Onde está o acervo de Haroldo de Campos?

Onde está o acervo de Haroldo de Campos?

No último dia 27 de janeiro, o acervo do poeta concretista Haroldo de Campos deixou o espaço da Casa das Rosas, na Avenida Paulista, onde estava instalado desde 2004, e foi direcionado a uma reserva técnica. A coleção conta com mais de 21 mil itens bibliográficos adquiridos e anotados pelo poeta, além de móveis e obras de arte doados pela sua família ao estado de São Paulo.

As atividades do casarão são administradas desde 2008 pelo Instituto Poiesis, uma organização social que atua na gestão das Fábricas de Cultura e da Rede de Museus-Casas da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo (SCEIC), que compreende também as casas Guilherme de Almeida e Mário de Andrade.

Em nota, a secretaria afirmou que, para garantir condições adequadas para a preservação da coleção de Haroldo de Campos, o acervo foi transferido para uma reserva técnica, com ambiente apropriado para preservar os itens. Segundo a nota, a visitação e a consulta aos materiais podem ser feitas mediante agendamento.

Ainda segundo a secretaria, a coleção está na Clé Reserva Contemporânea, em Barueri, um local “especializado em obras de arte e com as condições ideais para a preservação das coleções, que são raras e de grande valor histórico”. Todos os materiais, de acordo com a pasta, estarão disponíveis para consulta no final de março de 2025 e o agendamento pode ser solicitado através do e-mail contato@casadasrosas.org.br.

A empresa Clé – reserva contemporânea de obras de arte – afirma funcionar no formato de self storage, isto é, sem equipe especializada em preservação e catalogação das obras, o que fica a cargo do contratante. Em seu site, a empresa garante “instalações com tecnologia de ponta para climatização, controle de temperatura e umidade, sistemas integrados de segurança e de prevenção contra incêndio”. Contatada pela reportagem, a Clé afirmou que não pode dar informações sobre o acervo da Casa das Rosas, em razão de contrato de confidencialidade com a Poiesis. A organização social não concedeu informações diretas à reportagem. O contrato de gestão que concede ao Instituto Poiesis o direito de atuar no âmbito da secretaria prevê que deve ser submetida à aprovação prévia da pasta “planos de ação de projetos culturais que impliquem a restauração de obras do acervo artístico, histórico e cultural, caso a instituição não conte com estrutura própria”.

Ex-diretor da Rede de Museus-Casas Literários de São Paulo, entre 2016 e 2024, Marcelo Tápia conta que foi informado pela atual responsável pela gestão dos museus, Renata Cittadin, que o motivo da transferência do acervo foi a existência de umidade no ambiente em que permanecia, agravada pelas fortes chuvas, o que poderia ameaçar sua adequada preservação.

Segundo Tápia, a responsável afirmou que o acervo estaria deslocado apenas temporariamente, mas a Secretaria de Cultura não confirma a informação, o que inquieta pesquisadores como Julio Mendonça, poeta que esteve na coordenação do Centro de Pesquisa e Referência Casa das Rosas entre setembro de 2014 e junho de 2024. “Considero imprescindível o retorno [do acervo], o mais breve possível. É plausível que as novas acomodações do acervo sejam seguras, conforme a direção afirma. Ainda que o retorno do acervo à Casa das Rosas aconteça e não demore muito, a situação é preocupante, pois o acesso é mais difícil”, afirma.

De “casa literária” a “museu-casa” 

Em 2023, após quase dois anos fechada para reformas, a Casa das Rosas retomou suas atividades com um novo contrato de gestão com o Instituto Poiesis, que entrou em vigor em abril de 2023. As novas diretrizes de política cultural da Secretaria de Cultura exigidas para o espaço propunham maior evidência ao próprio imóvel e a seu histórico de concepção e construção, ligado ao arquiteto Ramos de Azevedo.

Segundo Marcelo Tápia, a ampliação dos focos do museu “levou à necessidade de restringir atividades no campo da literatura – o que se refletiu no conjunto de ações ligadas à obra de Haroldo de Campos”.

O museu, que leva o nome Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura por uma exigência da família do poeta no termo de doação de seu acervo, passou a ser referido dessa forma apenas oficialmente. Hoje, quem visita a Casa das Rosas não vê referência ao nome de Haroldo de Campos.

“A equipe das áreas de atividades culturais e educativas da casa, e eu, como diretor, fizemos grande esforço para equacionar as obrigações contratuais de modo a preservar ações relacionadas ao legado de Haroldo de Campos, dirigidas a diversos públicos. Mas as novas diretrizes também levaram a interpretações (equivocadas, no meu entendimento) que desprivilegiavam a presença do poeta no museu”, diz Marcelo.

