Surrealismo e negritude francófona

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Surrealismo e negritude francófona

 

A María Elvira Díaz-Benítez

Introdução necessária sobre questões invisíveis

Convidada a participar deste número espacial, aceitei abordar Surrealismo e negritude, depois de rápida discussão com seu organizador, desde que pudesse partir dos termos exatos do convite inicial, que propunha: “Como Césaire, Damas e Senghor, entre outros, tiveram relações com Breton e o Surrealismo francês, acredito que um artigo seu seriaetc.”.

A referência a três grandes poetas negros – Césaire, Damas, Senghor – elude, ou melhor, apaga, uma diferença fundamental que só pode ser captada se retornamos ao problema – praticamente invisível – pelo uso corrente, no Brasil, de traduções de textos (poemas, romances e ensaios) originalmente escritos em francês para o português. O problema está longe de ser único. Ele ocorre igualmente em Portugal e ainda pode ser encontrado em sentido inverso: o uso de traduções para o francês de textos (poemas, ensaios e romances) escritos originalmente em português.

Um artigo pouco conhecido de Eduardo Lourenço denunciava – havia bastante tempo – uma “comunicação assimétrica” entre França e Portugal. Em vários textos, redigidos em francês – aliás, nunca citados em artigos escritos por lusófonos –, retomei, discuti e alarguei a análise do ensaísta português, adaptando seu modelo para descrever não uma dupla, mas uma tripla comunicação assimétrica entre França, Portugal e Brasil. Na realidade, comunicação tornada assimétrica ao longo do tempo de cada país com os dois outros. Em outras palavras, não só se esvaiu o antigo intercâmbio lusófono Novo Mundo-Velho Mundo (Brasil-Portugal), ainda plenamente atuante, em mão dupla, aliás, na época de Machado ou de Eça, como também se deteriorou progressivamente o intercâmbio, digamos, entre lusofonia e francofonia por falta de conhecimento da “outra” língua. Todos, ou quase todos, parecem precisar de traduções, cada vez mais feitas de forma mecânica ou apressada.

Assim, hoje, poucos intelectuais e críticos brasileiros (e também portugueses), inclusive professores de teoria da literatura, com 40 ou 50 anos (e até mais), são capazes de ler um texto escrito em francês do nível do terceiro ano da Aliança Francesa sem recorrer à internet, a traduções ou a citações de citações. As exceções são raras.

A queda do francês como língua internacional e de cultura provocou falhas (não há outra palavra) que se incrustaram profundamente como pontos cegos nos ensaios universitários, dos dois lados do oceano. Os erros se tornaram invisíveis porque foram plenamente adotados pelos leitores, e qualquer comentário a respeito provoca surpresa e até escândalo.

Não se tem mais ideia das armadilhas e dos “falsos amigos” que nos aguardam, porque o trajeto de uma língua para outra está cheio de palavras semelhantes, mas traiçoeiras. Pior ainda: infiéis e pérfidas. Às vezes, entre palavras perfeitamente inócuas que se pensa conhecer, um tradutor ou professor de literatura têm um longo caminho pela frente, porque deve considerar não apenas significados, mas também conotações desconhecidas ou anteriormente imprevistas que se tornaram comuns. Os estudos de literatura comparada e a tradução do texto literário sofrem necessariamente se não lhes for dada maior atenção. Mas não acreditemos que o problema seja apenas de estudantes ou iniciantes: é muito mais insidioso.

Consideremos um exemplo qualquer, muito simples: eu posso dizer em português “hoje de manhã, me sinto esquisita”. Todos, brasileiros e portugueses, compreendemos de imediato. Eu não me sinto bem. Mas seria absolutamente ridículo, cabotino mesmo, eu dizer em francês: “Ce matin, je suis exquise”.

A não compreensão da diferença modifica completamente o sentido do jogo surrealista do “cadavre exquis”. A má tradução em português se tornou viral – adotada até mesmo por especialistas do Surrealismo tanto numa revista cultural da qualidade de Agulha quanto num museu de Portugal – apesar de absurda –, e sobretudo por dificultar a compreensão não só de um jogo fundador, como também daquilo que André Breton denomina de “le hasard objectif”.

Abordaremos a seguir frases, ou melhor, conceitos, que se repetem em literatura comparada, no ensino superior, sem compreendê-los completamente, porque certas palavras, mais do que falsos amigos, são “traidoras” na língua do Outro.

