A antiga arte de contar histórias
Scheherazade e o Sultão, pelo pintor iraniano Sani Ol Molk (1814-1966) (Rprodução)
Talvez não seja coisa de genoma, mas podemos garantir que contar e ouvir histórias são coisas que fazem parte da natureza humana. Histórias, em primeiro lugar, representam um antídoto contra a ansiedade em nós despertada pelas interrogações que todas as culturas se fazem sobre o universo e sobre a existência. Para os povos ditos primitivos, fenômenos naturais como a aurora, o crepúsculo, as chuvas (sem falar em catástrofes) envolvem um elemento de mistério para o qual o mito é a resposta. Mito: na linguagem comum, o termo tem uma conotação que às vezes envolve fama e mistério (o mito Greta Garbo é um exemplo ilustrativo), mas, mais frequentemente, significa mentira, lorota; aliás, mitômano é um mentiroso contumaz. Já os estudiosos do mito, que incluem nomes como os de Ernest Cassirer, Frazer, Durkheim, Lévi-Strauss, vêem-no de forma diferente e muito mais significativa. O mito é uma narrativa ficcional, sim, frequentemente envolvendo personagens sobrenaturais, mas que, sendo estória, é vista como História, como algo que realmente aconteceu num passado distante (in illo tempore) e que proporciona uma explicação para os fenômenos do universo em que vivemos: o mito, disse Malinovski, é um equivalente da ciência. Já Freud chamou a atenção para a semelhança entre mito e sonho, e Jung postulou que os mitos ficam embutidos no inconsciente coletivo: passam assim de geração em geração, muitas vezes associados a rituais de caráter religioso, sagrado. Nesse sentido, o mito é diferente da história folclórica, da qual a fábula é um exemplo. Mito também não é lenda, que tende a preservar uma figura do passado (um santo, um herói, um rei), um lugar, um acontecimento. Mas mitos, histórias folclóricas, lendas – a ficção em geral – dão testemunho dessa paixão humana pela narrativa.
Falamos antes na ansiedade em relação ao universo, mas essa é apenas uma das formas de nossa ansiedade. Existem outras, como a ansiedade da separação, que tem seu início por volta dos seis meses e que se manifesta por uma reação de angústia quando a criança tem de se separar dos pais, sobretudo da mãe. Essas crianças não conseguem permanecer em um quarto sozinhas e seguem os pais por toda parte. O quadro desaparece em torno dos três anos, mas pode retornar à época de entrar na escola e acompanhar o adulto pela vida toda.
A ansiedade de separação manifesta-se sob forma de uma cena típica. É de noite; a família já jantou, já viu um pouco de tevê. É então que o pai ou a mãe volta-se para a criança com o anúncio fatídico: está na hora de ir para cama. No passado, a própria tevê encarregava-se disso por meio de um anúncio dos cobertores (claro) Parahyba. Aparecia uma criança de camisola, segurando uma vela acesa, enquanto se ouvia uma música de fundo: “Tá na hora de dormir/ não espere papai, mamãe mandar./ Um bom sono pra você/ e um alegre despertar.”.
Com ou sem anúncio, com ou sem pedagogia, está para nascer a criança que receba com alegria essa notícia, que diga algo como: “Oba, finalmente chegou a hora de dormir”. E isso pela simples razão de que a criança será afastada dos pais e dos irmãos, terá de ir para o seu quarto e deitar na cama; a luz se apagará e ali estará o menino ou a menina, no escuro, tendo de atravessar o limiar que separa o conhecido e gratificante mundo da vigília do mundo dos sonhos, que pode ser também, e frequentemente o é, o mundo dos pesadelos – sem falar no terror noturno, penosa situação em que a criança acorda gritando e num estado de extrema agitação motora.
