Aniquilação da vitalidade

Aniquilação da vitalidade

 

I. Dependência inescapável

  • Na discussão a respeito do filme Não olhe para cima, de Adam McKay,
  • pouco importa se ele é bom ou não.
  • Pouco importa se eu ou você gostamos dele ou não.
  • Importa é que o filme toca na verdade infernal,
  • de nossa relação com a realidade.
  • Ele aponta para uma vida composta de
  • perda de experiência,
  • para a completa ausência de silêncio e paz
  • num mundo insuportavelmente estrondoso e perturbado.
  • Ao examiná-lo, é inegável
  • que ele toca nesse ponto,
  • com recursos estéticos que podem ser bons ou ruins,
  • singulares ou habituais.
  • Não se pode ignorar a supremacia
  • do esvaziamento de vitalidade e tranquilidade,
  • causado pela dependência inescapável de estímulos midiáticos,
  • que a comédia evidencia com primor.

II. A velocidade do que não sai do lugar

  • Se falta um mínimo de reflexão sobre o seu procedimento estético,
  • em vez de resvalar no mero achismo, principiemos com o básico.
  • O filme jorra a pletora de lixo informativo de nossa mídia televisiva e digital como poucos até então.
  • Ele alterna entre a tristeza revoltada dos cientistas e o monturo de formas políticas, jornalísticas e culturais que lidam com todo assunto
  • como uma nova forma de ganhar visualização, like e dinheiro.
  • O efeito de tanta cor, brilho, humor, sedução e, mais que tudo, velocidade, ao longo da recepção, agasta o espectador.
  • Irrita a tal ponto que os críticos que se querem sofisticados veem na tela nada mais do que um reflexo do que ele denuncia.
  • Cabe ponderar se esses críticos não estão querendo apressar uma recusa da novidade que Não olhe para cima indica.
  • A obra tem pouco a ver com exemplares anteriores de tópico simulação, como Matrix ou O show de Truman, ou com outras comédias como Clube da luta ou Dr. Fantástico.
  • Para entender sua idiossincrasia, de pouco adianta declarar que esses filmes são melhores ou piores que ele.

III. Depressão com chantilly

  • Observa-se melhor sua especificidade no hit musical do filme, “Just look up”, com a performance da cantora Ariana Grande.
  • Ouve-se uma cançãozinha pop que segue os padrões atuais: com floreios, agudos, suspiros, apelações românticas, achados que misturam imagens poéticas adocicadas com gírias, palavrões chavões (ass, goddamn, fucked it up, shit) que dão o toque de sinceridade hip hop, até mesmo a mudança de tom ascendente e triunfante,
  • inoculando, no entanto, uma letra que denuncia a indiferença com a própria morte,
  • cujo conjunto açucarado resulta, por fim, numa apologia monstruosa da morte.
  • Ela está ligada ao roteiro em torno da colisão de um asteróide na Terra. Mas se torna, de forma nada sutil, uma metáfora para o ressecamento da vida
  • feito com a fartura insuportável de guloseimas do capital, enfiada goela abaixo. E acima.
  • Essa paródia do hit de sucesso ganha valor em revelar, numa cantora star existente, a onipresença da desolação existencial,
  • sendo Ariana Grande, na realidade, precisamente aquilo que o filme patenteia, isto é, tal carreira de superstar nega a todo momento, em seu romantismo e sedução, o fundo devastado que, no filme, transparece.
  • Mediante tal inversão, Adam McKay dá a Ariana Grande a melhor oportunidade, em sua trajetória de sucesso, de ganhar um papel crítico: com o seu próprio ser vazio, enfim revelado.
  • E detalhe: a personagem de Ariana Grande, Riley Bina, está ao lado dos cientistas, não dos negacionistas. Assim sendo, a crítica não vale só para os segundos, de jeito algum.
  • O que irrita os críticos apressados do filme é, justamente, a evidenciação grotesca da superfície. Eles gostariam de algo mais refinado. Só que não.
  • A elaboração do filme está, precisamente, na superabundância da estimulação sem fim, do qual, até o momento, nenhum outro longa-metragem chegou perto.
  • O que desponta, a partir daí, é o efeito, a sensação de estafa frente ao vitalismo incessante: depressão.