Julio Mendonça afirma que, em 2024, com a saída de Marcelo Tápia da direção dos três museus (até então chamados de Museus-Casa literários: Casa das Rosas, Casa Guilherme de Almeida e Casa Mário de Andrade), a nova direção passou a dar novas orientações. “A meu ver, não respeitavam o Plano de Trabalho firmado. No mês seguinte, fui demitido”, conta.

A rede de museus-casa ainda conta com o acervo do intelectual modernista Guilherme de Almeida, uma coleção de objetos, mobiliário, obras de arte, livros, periódicos e documentos associados ao escritor. Ainda não é certo se os outros acervos da rede terão o mesmo destino que o de Haroldo de Campos.

“Qualquer retirada de itens que integram o museu compromete a memória não só do poeta e de sua esposa, Baby de Almeida, como de um período histórico e das relações pessoais que mantinham com personalidades marcantes do movimento modernista”, afirma Tápia, que conclui: “Os acervos são patrimônio público que integra os museus e neles deve permanecer a menos que haja fortes razões relacionadas a sua preservação para sua retirada.”

Muito mais do que um arquivo

A perspectiva de que a mudança do acervo da Avenida Paulista para Barueri seja permanente é a que mais preocupa o público, dada a dificuldade de acesso para pesquisa no arquivo, que é de valor ímpar para a história da literatura brasileira.

Durante os vinte anos em que residiu no subsolo da Casa das Rosas, o acervo esteve à disposição do público pesquisador, que se servia não só das informações bibliográficas básicas das obras, mas também de informações adicionais a respeito de marcas e comentários do autor nas páginas das obras. “No caso de um autor como o Haroldo, que anotava muito e fazia índices remissivos, significa informação muito valiosa para pesquisadores”, lembra Mendonça, que trabalhava com os interessados no acervo.

Além do atendimento às buscas por pesquisa, a Casa das Rosas oferecia regularmente a Bolsa Haroldo de Campos, que amparou uma série de projetos de pesquisa e tradução da obra do poeta. O público não-especializado era contemplado com palestras e cursos do programa “Páginas Abertas”, que tinha o objetivo de divulgar mais amplamente o acervo. O trabalho contribuiu para manter viva a obra do poeta, crítico e tradutor – “um dos mais decisivos e influentes que este país já produziu”, nas palavras de Mendonça.

O Acervo Haroldo de Campos é composto por livros e periódicos que faziam parte da biblioteca do poeta e por objetos e obras de arte de sua coleção pessoal. A esse acervo inicial, foram acrescentados, por aquisição e doação, respectivamente, outros dois acervos: a coleção de Max Bense e a de Luiz Carlos Vinholes.

Filósofo, erudito e poeta alemão, Max Bense se correspondeu intensamente com Haroldo de Campos e os demais poetas concretos, com quem nutriu amizade. O acervo, adquirido em 2014, é composto de 261 documentos, em sua maioria cartas (cerca de 180 cartas de Haroldo de Campos a Max Bense e Elisabeth Walther-Bense, enviadas entre 1959 e 2003) e outras formas de correspondência entre Haroldo de Campos e o casal Max Bense e Elisabeth Walther-Bense, conta Julio Mendonça.

Luiz Carlos Vinholes, por sua vez, é um poeta e compositor brasileiro, considerado pioneiro da música aleatória no país. “Iniciando como adido cultural no Japão, contribuiu para os contatos dos poetas concretos brasileiros com os poetas experimentais japoneses, que resultaram em exposições e publicações”, acrescenta Mendonça. O conjunto reúne, hoje, mais de 800 itens.

Além disso, em 2013, a direção da Casa das Rosas decidiu criar um acervo bibliográfico do Centro de Referência Haroldo de Campos, que adquire anualmente publicações importantes para o estudo da obra do poeta. Esse acervo é composto, atualmente, de 503 publicações.

Mendonça destaca que nenhum outro escritor brasileiro manteve tão amplo, atualizado, inteligente e generoso diálogo com outros autores, brasileiros e estrangeiros, quanto Haroldo de Campos. “Esses diálogos e redes de comunicação laboriosamente articulados ao longo de sua trajetória podem ser claramente rastreados no acervo – por exemplo, nas muitas dedicatórias e notas escritas por interlocutores da importância de Octavio Paz, Jacques Derrida, Severo Sarduy, Julia Kristeva, Umberto Eco, Max e Elisabeth Walther-Bense, Benedito Nunes, Lucia Santaella, Julio Cortazar, Inês Oseki-Dépré, entre muitos outros”, diz.

“O acervo sempre foi, para nós, o núcleo orgânico, vivo, da atuação do Centro de Referência no sentido de dar continuidade ao legado de Haroldo, promovendo pesquisa, debate, reflexão e criação”, completa Mendonça. “Neste sentido, seu conjunto de livros e documentos significa muito mais do que um arquivo: é seiva cultural nutrindo novas pesquisas e criações.”

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