Porque não li Ulysses

Porque não li Ulysses

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Dizem que os escritores são pessoas com defeito de fabricação. Por um enguiço qualquer, na infância ou pré-adolescência, o indivíduo passa a perceber o mundo de forma enviesada. Comigo aconteceu algo parecido. Enquanto meus coleguinhas de classe dirigiam a atenção aos outros coleguinhas de classe, eu tentava decifrar um livro: Ulysses, de James Joyce.

Ainda imberbe tive a desventura de achar a obra num sebo, em tradução de Antonio Houaiss, pelo Clube do Livro. Adquiri mais pela capa dura, e pelo custo-benefício, do que pelo conteúdo. Em tempos de mesadas curtas, comprava-se literatura assim, no atacado. De mais a mais, essa versão lembrava uma Bíblia. Tê-la em mãos faria avó e mãe julgarem que eu estava me ilustrando em espiritualidades, não em “pornografia” irlandesa.

Quando jovens, temos mais energia. Foi o que me fez pegar a melhor lapiseira e ir anotando todas as palavras que não compreendia no discurso joyceano. A primeira, nunca me esqueço, foi “blasonar”. Mal imaginava o que viria pela frente.

Permaneci focado na obra por dias e dias. Lamentavelmente, só suportei até a página 100. Estou certo, todavia, de que não foi desinteresse pela saga dos Bloom, mas interesse por alguma coleguinha de classe.

Após minha entrada no mundo do sensualismo, veio uma pausa de anos até que me aventurasse a desembrenhar Ulysses. Já adulto, com filhos, me dei de presente a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Dessa vez resolvi fazer barba, cabelo e bigode. Descolei um alentado guia de leitura de Ulysses. Já no primeiro capítulo, o autor recomendava que, para a boa apreensão do catatau, era preciso antes ler A divina comédia, Tristão e Isolda Hamlet, além de Retrato do artista quando jovem.

Coloquei Bernardina no fundo da gaveta. Só voltei à obra principal meses depois. Mesmo prenhe de tanta informação de algibeira, de novo o pesadelo: o caos linguístico, as digressões, os neologismos, tudo aquilo me entediava. Como encararia os brothers da Vila Madalena sem ter lido o maldito livro?

A impotência e a vergonha me levaram a pular todas as outras traduções em português pós-Bernardina.

Só sosseguei ao ler De quanta terra precisa um homem, de Tolstói.

O conto retrata o camponês Pakhóm, obcecado por obter mais e mais terras. Amplia sua propriedade, mas ainda insatisfeito, resolve adquirir terrenos num longínquo território. Lá é desafiado pelo chefe da aldeia: terá todo o chão que conseguir percorrer a pé durante um dia. Desde que, antes de o sol se pôr, retorne ao ponto de partida.

Resumindo a narrativa: Pakhóm correu tanto para descolar mais glebas que caiu morto na linha de chegada. O fecho é assim:

O criado pegou na pá, fez uma cova em que coubesse Pakhóm e meteu-o dentro; sete palmos de terra: não precisava de mais.

O que Pakhóm teria a ver com Joyce? Para mim, os sete palmos de terra não bastavam ao irlandês. Descontente com o que já conquistara, foi gerando tanto vozerio que acabou, além de cego, mudo.

 

Carlos Castelo é jornalista e cofundador do grupo musical Língua de Trapo. É autor de 16 livros que vão de crônicas à poesia, e de aforismos a micronarrativas.


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