Guerra não combina com desenvolvimento sustentável
I. Pacote ambiental e antiambiental
Desde a vitória do democrata Joe Biden na presidência dos Estados Unidos, aumentaram as expectativas de medidas globais voltadas para investimentos sociais e meio ambiente.
O pacote chamado Build Back Better inicialmente foi previsto com a quantia de US$ 3,5 trilhões. Depois de muita relutância, foi reduzido para US$ 1,85 trilhão. Desse total, US$ 555 bilhões seriam aplicados em incentivos de energias não poluentes, para combater as mudanças climáticas. Passou na câmara, com maciça votação contrária dos republicanos, e deveria ir em seguida ao senado. Contudo, houve resistência dentro do próprio partido democrata, e estagnou.
Se fosse aprovado, seria uma importante atitude de avanço da maior potência do mundo e alimentaria nossa frágil esperança de que alguma coisa, afinal, está sendo feita diante do risco climático.
Contudo, ao mesmo tempo em que o pacote estagnou, a tensão aumentou na Ucrânia e a guerra foi deflagrada. Diante da ruptura entre Rússia e o chamado Ocidente, vários países aprovaram orçamentos de guerra para ajudar a Ucrânia. O caso da Alemanha foi o mais surpreendente: triplicou seu orçamento, contrariando décadas de política pacifista.
Ao observar os dois movimentos – estagnação da difícil aprovação do orçamento ambiental e avanço imediato do orçamento bélico –, constata-se uma evidente contradição. Faz tempo que, em várias reuniões do G20, as nações discutem formas de enfrentamento de mudanças climáticas, ratificando compromissos dentro da cúpula e protestos do lado de fora.
Agora, uma guerra absurda se tornou, rapidamente, prioritária. Forçoso notar que a súbita prioridade atual contradiz completamente todo o moroso esforço anterior. Há algo mais ameaçador para o ambiente do que investimento maciço em armamento de guerra?
Nem menciono o recente risco de acidente nuclear das usinas ucranianas no embate das tropas pelo apoderamento desse recurso estratégico.
E o Brasil? No dia 9 de março, vários artistas de todo o país, muitos de grande renome, foram, de dia, ao Congresso e ao STF se manifestar contra projetos que afrouxam leis ambientais, sendo devidamente acolhidos pelas autoridades. À noite, recebemos estupefatos a notícia de que a Câmara aprovou a urgência de votação de um dos projetos, o PL 191, que libera a mineração em terras indígenas.
Enquanto nos Estados Unidos os democratas muito se esforçam por aprovar um pacote ambiental, o governo brasileiro aproveita a guerra para empurrar, como nunca, o seu pacote antiambiental, passando por cima, inclusive, de um protesto feito por várias de nossas celebridades.
II. Dor da descrença
Depois de se informar de tais notícias abomináveis, inevitável é questionar a validade do mundo moderno. Se, no passado, progresso significava expansão industrial, hoje é atualizado como desenvolvimento sustentável.
Dizimar biomas naturais em prol da civilização e guerrear pela pátria eram duas atividades vistas como positivas e gloriosas. Hoje, tais práticas continuam em vigor, só progressistas se envergonham delas. De qualquer modo, durante muito tempo o sujeito moderno sofreu com a devastação industrial e bélica sem saber direito o porquê. O cidadão das metrópoles sentiu a perda de valores tradicionais ora esfuziante pela liberdade, ora cabisbaixo pela experiência do vazio.
Um bom testemunho desse estado de espírito se encontra na revista simbolista paranaense O Cenáculo. No seu primeiro ano, 1895, ela era lançada mensalmente, ao mesmo tempo em que a guerra da Revolução Federalista decorria. Seus poetas se apresentavam como anticlericais, exibindo vários signos dolorosos de descrença em meio à multiplicação de cadáveres da guerra.
III. Torturando a ilusão
“Biblia da Tortura”, de Dario Vellozo, é um poema em prosa dividido em quatro capítulos, nos quais cada frase é numerada, o que ironiza um versículo bíblico. Nele, o poeta conversa com a “Ilusão”, narrando como ela o enganou com “Promessas lisonjeiras”, como ele “sempre” a “escutava”: “eu me alava nas azas espalmadas do Sonho, ao longínquo país da Suprema Ventura”. A ilusão o ludibriava (“eu te ouvia cantar fascinadoramente”) nas doces fantasias da infância e, especialmente, com o “apaixonado Rabino de Nazaré”.
9—A Cruz é o símbolo do Perdão — disseste.
10—Mentira!— A Cruz é o símbolo da Tortura eterna.
A resposta ríspida do poeta recusa qualquer consolo do canto sirênico da ilusão para disparar sentenças cáusticas: “18— A Ilusão é o dolo da Consciência. 19— É a mascara da Nostalgia da Treva”, “22—O sonho é o limbo da morte”.
O ceticismo torturante de uma bíblia negra, cujo assunto é a queda da vida na desventura da realidade, rechaça traços aduladores da fantasia e a condena como reflexo disfarçado da “treva” e da “morte”. A cruz não é emblema de misericórdia, é prova da flagelação inescapável. Junto às decepções da inocência anterior, consta a recusa de que o símbolo fundamental do cristianismo console. Infância pessoal e coletiva, aqui, são congeminadas. A cisão entre sonho e realidade atinge mortalmente crenças infantis e religiosas: ilusões. A cruz se torna, então, símbolo de partição cósmica.