Não há nem mesmo como discutir. É abrir qualquer dicionário francês (Larousse, Robert, Littré etc.): exquis(e), em francês, como em espanhol, aliás, significa “delicioso”, “delicado”, “refinado”, “encantador”, “gracioso” etc. O adjetivo francês pode acompanhar um vinho ou um prato de alta gastronomia (un vin exquis, un mets exquis) ou o lindo vestido de casamento de uma noiva (la mariée portait une robe exquise), descrever uma menina bem educada e refinada (une jeune fille exquise) ou maneiras elegantes e nobres de um velho aristocrata (des manières exquises) etc. Suas conotações são todas, e sempre, positivas. Ao contrário do uso corrente no Brasil e em Portugal hoje, em que esquisito implica conotações pejorativas ou uma crítica negativa.

De maneira semelhante, apesar da homofonia perfeita, hasard, em francês, não pode ser traduzido por azar. Assim, le hasard objectif que preside ao jogo surrealista criado por Breton, deve ser traduzido por “o acaso objetivo”. Não se pode confundir o encontro, imprevisto e inédito de palavras, nascido do acaso, com um encontro presidido pelo azar. Neste, reinam o mau-olhado, a má sorte, o negativo; naquele, o leque aberto de todas as eventualidades inesperadas que escapam à simples razão racional. O jogo abre novas perspectivas sobre o mundo e sua expressão.

Há ainda o contexto histórico a ser levado em conta. O Surrealismo de Breton se modifica com o passar do tempo, e suas condenações ao que considera, num determinado momento, heresias se tornam passíveis de crítica. O que afirma Breton, em 1930, no segundo Manifesto surrealista – “l’acte surréaliste le plus simple, consiste, revolvers aux poings, à descendre dans la rue et à tirer au hasard, tant qu’on peut, dans la foule” [o ato surrealista mais simples consiste, revólveres em punho, em descer à rua e atirar ao acaso, tanto quanto possível, contra a multidão] –, se torna inaceitável poucos anos mais tarde, com a subida do nazismo e depois o início brutal da Segunda Guerra.

Por outro lado, para abordar o encontro – realmente fértil – do Surrealismo com a negritude francófona é preciso considerar as primeiras revistas “negras” publicadas em Paris, assim como a frequência de cada uma delas e, evidentemente, sua recepção crítica: a revista l’Etudiant noir, dirigida por Aimé Césaire, teve apenas dois números (março e maio-junho de 1935), e antes dela, Légitime defense, dirigida por René Ménil, um único e solitário número, de 1932. Breton e seus seguidores simplesmente não tomaram conhecimento dessas duas publicações de estudantes negros do Império francês que afirmavam coletivamente seu espírito de rebelião. As duas revistas permaneceram, aliás, por muito tempo quase sigilosas e praticamente não tiveram feed back fora do meio estudantil.

Enfim, os três poetas – Césaire, Damas, Senghor –, citados por Paulo Henrique Pompermeier no seu convite, são, na época de seus estudos em Paris, não só muito jovens, como muito diferentes entre si. Senghor, o mais velho dos três (1906-2001), senegalês franzino e de baixa estatura, da etnia minoritária serere, num país onde predominam os wolofs muito altos, é, na época, na gíria dos estudantes de Paris, um “tala”, com acento na última sílaba (ou seja, um católico praticante que vai à missa). Damas, nascido na Guiana Francesa (1912-1978), é um mulato de boa família de funcionários “assimilados”, dandy elegante, frequentador de bares dançantes do Quartier Latin, depois de uma infância infeliz como órfão de mãe ao nascer, tendo sofrido ainda de afasia grave até os cinco anos. E Césaire, o mais jovem (1913-2008), bolsista vindo da Martinica, filho de uma família numerosa e pobre do norte da sua ilha natal, aquele que, no dizer da sua futura mulher, Suzanne Roussi, tinha “les deux pieds gauches” [os dois pés esquerdos] (o que significa não saber dançar). Suzanne Roussi (1915-1966), que toma o sobrenome Césaire pelo casamento a partir de 1937, fazia parte igualmente desse grupo de jovens estudantes de cor em Paris: é uma bonita chabine (mulata clara de olhos esverdeados), como se diz nas Antilhas francesas.