Mas todo pai e toda mãe sabem que existe um antídoto para a recusa da criança: “Se você for deitar agora, eu lhe conto uma história”. É uma proposta irrecusável. Detalhe: se em vez de contar a história a mãe ou o pai ler a história, podemos ter certeza de que naquele momento estará nascendo um futuro leitor ou leitora.
Há duas razões para que a criança se sinta confortada nessa situação. A primeira é a presença “reasseguradora”, e a voz, do pai ou da mãe. A segunda é a própria história. Histórias nos dão, senão a certeza, pelo menos a sensação de que as coisas no mundo fazem sentido, que elas têm um começo, um meio e um final – geralmente um final feliz. Aliás, para a criança, é mais importante o começo da narrativa, o clássico e excitante “era uma vez” do que o “e aí viveram felizes para sempre”. O final tradicional é mais ou menos previsível – e isso explica por que, no cinema, muitas pessoas levantam antes de o filme acabar. Pela mesma razão a criança não raro adormece antes do final da narrativa.
E isso tudo nos leva às Mil e uma noites, essa coletânea maravilhosa que, originária de narrativas do Irã, Afeganistão, Usbequistão (denominações modernas para regiões antes distantes e misteriosas), atravessou os séculos e chegou até nós por meio de numerosas traduções para línguas europeias, a primeira das quais feita no século 18 por um abade francês. A mais citada, porém, é a gigantesca (16 volumes) versão de Sir Richard Burton, do século 19.
O início, e o elo condutor da obra, são bem conhecidos. Enfurecido pela infidelidade de sua esposa, o rei Shahriyar (ou Schriyar) manda matá-la e, convencido de que todas as mulheres são pérfidas, ordena a seu vizir que lhe traga uma esposa nova a cada noite. Casamentos relâmpagos, porque as coitadas são executadas ao amanhecer. Entra em cena a própria filha do vizir, a astuta Shahrazad ou Scheherazade, que se voluntaria para o matrimônio. É que ela tem um plano: mantém o soberano em suspense com suas histórias, com o que vai adiando sua execução. No final, e depois de dar à luz a três filhos, o rei fica convencido de sua inocência.
O tema das histórias varia amplamente, incluindo narrativas históricas (o califa Harun al-Rashid é um personagem freqüente), burlescas ou religiosas. Algumas, como as de Ali Babá, Aladim e Sindbad, adquiriram existência própria. Não raro um personagem conta uma história, que pode ter outra dentro dela, como aquelas bonecas russas, o que torna o conjunto ainda mais complexo e fascinante.
As histórias das Mil e uma noites começaram a ser coletadas por volta do ano 1000. O que explica seu sucesso ainda hoje, um milênio depois?
Em primeiro lugar, as próprias histórias, sempre interessantes. Mas há um elemento adicional e muito importante: Scheherazade é a precursora de algo que, sob várias formas, representaria um sucesso crescente: a narrativa seriada.
O primeiro impulso para isso foi a invenção da imprensa, que permitiu a existência do livro, do jornal, da revista – do periódico, enfim. E o periódico, por sua vez, permitiu a serialização da ficção, que chegou a seu auge no século 19, durante o qual muitos escritores populares ganhavam a vida, e às vezes faziam fortuna, escrevendo para jornais, revistas ou fascículos. Muitas das novelas de Charles Dickens foram publicadas dessa maneira. Os fascículos, impressos em Londres, eram enviados através do oceano para os Estados Unidos. Quando chegava o navio trazendo tais fascículos, multidões acorriam ao porto: gente ansiosa por saber o que tinha acontecido com a Pequena Nell. Do mesmo modo as histórias de Sherlock Holmes foram originalmente criadas por Arthur Conan Doyle para serem publicadas em série na revista The Strand. Na França, Eugène Sue era muito popular, e seu trabalho foi analisado por ninguém menos do que Karl Marx. No Brasil, o gênero recebeu a denominação de folhetim e atraiu escritores do porte de um José de Alencar. O Guarani estreou assim, coisa que é fácil de perceber na leitura do livro: os capítulos são relativamente curtos, têm aproximadamente a mesma extensão e sempre terminam com um suspense cujo evidente objetivo era fazer o leitor correr à banca no dia seguinte para acompanhar as aventuras de Peri.
