O rei está nu: a nova biografia de Roberto Carlos e outros livros

O rei está nu: a nova biografia de Roberto Carlos e outros livros
Obra tem o mérito de mover a montanha Roberto Carlos rumo à incapacidade de manipular integralmente seu passado

 

A biografia Roberto Carlos: por isso essa voz tamanha, do jornalista paraibano-paranaense-paulistano Jotabê Medeiros, é o primeiro trabalho de vulto a chegar ao público após o encerramento da disputa judicial pela qual o biografado desejava exercer controle — e censura — sobre qualquer iniciativa editorial que pretendesse tratar de sua vida ou obra. O livro se beneficia da derrota, em 2017, da causa de Roberto no Supremo Tribunal Federal: assim Medeiros, como fizera nos anteriores Belchior: apenas um rapaz latino-americano (Todavia, 2017) e Raul Seixas: não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019), revisa a vida e a obra do “personagem” público sem pedir autorização prévia ao “ator” privado nem se preocupar com a possibilidade de um desfecho parecido ao do historiador Paulo Cesar de Araújo, que teve grande parte da tiragem de Roberto Carlos em detalhes (Planeta, 2006) recolhida das livrarias e deixada aos cuidados do protagonista-censor contrariado.

Com esse trunfo nas mãos, Medeiros inicia Por isso essa voz tamanha com vigor, esmiuçando a trajetória do menino Roberto em Cachoeiro do Itapemirim (ES), a paisagem interiorana em que ele cresceu e — primeiro assunto delicado — o acidente com um vagão de trem em que o futuro “rei” da canção romântica brasileira perdeu, aos seis anos de idade, uma parte da perna direita. O ritmo de reportagem, uma marca do trabalho do biógrafo, torna eletrizante essa primeira parte do livro, entre relatos sobre o que aconteceu após o acidente, destaque às coincidências indígenas que marcam as origens de Roberto (além de ter nascido no Dia do Índio — e do aniversário de Getúlio Vargas —, ele nasceu e cresceu na Rua Índios Crenaques, hoje já despida do nome bonito e poético) e a exposição de conterrâneos célebres do cantor cachoeirense: o escritor Rubem Braga, o apresentador e produtor musical Carlos Imperial, a dançarina (e nudista) Luz del Fuego, o compositor “maldito” Sérgio Sampaio.

Igualmente saborosa é a descrição do trajeto de Roberto até a consagração popular em meados dos anos 1960, vivido em grande parte no bairro de Lins de Vasconcelos, na zona norte do Rio de Janeiro. É quando se introduzem personagens localizados entre Lins e a Tijuca, já na transição entre o norte e o sul cariocas, e que serão importantes na vida musical do cantor que rejuvenesceria a música brasileira com “Quero que vá rudo pro inferno” (1965) e mais um caminhão de hits: Tony Tornado, Getúlio Côrtes, Renato e Paulo César Barros (futuros integrantes do conjunto Renato e Seus Blue Caps), Gerson King Combo, Tim Maia, Erasmo Carlos, Luiz Ayrão, Wilson Simonal, Jorge Ben… Estava dada aí mesmo a senha para o fracasso do jovem Roberto Carlos como candidato a herdeiro e continuador do gênio João Gilberto: a bossa nova era zona sul e beira-mar até a medula, e o recorte de classe (como sempre) determinava quem tinha e quem não tinha bossa.

A rica descrição da paisagem suburbana que pariu o futuro rock brasileiro (e os futuros samba-rock, samba-soul, samba-jazz etc.) permite entender como e onde a jovem guarda brotou feito filha enjeitada do ventre da bossa nova de apartamento- e-praia. Fruto mais dos modismos de momento que dos próprios desejos, projetos e convicções, o mito de Roberto Carlos foi criado no ambiente do rock jovem para em seguida recriá-lo, primeiro como jovem guarda (ou iê-iê-iê), depois como soul music tropical, adiante como expressão máxima da música romântica brasileira. Medeiros sublinha algo que não costuma frequentar muito a compreensão “intelectual” sobre aquela geração de suburbanos: a jovem guarda tinha, a distingui-la de movimentos parecidos irradiados de Estados Unidos e Inglaterra para vários lugares do planeta, uma marcada brasilidade de gueto, daquelas que os privilegiados de Ipanema e Copacabana não queriam nem chegar perto.

 

Medeiros demonstra
maior apetite em
retratar esse primeiro
Roberto Carlos, da
transição entre o pária
e o pop star, do que as
fases posteriores,
quando o ídolo bem-
sucedido passa a
integrar a sociedade
mandatária que antes
o rejeitava.

 

 

Por isso essa voz tamanha passa mais apressado pela eloquente fase anos 1970 de Roberto, justamente aquela que batizou o livro, com um verso recolhido de “Força estranha” (1978), composta por Caetano Veloso para o “rei” do romantismo. O título é um modo de o autor realçar algo também muito recusado — se não apenas ignorado — pela intelectualidade brasileira, que é a grande voz discreta do melhor intérprete de si mesmo (e um dos melhores do Brasil). Sob o pretexto de deplorar a ditadura com a qual Roberto viveu em simbiose, a camada pensante do Brasil se nega terminantemente a travar contato com o artista que falou mais alto ao Brasil real, mais ou menos da forma como a bossa nova fazia com a jovem guarda. O monólito Roberto-ditadura, por sinal, segue sem ser decifrado pelos autores que admiram sua obra.

Dos anos 1980 em diante, a biografia tem de conviver com a narrativa ditada pelo próprio Roberto, em sua fase de detentor de poder ímpar na indústria local de entretenimento. Tem de se deparar também com um limite imposto pelo biografado, que na maturidade passa cada vez mais a se isolar do olhar público e se afastar do cara a cara espontâneo com mídia e fã-clube. O Roberto que chega aos dias atuais exerce rígido controle da própria imagem e se ausenta de entrevistas jornalísticas que não sejam aquelas esporádicas feitas sob protocolo férreo por jornalistas da casa da qual ele é funcionário exclusivo desde 1974, a Rede Globo.

