A Al-Jazeera das ruas

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A Al-Jazeera das ruas

Marcos Flamínio Peres

Ele estava na Praça Tahrir, o centro do mundo naquele momento e para onde todos os olhares convergiam, aguardando a queda do ditador Hosni Mubarak.

“Foi a primeira vez na vida que entendi que estava vivendo a história”, afima Mark LeVine, professor na Universidade da Califórnia e autor de Heavy Metal Islam (Three Rivers Press, EUA).

E, em regimes tão fechados como eram o tunisiano e o egípcio, foi a música – em especial o rap e o rock – que canalizou os protestos políticos.

“A música teve um efeito catártico sobre a juventude”, diz LeVine, que concedeu a entrevista abaixo pouco antes de embarcar para Dubai, onde iria dar uma palestra sobre o assunto.

Ainda assim, ele vê diferenças marcantes na música dos vários países da região. Irã e Marrocos, por exemplo, aceitam melhor a influência do Ocidente, enquanto Síria e Egito são mais reticentes.

Entusiasmado, LeVine considera o que vem ocorrendo nos países árabes como muito mais complexo do que o Maio de 68 – violentos protestos de estudantes e trabalhadores pelas ruas de Paris.

Mas discorda dos que argumentam que as redes sociais exerceram papel decisivo na queda desses regimes. Elas tiveram sua importância, “mas não foram o motor da revolução”.

CULT – O hip hop e o heavy metal foram em parte responsáveis por dar início às rebeliões entre os jovens dos países árabes?
Mark LeVine – Dizer que alguma música pode provocar uma revolução é uma superinterpretação. O que é possível afirmar é que, sob muitos aspectos, a música a antecipou. O hip hop e o heavy metal no Oriente Médio foram – para parafrasear Chuck D, do Public Enemy – a CNN das ruas ou, talvez ainda melhor, a Al-Jazeera das ruas árabes.

Como o fundador da cena metal no Marrocos disse certa vez: “Nós tocamos heavy metal porque nossas vidas são heavy metal”. Nesse sentido, a música exerceu um importante papel nas revoluções como termômetro do desespero e da raiva e também como efeito catártico sobre a juventude.

Quais são os epicentros da música de protesto no mundo árabe? Quais as diferenças culturais mais importantes entre eles?
Considero Casablanca (Marrocos), Túnis (Tunísia), Cairo (Egito) e Beirute (Líbano) as cidades mais importantes. Mas são diferentes entre si, porque o modo como a música popular foi incorporada a cada um desses países é diferente. Nenhuma é mais importante que a outra. Mas podemos entender a particularidade da cultura e da dinâmica política de cada país por meio da exploração das particularidades da música e do modo como os estilos ocidental e nacional convivem.

E de que modo essas cidades fazem essa síntese?
Isso depende da cultura e do relacionamento com o Ocidente. Acho que países como Marrocos, Paquistão e Irã têm sido tão híbridos ao longo dos séculos que a música reflete mais facilmente a realidade. Lá o metal é em geral mais aberto, misturando mais os estilos.
Já em países como Egito e talvez Síria ou Iraque, o metal parece muito mais homogêneo – talvez pelo fato de a cultura árabe ser tão dominante internamente.

Quais as principais influências dos metaleiros e rappers árabes?
Se está se referindo às influências ocidentais, são certamente o gangsta rap, em particular 2Pac. E isso por causa do modo como misturou raiva e comentário político.

Já no metal, as principais inspirações incluem Black Sabbath, Deep Purple e, claro, Iron Maiden. Igualmente importantes, porém, são as bandas de extreme metal, como Cannibal Corpse, Deicide, Death, Slayer e outras. E, na última década, Rage Against the Machine e System of a Down tornaram-se influências muito importantes.

Como essas músicas eram vistas pelas elites políticas?
Nos anos 1990, o metal era considerado “música satânica” e houve vários casos de músicos que foram presos e ameaçados de execução pelas forças religiosas. Isso vem mudando nos últimos anos, mas a música ainda não é parte do mainstream.

Então o que houve no Egito foi antes artístico que político?
Absolutamente. O Egito estava dividido entre uma massa que não estava envolvida diretamente nos protestos – talvez 95% da população – e uma pequena minoria, embora significativa, que desejava arriscar tudo por mudanças reais.

E, sob qualquer aspecto, toda revolução, para ser bem-sucedida, tem de ser tanto política quanto cultural. Essa é a razão por que a queda do rei Farouk pelos militares, em 1952, não foi de fato uma revolução, mas, sim, um golpe de Estado. O que acabou de acontecer foi de fato a primeira revolução que o Egito teve, com exceção da revolta de 1919, que foi esmagada pelos britânicos. Artistas com longas ligações com o regime foram à Praça Tahrir para dizer que, de repente, passaram a apoiar a revolução, mas foram literalmente atacados e tiveram de sair de lá sob a proteção do Exército.

É uma boa questão saber como essas estrelas do antigo regime de Mubarak, algumas delas as mais populares do Egito, vão agir sob a nova ordem. A resposta a essa pergunta vai dizer muito sobre a forma da nova cultura que, lenta e dolorosamente, está emergindo no Egito. O senhor esteve na Praça Tahrir, no Cairo, durante os protestos que levaram à queda do ditador Hosni Mubarak.

Pode-se dizer que foi um Maio de 68 árabe?
Cada dia tinha sua própria dinâmica e suas próprias sensações e, em certos momentos, podíamos passar da euforia ao medo em apenas poucas horas. Eu podia sentir a força da história, como uma onda passando não apenas através de mim, mas através de todas as pessoas reunidas na praça.

Contudo, acho difícil comparar esses protestos ao Maio de 1968, pois não estou seguro de que o Maio de 68 [em Paris] tenha sido uma revolução – pelo menos não no sentido que foi a Revolução Francesa [em 1789]. Foi muito mais algo social do que uma revolução política ou econômica. E, embora 68 tenha marcado o fim da França do pós-guerra, não podemos compará-lo com o que vem ocorrendo no Egito, que pode completar uma transição para a democracia. E para isso vai precisar, simultaneamente, de uma revolução política, econômica e cultural.

As redes sociais foram tão importantes para a queda de Mubarak como se diz?
Toda revolução tem seus próprios modos de comunicação – a Revolução Francesa usava panfletos, a Revolução Iraniana lançava mão de fitas cassetes. Claro que a mídia social foi importante, mas toda revolução só é bem-sucedida quando usa os melhores meios de comunicação disponíveis.
Como muitos dos principais blogueiros do país explicaram, essa não foi uma revolução do Twitter ou do Facebook. Eles foram importantes apenas como modo de comunicação e especialmente de publicidade.

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