O cinema aproveitou a mesma fórmula nos chamados “seriados”, filmes de aventuras, em geral de reduzido orçamento e que contavam sempre com três personagens: o mocinho, a mocinha e o bandido. O malvado bandido estava colocando o mocinho ou a mocinha ou ambos em situações de perigo – a mais clássica sendo aquela que mostra a heroína amarrada aos trilhos da ferrovia e retorcendo-se desesperada enquanto o trem se aproxima a toda a velocidade (no derradeiro segundo, o mocinho a salva). O seriado em geral tinha quinze capítulos; cada capítulo era exibido na matinê de domingo, junto com os dois filmes principais e desenhos. Exemplos famosos são Os perigos de Nyoka e As aventuras de Flash Gordon. Heróis das revistas em quadrinhos, como Super-Homem, Batman e Capitão América, também chegaram às telas em seriados. A propósito, programas radiofônicos com esses e outros heróis (no Brasil, o Sombra e o Vingador eram muito populares) tinham grande audiência.
Mas foi com a tevê que a serialização chegou a seu auge. E a forma mais popular são as novelas, conhecidas nos Estados Unidos como soap operas, porque várias eram patrocinadas por empresas produtoras de sabonete, caso da Colgate-Palmolive e da Procter & Gamble. Essa forma televisiva atingiu o auge em 1978, quando a CBS levou ao ar Dallas, que projetou Larry Hagman e que adicionou à trama o elemento de mistério: quem matou J.R.?, era a pergunta que todos os americanos se faziam. Seguiu-se uma contrapartida brasileira: a morte de Odete Roitman era o grande mistério da novela Vale tudo, de Gilberto Braga, exibida entre 1988 e 1989, com enorme sucesso: na noite de 6 de janeiro de 1989, em que o segredo foi finalmente desfeito, o Ibope registrou que 86% dos televisores ligados no país estavam sintonizados na Globo. Mas o gênero não era novo no Brasil. Uma das primeiras novelas a fazer sucesso era ambientada, como as Mil e uma noites, no misterioso Oriente: era O Sheik de Agadir (1966), de Gloria Magadan. De início, predominava nas novelas um clima romântico, fantasioso e ingênuo, mas aos poucos as produções, cada vez mais cuidadas, começaram a refletir as inquietações da classe média brasileira, que forma o grande público das novelas. Paralelamente a estas, e dirigidas a uma audiência mais restrita, surgiam as séries televisivas, várias delas inspiradas em clássicos da literatura, como Os Maias, de Eça de Queirós.
Conclusão: as Mil e uma noites fizeram escola. Tivesse nascido no Brasil de agora, Scheherazade arranjaria fácil um emprego como escritora de novelas, ganhando um bom salário. Dúvida: poderia ela prescindir da ameaça do ciumento sultão? Talvez sim, mas nesse caso a pergunta se impõe: de onde tiraria inspiração para suas histórias? Disse Samuel Johnson, intelectual inglês do século 18, que nada concentra mais a mente do que a certeza de que se vai ser executado na manhã seguinte. A bela Scheherazade é uma prova disso.
Moacyr Scliar é escritor e autor de mais de 30 obras nos mais diferentes gêneros. Dentre seus trabalhos, estão A mulher que escreveu a Bíblia e Saturno nos trópicos (Editora Companhia das Letras)
(2) Comentários
Belíssima reflexão psicológica sobre o encantamento que contos e histórias exercem sobre as pessoas. Além disso, Scliar traça um panorama evolutivo dos desdobramentos dos mesmos em diferentes meios (literatura, cinema e televisão). Texto instigante (e creio fundamental) para os apaixonados por narrativas de vários matizes.
Muito legal o texto