A narrativa demonstra certo cansaço, análogo ao cansaço que acometeu a histórica parceria de Roberto e Erasmo a partir, mais ou menos, do caso rumoroso — outro episódio delicado presente no livro — do plágio em “Caminhoneiro” (1984), que tem melodia idêntica à de “Gentle on My Mind” (1967), de John Hartford, um sucesso então esquecido na voz de outro “rei”, Elvis Presley.

Os episódios de relevo daí em diante são mais melancólicos: casos reiterados de censura movida pelo dono da voz; o calvário vivido com a terceira esposa, Maria Rita, que morreu de câncer em 1999, aos 38 anos, truncando a carreira musical de Roberto a partir dali; e a batalha judicial pelos direitos das biografias, que envolveu os maiores figurões da MPB e, como anota Medeiros, chegou a abalar por algum tempo o prestígio aparentemente indestrutível do “rei”. Poderio à parte, Por isso essa voz tamanha tem, entre vários méritos, o de mover a montanha chamada Roberto Carlos rumo à incapacidade de controlar e manipular integralmente o próprio passado, que é também o passado recente do país indígena onde ele nasceu e se tornou grande.

Pedro Alexandre Sanches é jornalista e autor, entre outros, do livro Como dois e dois são cinco: Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (Boitempo, 2004).


[não-ficção] 

por Redação

Imagens apesar de tudo, Didi-Huberman

Quatro fotos captadas clandestinamente do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau em 1944 são o ponto de partida para esta reflexão do filósofo francês Didi-Huberman. Ele defende a imagem como forma de resistência quando foge à ordem dominante. Em sua característica lacunar, ela é capaz de abrir brechas em meio à obscuridade e ao horror. O autor dialoga a respeito dos múltiplos regimes da imagem e da palavra com Walter Benjamin, Georges Bataille e Jean-Luc Godard, entre outros.

Com a experiência de repórter e articulista em diversas publicações brasileiras e estrangeiras, Eliane Brum revê e interpreta as duas primeiras décadas do século 21, do primeiro mandato de Lula até os cem primeiros dias do governo de Bolsonaro. A autora considera que “o maior desafio do Brasil é devolver a verdade à verdade”. As duas linhas de reportagem que perseguiu durante o período coberto pelo livro foram as escutas nas periferias da Grande São Paulo e entre os povos da floresta amazônica.

O autor, professor da Universidade Federal de São Paulo, abraça a tradição cética no pensamento ocidental, da Antiguidade ao século 20, para uma reflexão sobre o fazer filosófico. Ele acredita que o mais importante nessa atividade não é chegar a uma teoria sobre o mundo, mas a  investigação em si. Sua definição para este livro é “transformar uma experiência que pode ter a aparência de fracasso numa experiência que talvez possa ser considerada bem-sucedida”.

O livro é composto por trechos de entrevistas com o sociólogo Defert e uma reunião de artigos de sua autoria enfeixados sob o título Uma política para a aids. Defert teve uma experiência que marcou sua vida em 1984, quando a aids provocou a morte de Michel Foucault, de quem foi companheiro durante mais de 25 anos. No mesmo ano fundou a Aides, a primeira associação francesa voltada para a prevenção e o controle da contaminação pelo vírus HIV.


[ficção]

O quinto romance de Micheliny Verunschk desenrola-se a partir de uma foto de 1817 de duas crianças indígenas, raptadas e levadas à Baviera pelos naturalistas Von Martius e Spix,. O livro alterna o século 19 – com mergulhos na consciência das duas crianças, Iñe-e e Juri, expostas como animais exóticos aos alemães – e o Brasil contemporâneo, quando a personagem Josefa se identifica com a foto de Iñe-e em uma exposição. Desse movimento despontam as indagações de Josefa sobre seu passado e a história de um país eivado pelo colonialismo e pela violência.

A fundação, por um grupo de imigrantes italianos, da comunidade anarquista Colônia Cecília no interior do Paraná dos anos 1890 é o pano de fundo histórico para o desenvolvimento do romance de Miguel Sanches Neto. O leitor acompanha a experiência da construção de uma nova sociedade baseada em relações descentralizadas, amor livre e agricultura autossustentável. Sanches enfoca também impasses e desilusões causados pela dificuldade de abnegação das vontades e desejos individuais.

Na fictícia cidade de Amará, interior de Minas Gerais, um crítico literário encontra, à mesa de um bar, o escritor que tanto admira, e ambos entretecem um longo diálogo sobre fantasia, realidade, ética e estética. Como em um jogo de espelhos, as posições são cambiáves, ao ponto de o ceticismo do crítico revelar-se crença na literatura. Em seu romance de estreia, o escritor cearense Felipe Holloway joga com diversas referências literárias – a começar pelo título tirado de Machado de Assis – para firmar o poder transformativo da escrita.

Começando pela literatura russa menos conhecida — os escritos medievais e eclesiásticos —, o livro traça um panorama histórico que passa pelos clássicos, como Púchkin, Dostoiévski, Tolstói e Maiakóvski, e chega aos escritores contemporâneos, com Svetlana Aleksiévitch, Vladímir Sorókin e Liudmila Petruchévskaia, para ficar em alguns exemplos abordados pelo escritor e jornalista Irineu Franco Perpetuo. Esse caleidoscópio de autores e obras é pontilhado por reflexões sobre a recepção da literatura russa nos trópicos e tentativas de compreender o papel que, historicamente, o escritor ocupa na Rússia.


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