Aliás, do ponto de vista teórico, a concepção de negritude do africano Senghor será sempre bastante diferente em relação à dos antilhanos: a de Senghor, muito mais próxima de um essencialismo (haveria uma essência com características próprias em cada negro, herdada pelo sangue), e a dos dois “americanos”, claramente existencialista, ou seja, enraizada numa memória coletiva dolorosa de exílio e alienação, perda e escravidão. A diferença já foi muitas vezes analisada entre as duas concepções opostas de negritude, e os três poetas têm, nas suas trajetórias pessoais, relações diferentes com o Surrealismo de Breton.

1. Lendo o jogo surrealista fundador

A leitura do início deste texto pode ser incômoda para a maioria dos falantes lusófonos. O erro de compreensão está tão instalado que o leitor pode supor má vontade da minha parte ou a necessidade maníaca de complicar as coisas simples, ou ainda, como se diz em francês, dividir um fio de cabelo em quatro (fendre ou couper un cheveu en quatre).

Só tomei consciência da extensão do fato ao deparar, há dois anos, com um cartaz espalhado pela Baixa de Lisboa anunciando um espetáculo que percorria o país, uma peça teatral destinada a um público culto, amante da vanguarda. O cartaz anunciava “Cadáver esquisito” em letras garrafais: apresentava o rosto de um jovem, composto por vários pedaços de rostos diferentes. Parei perplexa, e um colega português que me acompanhava, antigo professor de história num liceu, não conseguia entender meu espanto. Fotografei o cartaz.

Como traduzir para o português este exemplo canônico do jogo surrealista, que se tornou célebre, le cadavre exquis boira le vin nouveau? Como encontrar uma equivalência que não seja traição ao sentido original? Podemos sempre escrever “o cadáver delicioso beberá o vinho novo” e/ou “o cadáver refinado etc.”? Como compreender a frase?

Analisemos um pouco mais de perto a expressão em francês. A má tradução para o português exala, ou antes impõe, uma forma grotesca, meio assustadora, de vampirismo vulgar, como podemos constatar com facilidade. Parece filme de horror barato para adolescentes. Afinal, de quem é esse cadáver estranho?

Tanto em francês quanto em espanhol, a frase sugere um ser morto (animal ou humano?), que exala encanto e, ao mesmo tempo, se abre a um futuro (?), portanto a uma outra forma de vida, ao ingerir uma bebida nova. Ou ao embeber-se num vinho novo.

Numa primeira tradução (cadáver delicioso…), seria um prato de alta gastronomia, e o cadáver (caça nobre faisandée ou peixe fino de alto-mar), antes de ser servido num jantar de festa, é assado com o vinho novo (o novo Bordeaux de cada ano, por exemplo) e seria comido com vagar e prazer: uma forma indireta e surpreendente de encontro com a antropofagia brasileira dos anos 1920, o que, aliás, não deixaria de ser bastante interessante.

Na segunda solução (cadáver refinado…), o morto seria humano: uma retomada metafórica da crença dos antigos no Leté, fonte ou rio do além-túmulo, onde as almas se purificam dos acidentes e falhas da sua vida terrestre graças ao esquecimento. Este surge, em cada Justo, ao mergulhar nas águas do Leté. O rio mitológico está presente no Livro X da República, de Platão, no qual se encontra a narrativa do soldado Er, o Panfilio, o que volta para contar os mistérios da reencarnação das almas. Vergílio também fala disso (En., VI), e sobretudo Dante no seu poema (Purg., XXVIII, v. 127-133). O Justo o atravessa para o outro lado, e o rio muda de nome: torna-se Eunoé, que faz perdurar a memória do Bem no falecido, e seu sabor ultrapassa a todos os demais (“a tutti altri sapori esto è di sopra” = a todos os outros sabores, este os suplanta). Assim, a água do Leté conclui a purificação dos Justos e lhes permite ascender enfim ao Paraíso, no final da ascensão da montanha do Purgatório. O Leté ainda retorna na poesia de Baudelaire (ver o poema “Léthé”, do volume Les Fleurs du mal, edição definitiva, 1867), com um outro sentido, mas sempre com poder de atração poderosa. Um corpo morto (delicioso ou refinado) que bebe ou se embebe tem, portanto, uma ilustre e longa ascendência literária.

