“Pobres criaturas”: a jornada de Bella Baxter de criatura à criadora

“Pobres criaturas”: a jornada de Bella Baxter de criatura à criadora
(Crédito: Divulgação)

 

Em Londres, um cientista esquisito e brilhante encontra o corpo de uma mulher que havia se jogado da ponte, grávida. Ele então transplanta o cérebro do bebê para o corpo da mãe e depois a reanima. O experimento resulta em uma mãe-filha, que não é exatamente nem uma nem outra, batizada de Bella Baxter, mesmo sobrenome do médico que a criou, dr. Godwin Baxter. Ela o chama muitas vezes apenas de God, o que vem a calhar: ela é a criatura, ele, o criador.

No início, o corpo e o cérebro de Bella estão desalinhados, já que ela é uma mulher adulta, de cerca de trinta anos, mas também uma criança pequena que, no entanto, vai se desenvolvendo a uma velocidade impressionante. Se, a princípio, Bella se comporta como uma garotinha, logo atinge a puberdade, com os hormônios fervilhando, e redescobre assim o próprio corpo como instrumento de prazer. Depois, corpo e cérebro parecem estar mais sincronizados, mas Bella conserva algo de infantil, na melhor acepção da palavra: tem uma abertura que persiste, uma capacidade de se encantar e de se espantar com o mundo como quem o olha pela primeira vez.

Essa é a premissa instigante do filme Pobres criaturas (Poor things, 2023), do cineasta grego Yorgos Lanthimos, inspirado no romance homônimo do escocês Alasdair Gray, originalmente publicado nos anos 1990. O livro traz diferentes perspectivas e formas narrativas para contar a história de Bella: de desenhos anatômicos a mapas, passando por trechos escritos à mão. Ainda que a fidelidade à obra original não seja critério de aferição de qualidade de uma adaptação, Lanthimos, com a ajuda do roteirista Tony McNamara, consegue transpor para a tela esses elementos de forma integrada e harmoniosa.

A única perda significativa é que Bella, no romance de Gray, também poderia ser lida como uma representação da Escócia como era vista pelo autor. Já Lanthimos escolheu a Inglaterra como ponto de partida de seu Pobres criaturas. Mas o filme é tão rico de imagens e simbolismos que se sustenta ainda assim. Há outras referências importantes, sendo a mais óbvia Frankenstein (1818), de Mary Shelley. Dessa vez, no entanto, a criatura é uma mulher. E essa diferença é explorada com complexidade pelo diretor e por Emma Stone, que está impecável no papel.

Os homens que tentam controlar Bella são muitos, a começar pelo próprio criador. Aos poucos, Godwin passa de um pai super protetor a alguém que se apazigua com a ideia de que uma filha é uma outra pessoa, e precisa de liberdade para experimentar o que é ser essa pessoa no mundo. Com exceção dele e do jovem estudante que ele elege como pupilo, e que se apaixona por Bella enquanto a observa, os demais homens que cruzam seu caminho querem mantê-la sob seu domínio.

É o caso de Duncan Wedderburn, em interpretação primorosa de Mark Ruffalo, que estabelece com Bella uma relação paternalista. Se de um lado ele a encoraja a explorar sua sexualidade reprimida e a conhecer novos lugares do mundo, de outro, espera que ela faça isso apenas ao seu lado, conforme ele abre passagem.

Mas Bella é destemida, curiosa, questionadora. Em nada se comporta como a figura passiva e ingênua que Duncan esperava encontrar. Isso faz com que ele, um sedutor avesso a afetos mais profundos, acabe se apaixonando por ela. Mas se mais e mais a deseja conforme ela escapa de seu poder, mais ele tenta, em vão, contê-la.

Em uma das premiações que recebeu pelo papel, Emma Stone disse que considera o filme uma comédia romântica: Bella se apaixona pela vida, e isso é um caminho sem volta. Descobrimos que a mulher que vivia no seu corpo antes, Victoria, não conseguiu vencer os obstáculos que se colocaram em seu caminho. Casada com um homem possessivo e conservador, a vida para Victoria perdeu todo colorido que Bella agora enxerga no mundo e do qual quer desfrutar vividamente.

Bella é apresentada não somente ao sexo, mas também aos livros, à medicina, à filosofia, à política, e seu mundo vai se tornando cada vez mais vasto. Nesse caminho de formação, volta para casa em outra condição: de criatura passa a criadora, não apenas de si mesma e de seu destino, mas como cientista que quer seguir os passos de Godwin em seus próprios termos.

As cenas de sexo, tão comentadas, não soam gratuitas, nem mais do mesmo. Ao contrário: ajudam a contar a história dessa personagem movida pela curiosidade, pelo desejo, pelo humor, pela pulsão de vida. O mesmo corpo que antes foi tomado pela pulsão de morte tem, agora, a chance de recomeçar.

É bonito acompanhar a sua jornada, não apenas no plano do enredo, que está bem alinhado com o espírito do nosso tempo e por isso também Bella está se tornando uma heroína tão popular, mas também, o que é mais raro, no plano da criação cinematográfica: da fotografia à trilha sonora, do figurino aos cenários inteiramente construídos para o filme, Pobres criaturas é deslumbrante e só cresce quando temos a oportunidade de revê-lo curtindo cada detalhe. É uma obra de arte contemporânea, uma experiência extraordinária que só o melhor do cinema pode proporcionar.

Fabiane Secches é psicanalista, crítica literária e pesquisadora de literatura. É mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, onde atualmente é doutoranda.


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