viu “aquele” moleque entrando na tem-tudo de seu Tonho, determinou que era agora que sua liberdade viria.

Estava com uma aparência deplorável e, a julgar pela cara bisonha e alienada de Astolfinho, um gordinho de sardas e dedo enfiado no nariz, estaria salvo.

Já até conhecia de vista o moleque. Tinha sido poupado já por três vezes de ser escolhido por ele e não seria agora com sua pior aparência que esse imbecil iria querer levá-lo.

Seu Tonho o atendia todo cordial perguntando da família, e enchendo a mão suja de Astolfinho de balas, querendo saber qual frango ele ia querer.
Rocky pensou que fosse qual fosse, ele pularia junto quando a portinha se abrisse e ganharia o mundo.

O olho inchado não deixou ver o dedo do moleque, mas ouviu a voz:
–Aquele ali, ó! Quase não tem pena, vai ser fácil de tirar…

Por: Ronaldo Ferreira

 


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