Em resumo: a tradução corrente e imediata em português não só é pobre, como também empobrecedora, inclusive porque faz crer que a finalidade do jogo surrealista é criar frases estapafúrdias, carentes de sentido. Se sugerimos dois adjetivos em português para “exquis” e duas interpretações diferentes para “cadavre” (corpo morto de animal, terrestre ou marinho, transformado em prazer de alta gastronomia ou cadáver humano que alcança a purificação paradisíaca), isso significa que a fórmula inicial, em francês, é um condensado de conotações simbólicas mais rico do que a solução “esquisito”, unívoca e sem sentido. Ora, a formulação em francês nasce do “acaso objetivo” (e não do azar) e de um jogo coletivo que junta palavras às cegas.

Do ponto de vista cultural, o que é muito inquietante é a difusão da falsa tradução que não suscita mais surpresa nem discussão entre portugueses e brasileiros que falam/aprendem cada vez menos francês. Ela aparece até em revistas universitárias dos dois lados do Atlântico, em artigos assinados e em teses aprovadas de literatura comparada. Até mesmo, às vezes, na excelente revista Agulha, sobretudo nas entrevistas em português. Uma fundação cultural portuguesa, especializada no Surrealismo, propõe aos seus visitantes um ateliê com o jogo do “cadáver esquisito”.

 A língua portuguesa faz, portanto, bande à part. E não é um exemplo único: surgirá, anos mais tarde, um outro trio problemático, créole-criollo-crioulo, que mereceria uma outra discussão.

Essa contextualização linguística tem uma certa importância se não quisermos aumentar a cacofonia nos estudos literários comparatistas. Aliás, no estudo do Surrealismo na América, é preciso considerar ainda dois outros fenômenos: a) por um lado, o Surrealismo, em particular o de Breton, grande poeta que se fecha sempre, de forma exclusiva e radical, na língua francesa, ao recusar falar e escrever outra língua, se torna uma história americana, apesar do exílio de Breton nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra, acompanhado, aliás, pelo exílio de vários anos de um bom número de artistas plásticos, poetas e intelectuais franceses que vivem um pouco por toda parte durante os anos 1940 (no México, no Chile, na Argentina, no Brasil, no Peru, em Cuba etc.); e b) por outro, seria necessário definir faixas temporais diferentes, porque certos países americanos – caso do Brasil – conheceram e praticaram uma estética surrealista antes do seu antigo colonizador. O Surrealismo português, tanto em artes plásticas quanto em literatura, é posterior ao Surrealismo brasileiro.

A revista antilhana Tropiques

A revista que marca o encontro de Breton com a poesia da negritude é Tropiques, publicada em Fort-de-France (Martinica), durante quatro anos, de abril de 1941 a maio de 1945, com 14 números, vários duplos, aliás. Tropiques é criada e dirigida por Aimé Césaire em colaboração com René Ménil e Suzanne Césaire. Encontro exaltante e profícuo, com consequências para ambos os lados, para a negritude e o Surrealismo, até mesmo para a poética de Breton.

Graças ao empenho de María Elvira Díaz-Benítez, diretora da editora Papéis Selvagens, do Museu Nacional da UFRJ, no Rio, várias traduções sobre a poesia da negritude foram publicadas recentemente: A grande camuflagem: Escritos de dissidência (1941-1945) (2021), de Suzanne Césaire, com tradução de Júlio Castañón e posfácio de Lilian Pestre de Almeida; eu, laminária… últimos poemas (2022), de Aimé Césaire, com tradução, posfácio e notas de Lilian Pestre de Almeida; e Pigmentos: Nevralgias (2023), de Léon-Gontran Damas, com tradução de Lilian Pestre de Almeida, notas, cronologia, posfácio e bibliografia com a colaboração com Antonella Emina.

Note-se que as duas últimas publicações são igualmente edições bilíngues (francês/português), o que é pouco comum entre nós, para que o leitor possa sempre voltar ao texto original de cada poema, cotejando-o com a versão em português.

Indicamos ainda o último número da revista Agulha, de setembro de 2024, em que se encontra a descrição pormenorizada do conjunto de números da publicação martinicana.

O que nos interessa ressaltar aqui é o encontro de escritores, movimentos literários e visões de mundo diferentes. O que cada movimento traz ao outro? Em que medida houve modificações de um lado e do outro?