IV. A falácia da eficiência

  • Ao longo do século 20, a população mundial tem sido convencida a presumir que as instituições estatais, as megaempresas bem sucedidas, o funcionamento do mercado e o sistema em geral compõem um conjunto sólido e confiável.
  • Todos os problemas são considerados disfunções eventuais de uma eficiência que é sempre garantida pela dominação dos líderes da competição.
  • O poder de grandes empresas é legítimo porque ganhou a disputa do mercado, logo, é eficiente, logo, pode resolver as maiores dificuldades que a sociedade enfrenta, de modo a ditar a condução do Estado.
  • A mídia geralmente repete que existem quadros “técnicos” bem preparados, que não confundem o bom serviço com ideologia e podem trabalhar em harmonia com as forças do mercado. Eficiência econômica e científica sempre estão juntas e dão conta dos mais graves desafios que surgirem.
  • Contudo, a comprovação incontroversa do aquecimento global desmontou o equilíbrio precário desse castelo de cartas.
  • A partir dele, os “técnicos” foram obrigados a admitir que um sistema baseado no extrativismo predatório não é nada eficiente, muito menos consciente das consequências de seus empreendimentos.
  • Daí para diante, sob pressão de uma responsabilidade inédita, que exige de diferentes competências institucionais e econômicas enorme comprometimento e coordenação,
  • surge uma nova categoria de ator político no topo das maiores economias: tipos negacionistas totalmente integrados com o funcionamento irrequieto da mídia e a pura imperturbabilidade de vários poderosos em manter o descaso com o meio ambiente e o bem estar social.
  • O que o sistema escancara – implantando tais agentes no topo executivo, aliados perfeitos do oportunismo dos grandes empresários, como é o caso do personagem Peter Isherwell, CEO da tech company BASH – é a sua completa omissão, sua absoluta falta de limite em explorar formas de lucro rápido, que inclusive, podem dar errado: o que vale é a subida da bolsa no momento.

V. Estética da irresponsabilidade

  • Não basta, entretanto, a leviandade formal de governantes e bilionários. A comédia exibe com acuidade mais do que o desdém das autoridades com a questão mais séria.
  • Não se trata só do negacionismo com o sentido da verdade, trata-se da estética do negacionismo, do quanto fomos enredados visceralmente em seu modo de vida.
  • A irresponsabilidade fundamental se torna, portanto, o modo de ser do sujeito contemporâneo. Ele não é mais apto a sustentar qualquer seriedade.
  • O filme expõe uma conduta incessantemente direcionada ao gozo do humor, da curiosidade, da sedução, do lucro e do sucesso, que instaura a incapacidade geral para a responsabilidade.
  • Trata-se de uma comédia que espelha a impossibilidade do sistema de sair de sua própria comédia.
  • Ela desmascara o quanto o estado ininterrupto de uma cultura do déficit de atenção é tragicamente prisioneiro da comédia sem fronteira da nova realidade, que se reduz a uma subrealidade.
  • Aliás, é precisamente por isso que a narrativa fílmica é feita de um protagonismo duplo, dividido por dois astrônomos: Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) e Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio). O olho da câmera acompanha ora um, ora outro.
  • Adam McKay parece desejar com isso fixar o protagonismo do enredo na ciência.
  • A seriedade técnica e qualificada da ciência está, no filme, fora de lugar. Ela aponta para um fenômeno mortal, do qual depende a sobrevivência de todos, mas ninguém que ocupa os principais papéis públicos – jornalistas, políticos, empresários, autoridades, presidente está disposto a sair do modo cômico.
  • O desespero de Kate Dibiasky e Dr. Randall Mindy, quando entrevistados, está em constatar que os apresentadores do programa não podem nem devem deixar de enunciar graciosas tiradas de espírito, não importa o teor do assunto.
  • O fato de ser necessária a predominante preocupação com meios irracionais (estratégias de chamar a atenção e causar boa impressão) para atingir um fim racional urgente (o alerta de uma catástrofe) é a prova de que a conduta irresponsável não é só um ramo extremo que por infelicidade chegou ao poder, é o modo de vida dominante da sociedade global.
  • A ideologia da eficácia é ineficaz. Os melhores técnicos e burocratas são, obrigatoriamente, impostores. O embaralhamento do sistema começa a desorganizá-lo de tal forma que o bestifica. Vivemos na era da estupidificação burlesca da complexidade.

VI. Corcovadura social

  • Qual o profissional que vive de olhar para cima? O astrônomo.
  • Quando Kate está deitada com o novo namorado contemplando o firmamento à noite, e Randall está no trânsito, ambos, olhando para cima, reconhecem, ao mesmo tempo, a visibilidade do cometa.
  • Agora o céu demonstra o que os cientistas estavam alertando, sem precisar mais de telescópio. A partir de então, acirra-se a rivalidade entre campanhas Just Look Up (apenas olhe para cima) e Don’t Look Up (não olhe para a cima).
  • Assim como, no plano inicial do lançamento dos foguetes, eles voam para cima, para depois regressarem para baixo, a incapacidade cognitiva de vislumbrar qualquer coisa diferente faz com que todos neguem o desejo de algo mais algo sideral, cósmico, infinito e se satisfaçam em inclinar a cabeça para baixo, acorcovar o corpo e emperrar o olhar no celular.
  • Por isso a ciência é o protagonista de um mundo no qual ela não mais tem lugar.
  • O modo de vida do cidadão médio é formado de pequenas injeções de adrenalina que não satisfazem nem tampouco cessam. Parece leve? De fato, cansa.
  • No desfecho do filme, aqueles que “olham para cima”, os protagonistas e seus acompanhantes principais, esperam o fim num banquete em estilo bíblico, sem consultar mais celulares, e oram, pois necessitam de um contorno ritual. Esse é, de fato, o único momento em que o espectador respira.
  • No advento da morte, só quem foi capaz de seriedade pôde, enfim, viver.

 

Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.


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