O poema vai dessecando a “Esperança!”, caracterizada como “Sensitiva efêmera que a Aurora orvalha e que o Luar murchece”. Ela suaviza nos inocentes o “acerbo filtro da Realidade”, cuja inexorabilidade, contudo, é desmascarada pela “Primeira Tristeza”. A maturidade decaída leva o poeta a não compreender a melodia de uma flauta pastoril. Seus “vagos queixumes débeis” são como que
palavras mortas, de linguagem extinta, que os Ecos da floresta repetiam saudosamente, na desalentada invocação estéril de uma idade remota.
Essa dissociação do poeta com a linguagem natural arcaica resulta no “Cisma”, que “conduz ao Calvário das Duvidas Supremas”, “a Seta da Primeira Dúvida” que atravessa “o delicado sacrário de minhas crenças ingênuas” (9º fascículo, dezembro de 1895, p. 259-263).
Em vez de seta de cupido, que encanta, a realidade desfere uma seta bélica que crucifica o poeta com questionamentos sem resposta, que desencantam. A ilustração da esperança como planta sensitiva, dormideira, aquela que demonstra para o observador sua sensibilidade vegetal ao se retrair, expressa bem, no seu fenecimento, a perda da faculdade mimética: a aptidão para interpretar a linguagem natural. Na verdade, tal inabilidade evidencia a incapacidade de fusão, de unificação com o todo. O sujeito é barrado pelo cisma. Aliás, a natureza perdida é representada pela floresta ressonante, imagem que lembra, inescapavelmente, as correpondances baudelairianas.
Vê-se que, nesse poema em prosa, há uma insistente materialização imagética de substantivos abstratos: ilusão como máscara, sonho como limbo, esperança como sensitiva, dúvida como seta, crenças como hóstias. A desmistificação da ilusão de Dario não dispensa seu opulento arsenal imaginativo para sentenciar o niilismo moderno.
IV. O mar protesta
Já no soneto “Inexprimível!”, de Emiliano Pernetta, o poeta escuta o “bravo rumor do oceano indefinido” que lhe parece vociferar “não sei que de grito e de raiva impotente” que sugere “um mistério”, “uma revelação de um segredo perdido/ No passado”. O poeta exclama que compreende e sente “esse delírio extremo/ A revolta, a impotência”, enfim “—A linguagem confusa e rouquenha do mar!”, mesmo que, “Na tormenta febril das paixões do Universo”, não as consiga “traduzir” (4º fascículo, julho de 1895, p. 94).
Assim como “Bíblia da Tortura” não ouvia na flauta pastoril mais do que “linguagem extinta”, Emiliano sente mas não consegue expressar as bravatas impulsivas do sentimento universal. Entretanto, ele é capaz de desvendar a linguagem revoltosa da ressaca marítima e se identificar com ela. Em outras palavras, quando a natureza se assemelha à maldição poética, ainda é possível experimentar uma suspensão do cisma entre humanidade e natureza. Em Emiliano Pernetta, é na revolta, na sua convulsão interna, que o mar é compreendido. O mar protesta. E ganha audiência.
Outro poema esclarece melhor ainda a dimensão de crítica social dessas sensações de distanciamento da natureza expressas por imagens naturais, o que pode ser entendido como uma forma de resistência.
Em “Psaltério de astros”, de Silveira Netto, o poeta se pôs a olhar, como um “alucinado” “o céu de astros ponteado” de “brancas estrelas de uma luz tão fria”. A algidez sinaliza o desencantamento: “É o ar glaciário que nos vem fremente/ Da avalanche de todas as descrenças”. Assim como Dario, Silveira Netto desenha uma paisagem lúgubre de desilusão; assim como a tormenta de Emiliano, o leitor se depara com o desabamento cadavérico das crenças.
O poema também se queixa da frieza da incapacidade mimética. Por outro lado, ouve o “canto das estrelas” e iguala cada uma a um salmo que conta a história de um morto, sendo, portanto, o “céu etereal” um “psaltério de astros”. Logo, associa-se astros, alma dos mortos e salmo. A arquitetura astrológica e lírica do poema está no fato do empíreo não ser senão um saltério celeste, isto é, projeta no universo a ideia de livro bíblico e cântico sacro. Em “Inexprimível”, de Emiliano, o rugido do mar sugere o segredo perdido; em Silveira Netto, o firmamento canta o sofrimento passado que a sociedade esquece.
O poema conta, por conseguinte, a história de mortos violentados. Eles motivam “a dor dos astros luminosos” que
Choravam a opressão do Erro sem lei, sem regra
que assassinara torvo amigos, pais, esposos
Abrindo em nossa historia uma equimose negra.
(7º fascículo, outubro de 1895, p. 190-192)
Difícil sustentar que este trecho não se refira, implicitamente, à experiência das mortes da Revolução Federalista, quando certo impulso de identidade paranaense de Silveira chama a história de “nossa”. Na guerra, a falta de lei, de Estado de direito, leva à barbárie, que consome família e comunidade.
A história de uma nação é lesionada brutalmente e prejudica o andamento já manco da humanidade.
Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.