Voltemos ao trio fundador de Tropiques. Césaire se casa com Suzanne Roussi ainda em Paris em 1937, e o casal volta à Martinica em 1939, pouco depois da publicação da primeira versão do poema “Cahier d’un retour au pays natal” [Caderno de um retorno ao país natal] na revista Volontés e pouco antes do início da Segunda Guerra. René Ménil (1907-2004), um pouco mais velho, antigo diretor da revista Légitime défense, se junta ao casal na nova revista. São todos professores do liceu Schoelcher, de Fort-de-France. Damas não faz parte da equipe porque sua trajetória é diferente e continua na França, durante toda a guerra, trabalhando na rádio France. A nova revista se faz com os meios disponíveis na pobreza cultural da Martinica sob o governo de Vichy, cercada inicialmente pela Marinha britânica e depois pela Marinha anglo-americana até o armistício regional de 1943: os redatores financiam a revista com seus salários de professores; ela sai, no início, com mil exemplares, depois com tiragem de 600 a 700 exemplares.

Do trio diretor, a figura mais rápida, cortante e aguerrida, aquela que reage de imediato e cria fórmulas de impacto que serão retomadas e desenvolvidas pelos colegas homens, é Suzanne. É dela a fórmula “la poésie martiniquaise sera cannibale ou ne sera pas”. É Suzanne ainda quem critica ferozmente os dissidentes da Venezuela que pretendem criticar Breton e assegura ao poeta a fidelidade do grupo. Ela impressiona pela inteligência brilhante e também pela beleza. Breton publica, em Tropiques, um elogio a Suzanne, “belle comme la flamme du punch”, mas o elogio mais original é o de um etnólogo, também próximo de Breton, Michel Leiris (1901-1990): “elle est belle comme un paysage qui serait inteligent”. Césaire, por sua vez, é o grande poeta reconhecido por todos, e Ménil, o único que lê alemão, é o filósofo do grupo e o que melhor estabelece a relação entre as teses do Surrealismo e os escritos de Freud e dos filósofos germânicos.

Césaire e Ménil assinam juntos dois textos importantes sobre teoria e oralidade tradicional. Embora o casal Aimé e Suzanne nunca tenha coassinado um texto, a observação atenta dos manuscritos nos faz perceber que, na época, eles trabalhavam juntos, sentados à mesma mesa. A transcrição de um poema do marido aparece com a letra de Suzanne, num envio de textos a Breton em Nova York.

O intercâmbio entre Tropiques e Breton

Para melhor avaliarmos o intercâmbio entre Breton e seus amigos, com o grupo de Tropiques, indicamos a seguir as primeiras referências que aparecem no segundo número da revista, de julho de 1941.

Nas últimas páginas, uma nota (sem indicação de autoria) refere a passagem pela ilha de André Breton e André Masson, assim como de Wilfredo Lam. Faz alusão ao Manifesto surrealista e à arte primitiva. Frase importante: “Não foi como turista que André Breton viu a Martinica, mas como um sonhador que encontrou, ao desviar do seu caminho, uma região do seu sonho. Propomos, no nosso próximo número, dar à estética surrealista a atenção que exige a sua importância”. A nota cita ainda três parágrafos de um texto de Paul Éluard, analisando a pintura de Masson e finaliza com Wilfredo Lam: “O espantoso pintor negro cubano em quem se encontram ao mesmo tempo o melhor do ensinamento de Picasso, as tradições asiáticas e africanas curiosa e genialmente misturadas”.

Em todos os números seguintes, sem exceção, o leitor encontra exemplos de intercâmbio em mão dupla: ora novos jogos de linguagem de “cadavre exquis” ou de “beau comme”, ora poemas de Breton ou de seus amigos, ora pequenos contos fantásticos, ora análises sobre a oralidade tradicional, a imaginação ou o humor, ora a descoberta de Haiti (sua pintura, sua história ou sua religião enraizadas em terras da América) etc. E ainda o mais longo e importante texto de Césaire sobre poesia, “Poésie et connaissance” [Poesia e conhecimento].

Qualquer leitor encontra, nos livros anteriormente citados, uma descrição minuciosa de cada número. Como avaliar esse intercâmbio?

