O dia em que a CPI chegou ao laboratório do Dr. Mengele

O dia em que a CPI chegou ao laboratório do Dr. Mengele
(Foto: Edilson Rodrigues/AE)

 

 

Era para ser um plano de saúde especializado no atendimento a idosos, mas um dossiê feito por ex-médicos que atenderam em hospitais da organização, além de um conjunto de depoimentos dados à CPI da Covid, revelou o que até aqui é o mais macabro episódio do já medonho método com que o bolsonarismo lidou com a pandemia de coronavírus no país. Sim, o bolsonarismo que se senta no comando do país e que, como vemos, se esparrama por algumas instituições da sociedade, muitas da área da saúde.

O fato de ser um serviço especializado em idosos, quer dizer, pessoas vulneráveis, só agrava a nossa percepção de que algo muito infame foi perpetrado contra nossos pais e avós, tendo como motivação exclusiva razões de natureza política. De fato, não se consegue identificar quaisquer razões de ordem médica ou científica que justifiquem as decisões, atitudes e protocolos assumidos.

Levantou-se a tampa do bueiro e se descobriu tudo o que convicções políticas baseadas em adesão dogmática e sectária – na certeza de que haveria impunidade como recompensa pela cooperação prestada ao governo e ao movimento, além da mais absoluta ausência de escrúpulos – é capaz de fazer com as vidas que lhes foram confiadas. Encontraram-se testemunhos de grotescos experimentos com vidas humanas, de fraude científica deliberada, de supervisão centralizada e controlada com punhos de ferro pelas autoridades administrativas da instituição, de códigos de obediência e lealdade autocráticos, da alteração de registros de causa mortis por motivação política, de hinos e liturgias típicas de militarização nazista da prática médica. O horror!

Por fim, foram se mostrando os fios que conectavam o tenebroso experimento com vidas humanas e o famigerado “gabinete paralelo”, a formação “paragovernamental” que tem se revelado a base das decisões e ações que sustentaram, durante a pandemia, a política pública do “negue e deixe morrer”, a única adotada pelo governo Bolsonaro. Segundo depoimentos e declarações, médicos foram orientados a modificar prontuários ou a obedecer cegamente a prescrições administrativas em função exclusiva das necessidades de propaganda do gabinete. Enquanto, por outro lado, um estudo fraudado serviu por meses como argumento de autoridade para declarações e posicionamentos públicos das mais altas autoridades bolsonaristas, inclusive do presidente da República.

Era preciso encontrar respaldo para as bizarras crenças em falsos medicamentos, para a não adoção por parte do governo das medidas recomendadas pela OMS e para municiar a guerrilha informacional que negava a fatalidade da doença e a necessidade de vacinas. Não havendo autoridade científica em favor do seu fanatismo, fabrica-se pesquisa experimental. Antes, produzem-se experimentos que resultaram em mortes horríveis e em uma perda de vidas, tratadas com cinismo, e executada com planejamento e deliberação.

A CPI da Covid nos conduziu por uma longa jornada épica sobre o papel do governo Bolsonaro durante a pandemia. Partiu-se da suspeita de que o governo teria deixado de fazer coisas que seriam da sua obrigação, por inépcia, fanatismo e estupidez. Depois dos escândalos de corrupção e de advocacia administrativa na compra de vacinas, descobriu-se que não era apenas questão de não ter feito o que deveria, mas de ter feito o que não deveria. Enfim, após a comprovação de que houve corrupção e prevaricação, imaginava-se que nada pior haveria a ser descoberto. Até que tomamos conhecimento do espantoso projeto de experimentos com vidas humanas que esta semana mostrou as suas entranhas.

Diante do regime que nos governa e do que foi revelado nesta terça-feira (28/9) pela CPI, sinto-me como aquele soldado aliado, já no fim da 2ª Guerra Mundial e farto de tanta atrocidade, que, achando que já vira de tudo, depara-se com Dachau, Auschwitz, Treblinka. E descobre, então, que os seus piores pressentimentos não o haviam preparado para o assombro que se revelaria ante os seus olhos. Chocado e perplexo consegue apenas deixar escapar uma exclamação: que gente horrível!

 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes


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