Qual é a propaganda política que realmente importa?

Qual é a propaganda política que realmente importa?

 

Oficialmente, a propaganda eleitoral, inclusive a propaganda “na internet”, como diz a lei, só será permitida no país a partir de 16 de agosto. A janela é de apenas um mês e meio entre essa data e o 1º turno das eleições em outubro. Note-se, contudo, que a legislação regula apenas um tipo de comunicação política, a tal “propaganda eleitoral”, isto é, a comunicação estratégica por meio da qual partidos e candidatos homologados tentam convencer os eleitores de que são as melhores escolhas para os cargos em disputa. Na tentativa de assegurar uma competição justa e leal, como é da natureza da democracia, há autoridades eleitorais instituídas para regular, acompanhar e arbitrar esta comunicação eleitoral, além de procedimentos, ritos e regras bem definidos.

Entretanto, muito antes que a comunicação política esteja no radar das autoridades eleitorais, muita água já passou sob a ponte. As campanhas eleitorais, como se sabe há muito tempo, são uma atividade permanente: nem começam quando é dada a largada segundo o calendário da Justiça Eleitoral nem cessam depois que os votos são apurados. Afinal, a imagem dos candidatos e partidos, o enquadramento dos principais problemas sociais e as versões sobre seus diagnósticos e soluções, a pauta do debate público, tudo isso é resultado de uma disputa contínua, e com resultados sempre provisórios, entre as forças presentes no espaço político institucional e na esfera pública.

A força política mais eficiente em controlar a própria imagem (e a do adversário), em comandar a pauta dos temas do debate nacional e a atenção pública, e em impor as suas interpretações dos fatos, é a que tende a prevalecer na próxima eleição. A curta e intensa janela da propaganda eleitoral pode ser bastante eficaz para essa competição por corações e mentes, por certo, mas engana-se redondamente quem ainda imagina que partidos e candidatos apostem suas principais fichas no horário eleitoral para conseguir os cargos em disputa. Uma imagem pública (ou seja, o que o eleitor pensa de um partido ou candidato) não se constrói em 45 dias, nem as razões para se preferir A a B, nem um senso de identificação dos eleitores com a pauta, com os valores e com a visão de mundo dos candidatos. Nem mesmo as esperanças e o pânico moral que orientam decisões de voto.

Quando chegamos à propaganda eleitoral de 2018, por exemplo, Bolsonaro já tinha uma imagem consolidada, a sua campanha já tinha um discurso e um personagem, os seus seguidores já haviam comprado as teses e interpretações que a ele convinham sobre os principais problemas nacionais. Ou sobre quem eram os seus adversários e que valores e ameaças eles representavam.

Nada disso surge por geração espontânea; tudo isso resultou de alguns anos de uma propaganda que criou ou encontrou canais eficientes para entregar sua mensagem, de forma consistente, coerente e constante, a uma massa enorme de cidadãos, oportunamente convertidos em eleitores e militantes. Tudo isso fora ou abaixo do radar da autoridade eleitoral e de suas formas de controle e disciplina. De forma que quando se autorizou a propaganda eleitoral propriamente dita, mesmo sem que o candidato tivesse tempo de televisão ou um marketing político tradicional, nada mais havia a se fazer e a se impedir. O bolsonarismo já havia entregado a sua mensagem e formado os seus séquitos. O jogo já havia sido jogado do ponto de vista da comunicação política; o resto ficava por conta das circunstâncias da realidade, como a conveniente prisão de Lula ou a facada recebida em Juiz de Fora.

É por isso que na metade de agosto deste ano, quando começar a dita propaganda eleitoral, submetida à supervisão do Judiciário, partidos e candidatos estarão apenas colhendo os frutos plantados em suas campanhas de longa duração. E se ainda vai haver eleitores considerados indecisos, tendentes ao voto nulo ou até a mudar de voto, como sempre, dificilmente isso acontecerá porque as opiniões sobre quem são os candidatos e o que eles representam, ou sobre quais são as prioridades nacionais, ainda não se formaram ou consolidaram. Ao contrário, os grupos já estarão organizados ao redor disso e o problema deve ser correlacionado ao encaixe ou desencaixe entre convicções e atitudes já formadas, de um lado, e a oferta eleitoral real de outro. Para eu decidir que nenhum candidato me representa é preciso já ter decidido o que me representa.

A propaganda eleitoral, por mais paradoxal que pareça, progressivamente chega tarde demais, quando mensagens e discursos, reiterados por anos em mídias sociais e na conversação política, já esculpiram as certezas, moldaram tendências e criaram as identificações dos cidadãos, agora eleitores, com os partidos e candidatos.

Por isso que quando vejo a Justiça Eleitoral “se preparando” para evitar tais ou quais comportamentos e atitudes durante o período de propaganda eleitoral, só consigo pensar com os meus botões que será tarde demais, o jogo decisivo da comunicação política está sendo jogado agora e vem sendo jogado há muito tempo, não durante a propaganda ritualizada e controlada. O efeito de uma fake news repetida por anos poderá ser anulado por algum apagamento da memória coletiva? Há algum procedimento de reabilitação intensiva para os viciados em ódio político a determinado partido ou candidato, que por anos tiveram a sua adição satisfeita por fornecedores cotidianos?

Quando ouço candidatos e pessoas do operacional das campanhas políticas oficiais declarando que “a campanha para valer” só começa a partir da metade agosto, só me pergunto em que mundo essas pessoas vivem. Isso deve ser o que pensou a campanha de Alckmin em 2018, quando acreditou que com o início da propaganda eleitoral oficial, Bolsonaro não iria resistir ao marketing político via propaganda televisiva. Ou a campanha do PT, quando imaginou que poderia remover o estrago de quatro anos de satanização de sua imagem e de dois anos de fake news com uns debates e uns spots televisivos geniais.

Muita gente se acostumou a prestar atenção nas usinas de criação e distribuição de mensagens que a propaganda eleitoral oficial põe em movimento. Talvez se devesse prestar atenção mais detidamente à força muito mais eficaz e insidiosa, nem sempre muito discreta, da propaganda eleitoral permanente. Que parece um soft power, além do mais, improvisado, ante as habilidades dos magos do marketing político, mas cuja eficácia se prova em médio e longo prazos. Gutta cavat lapidem non vi sed saepe cadendo, diz o provérbio latino. “Uma gota fura uma pedra, não pela força, mas caindo, caindo, caindo.” No mesmo sentido, é de tweet em tweet, de mensagem em mensagem no WhatsApp ou Telegram, de vídeo em vídeo que se vão formando as mentalidades, as convicções e as identificações contra as quais, em meados de agosto, já não há muito a ser feito.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

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