Há um duplo caminho para essa avaliação de Tropiques: uma entrevista de Césaire a Jacqueline Leiner e, sobretudo, uma avaliação crítica de cunho marxista assinada por René Ménil. Ambos os textos fazem parte da reedição da revista, de 1978, realizada por Jean-Michel Place. A avaliação de Ménil é pensada e redigida cinco anos depois da crise cultural francesa de 1968; a de Césaire flui de uma conversa amical.

O que traz Breton para o grupo de jovens de Tropiques, em que boa parte dos membros ainda não tem 30 anos? Evidentemente, segurança e visibilidade, inclusive internacional, dirá qualquer crítico. E, na avaliação de Césaire – o que me parece muito importante –, uma nova maneira de ler Lautréamont. Breton, ao redescobrir Isidore Ducasse como antepassado do Surrealismo, inaugura uma nova maneira de articular as duas faces – aparentemente irreconciliáveis – do grande vampiro maldito e do poeta convencional em prosa, e, de maneira paradoxal, permite aos jovens antilhanos encontrarem, também eles, um antepassado, inclusive “americano” do qual destacam o humor negro. Em outras palavras, Ménil e Césaire aprendem com Breton a ler Lautréamont com um novo olhar, mas o fazem à sua moda. Césaire é taxativo a esse respeito: é o primeiro aspecto que aponta quando interrogado por Jacqueline Leiner, em 1973. Por outro lado, Breton exerce o papel de “acelerador” para problemas já conhecidos e de facilitador para sua resolução. Césaire, de forma muito discreta, alude ao que Breton teria de negativo e insiste na relevância extrema do seu encontro, tão importante para ele quanto o de Senghor, quinze anos antes. Cito a seguir, já traduzidos, trechos da sua conversa com Jacqueline Leiner:

“Sim, eu fazia Surrealismo como Monsieur Jourdan fazia poesia. Não diria sem querer […], mas sem me preocupar em ser surrealista. Tinha lido os Manifestos surrealistas um tanto distraído, mas sabia o que continham. Tinha lido Légitime défense, a revista dos meus amigos surrealistas da Martinica: Léro, Monnerot, Ménil. Ela havia publicado um número […], tinha lido os pais do Surrealismo sem ser deveras um surrealista, tinha os mesmos antepassados, Rimbaud, claro, Mallarmé, os simbolistas, Claudel, Lautréamont. Minha poesia assim não saía dos Manifestos surrealistas de Breton, mas de correntes que prepararam o Surrealismo. […] Breton nos trouxe a audácia […], reduziu nossas buscas, nossas hesitações […]. encontrar Breton foi uma confirmação à veracidade do que eu achara por minha própria reflexão […], permitiu-nos ganhar tempo, andar mais rápido. Quando o encontrei, ele me fascinou literalmente. Era um homem de uma cultura extraordinária com um sentido espantoso da poesia […].”

Poderíamos continuar citando. Ou podemos nos perguntar o que os jovens de Tropiques trouxeram a Breton. Resumidamente: a) a descoberta de uma paisagem tropical com tudo o que ela contém, com que, aliás, sonhara Breton; b) um poeta que maneja a língua francesa como nenhum outro (basta ler o elogio que Breton assina em “Martinique charmeuse de serpentes: Un grand poète noir”, na Tropiques número 11, de maio 1944; e c) a comprovação de que a poesia épico-narrativa contemporânea pode existir, cujo melhor exemplo é “Cahier”.

O texto de Ménil “Pour une lecture critique de Tropiques” é, na verdade, uma avaliação da revista por um dos seus diretores, permitindo ainda apreciar a qualidade intelectual do autor, o segundo em número de textos publicados na revista de Fort-de-France. Datado de outubro de 1973, o ensaio dá a medida do atraso na grande área lusófona quanto à história da negritude francófona, tanto do ponto de vista filosófico-conceitual quanto poético. Ainda hoje, Ménil não aparece citado nos textos publicados na área lusófona, nem sua obra crítica ainda foi traduzida para o português.

A leitura feita pelo fundador de Légitime défense (de 1932), revista de antes da Segunda Guerra, ele que também foi professor de filosofia do liceu de Fort-de-France, reflete sobre o contexto histórico: dos seus principais aspectos tentaremos fazer um resumo.

