A “clínica aberta” e o “analista grupo”: suas transferências e o comum
O psicanalista Tales Ab'Sáber
Primeiras páginas do trabalho que será apresentado por Tales Ab´Sáber no Freud Museum, de Londres, no dia 24/07, abrindo o seminário internacional Psychanalysis for the People com a experiência clínica, teórica e política do Brasil
Contexto
A partir de 2014 ocorreu no Brasil um movimento amplo de tomada dos espaços públicos por trabalhos livres, coletivos e sociais de psicanalistas. Esse movimento de socialização da psicanálise e de discussão clínica e teórica das suas bases mercantilizadas antecedeu a viravolta radical à direita da vida política do país, que criminalizou de modo parcial a esquerda institucional, o partido trabalhista de Lula e levou ao poder um governo híbrido de neoliberalismo e neofascismo, bem brasileiro. De todo modo que se veja, um movimento radicalmente contrário a qualquer vida social que realize trabalho coletivo, comum e de acesso livre ou universal. As clínicas psicanalíticas públicas, no entanto, prosseguiram seus trabalhos com toda vitalidade. Sua força vinha de suas raízes teóricas e de sua verdade social. A Clínica Aberta de Psicanálise, na Casa do Povo em São Paulo, foi uma das precursoras do movimento, que hoje se tornou nacional, em confronto espiritual à conversão do país ao egoísmo e ao abandono social mais radical, muito próprios da nova direita brasileira.
A psicanálise foi profundamente marcada pela fantasia estruturadora, real e ideológica, da realidade psicossocial do indivíduo, sua existência e seus problemas. A disciplina de Freud se constituiu originalmente no campo dos efeitos da vida do indivíduo moderno, como ideia de psicologia da figura heroica do sujeito pessoal – e do médico herói científico, como tantos outros heróis, na cultura do mercado simbólico dos indivíduos. Um ente psicológico existente e integrado sob as intensidades plurais das múltiplas esferas de existência na modernidade. Como uma concepção ideológica que também o compõe, a multiplicidade da vida própria das práticas modernas foi enfeixada e remetida à ideia figurada da responsabilidade monádica de cada um, um superego cultural ideológico, de efeitos narcísicos. Assim se configurou o campo da aventura do sujeito individual: o “homem livre” no mercado aberto dos destinos possíveis da expansão constante do Capital sobre as vidas, com sua jornada social e íntima e sua formação através do mundo inteiramente moderno. São conhecidas algumas figuras ideológicas subjetivas em meio ao processo histórico de tal psicologia, e ideologia prática, que se generalizava: o puritano protestante e sua solidão ética pessoal radical diante de Deus e da Bíblia; o herói burguês fáustico que sozinho cria o mundo industrial e desenha a nova sociedade; a imagem dos Robinsons Crusoés sociais isolados, tão criticada por Marx, como o senhor pragmático de ciência e de técnica; ou, ainda, a figura do artista romântico genial, ou seu filósofo, que, sempre sozinhos, construíam ou desconstruíam todo o sentido de seu mundo.
Podemos verificar claramente a figura titânica da subjetivação moderna em toda literatura romanesca do século 19, bem como podemos, com a psicanálise e o limite histórico das ilusões de expansão infinita do progresso – com sua ordem de destruição geral que se apresentou inteira no século 20 –, verificar o seu esgarçamento, um esgarçamento simbólico e emocional para si mesmo, inclusive. Esta real dimensão falha e incompleta do indivíduo moderno, de sua razão histórica e sua metafísica do iluminismo, que perde valor para si própria no auge de seu processo de configuração histórica, foi muito representada na literatura avançada da modernidade, de Flaubert e Dostoiévski, Machado de Assis e Henry James, a Kafka e Beckett. De fato, a literatura de ponta do romance do indivíduo moderno configurou e antecipou em tudo, e em detalhes, o mundo da teoria e da necessidade de trabalho psicanalítico sobre um eu que não se resolvia mais de nenhum modo em si próprio e por si mesmo. Porque “os artistas e os poetas sabiam diretamente aquilo que o homem de ciência precisava acessar por meio de seu trabalho duro”, dizia Freud. Aquele indivíduo racional e autônomo moderno, uma entidade teórica-ideológica pressuposta com efeitos subjetivantes, foi, com o seu próprio desenvolvimento, questionado em suas raízes e estruturas psico-políticas, pela literatura do seu tempo, pela ciência do enigma do inconsciente da psicanálise, bem como por parte significativa da filosofia contemporânea. Na melhor das hipóteses o indivíduo se tornou uma figura conceitual e política, parcial e alienada de modo próprio, em relação às forças múltiplas e outras que passamos a compreender que o compõe.
No trabalho coletivo que apresentamos aqui, sob a crise contemporânea da reprodução da vida sob a ordem da modernidade tardia, do capitalismo turbinado e total do mundo de hoje – degradante da vida sobre a terra, questionador permanente do espaço da organização política pública e produtor do espetáculo da validade única da imagem e da mercadoria no mundo humano, seu único sujeito –, o dispositivo e os efeitos de existência do grupo, articulado ao modo psicanalítico, nos parece entidade e potência para a vida tão verdadeira e produtiva quanto um dia foi o tradicional indivíduo moderno, herói das páginas de romance de seu tempo. Este deslocamento na imagem e na composição do sujeito que articula uma psicanálise no mundo, que propomos, implica deslocamentos políticos e de fantasias inconscientes de toda ordem, que reanimam nosso entendimento do trabalho clínico, em conjunto com a sua sempre presente política no mundo, oculta ou revelada, e suas virtualidades e potencias em um mundo crítico.
Um chiste pode nos dar uma notícia dessas modulações de vida e criação próprias aos grupos: a psicanalista Marília Velano certa vez comentou sobre os grupos de trabalho de psicanalistas que “os analistas, coletivamente, formam escolas…, mas nunca conseguem formar… uma banda de rock!”. Quais são as limitações do trabalho coletivo dos analistas e o que implicam? A Clínica Aberta de Psicanálise e Grupo Analista, formulada por mim e por um grupo de colegas em São Paulo, no Brasil, é uma resposta concreta a esta questão.
Tales Ab’Sáber é psicanalista e ensaísta, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.