Tropiques foi publicada até maio de 1943 sob censura prévia, oficial e militar de Vichy, o que explica uma série de características, provocando efeitos de estilo e de pensamento. Os leitores – sobretudo estudantes de uma ilha – sabiam que era preciso ler nas entrelinhas, interpretar os símbolos, as elipses, as antífrases. Há um aspecto comum aos textos: a ausência total justamente de Pétain, o regime de Vichy, a presença de tropas francesas – em especial de marinheiros – na Martinica. Mas houve igualmente uma outra censura, “freudiana” segundo Ménil, a censura preventiva, a autocensura. Isso explica a clara diferença de tom a partir do número 11, de maio de 1944.

“Os limites do passado só se veem no presente”, escreve Ménil. Assim, é necessário submeter os textos de Tropiques a diferentes tipos de leituras: literária, os empréstimos ao Surrealismo e aos seus procedimentos e jogos, uma leitura mitológica dos textos de Césaire (o homem-planta, o rebelde, o fim do mundo, o fogo, a explosão do vulcão) etc.

Ménil denuncia, na revista, excesso de literatura (trop de littérature), seu romantismo, uma literatura de segundo grau, assim como se diz uma equação de segundo grau, o melhor exemplo sendo ainda a pintura de Lam (La Jungle), sem que qualquer desses termos tenha aqui sentido pejorativo. Essa complexidade na escrita de Tropiques ganha aos olhos dos franceses da França uma aura de exotismo inequívoco e um certo barroquismo (segundo os trabalhos de Eugenio d’Ors). O crítico não lamenta a diversidade de filosofias na revista, explicável pela multiplicidade de problemas da realidade antilhana. O que o choca, nos anos 1970, é não ter sido apreendida aquela diversidade nos anos 1940. Outra observação importante: como os textos de Tropiques não foram reimpressos por 30 anos, a esquerda intelectual antilhana não os discutiu nem aproveitou a pesquisa coletiva realizada durante os anos de guerra. Houve assim um “refoulé de la pensée”, como diz Althusser, ou seja, toda a reflexão se tornou coletivamente inconsciente, provocando uma ruptura com seu passado. Daí o perigo, na atualidade, de contentar-se com o “à peu près” (o mais ou menos). Ménil termina sua avaliação indicando os problemas dos anos 1970: a) “problemas das línguas mal definidas” na sua natureza e no seu funcionamento; b) “problemas do folclore não diferençado da literatura”; c) “os limites recíprocos e as interações da literatura e da política, da nacionalidade a definir fora das abstrações mortas”. Por fim, Ménil saúda a republicação de Tropiques.

Conclusão aberta (sobre o futuro que já chegou)

Mais de oitenta anos se passaram desde o encontro de Breton com Tropiques. A negritude francófona conheceu posteriormente uma reavaliação e um prolongamento internos, quero dizer, antilhanos com um novo movimento, cujo chefe reconhecido é o poeta, romancista e ensaísta Édouard Glissant (1928-2011), o movimento denominado da “créolisation” ou da “créolité”. Antes de mais nada, urge oferecer ao público leitor acesso à obra de Ménil, criador da primeira revista negro-surrealista, teórico importante e poeta em prosa cheio de lirismo e humor inesperado, e ainda antepassado direto da obra ensaística de Frantz Fanon (1925-1961) e de Glissant. Qualquer leitor fará a constatação ao ler, do seu ensaio Tracées: Identité, négritude, esthétique aux Antilles [Vestígios: Identidade, negritude, estética nas Antilhas], este trecho: Dans le système colonial, la conscience des colonisés est façonnée, modelée conformément aux valeurs et aux vérités des maîtres. C’est dire que, dans chaque colonisé, le colonisateur a introduit, dans l’âme même du colonisé, les sentiments, les idées du maître. Dans chaque colonisé nous aurons une âme blanche dans un corps noir” [No sistema colonial, a consciência dos colonizados é talhada, moldada conforme os valores e verdades dos senhores. Ou seja, em cada colonizado, o colonizador introduz, na própria alma do colonizado, os sentimentos, as ideias do senhor. Em cada colonizado temos uma alma branca num corpo negro]”.

Lilian Pestre de Almeida é romanista de formação, publica em português e em francês sobre literatura comparada, barroco e pintura. Suas últimas publicações são eu, laminária… últimos poemas, de Aimé Césaire (tradução, posfácio e notas, Papéis Selvagens, 2022) e Pigmentos – Nevralgias, de Léon-Gontran Damas (tradução, Papéis Selvagens, 2024).

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