Duplo: face profana do gênio romântico
Sigmund Freud. (Crédito: Domínio Público)
É bem sabido que o gênio é incompreensível e irresponsável;
portanto, não devemos trazê-lo à baila
como explicação até que toda outra solução nos tenha falhado.
Freud (Moisés)
Recentemente publiquei um artigo no site da Revista Cult que tratava do valor do trabalho intelectual e artístico na era do coronavírus. Em busca de traçar um breve panorama dessas atividades na era burguesa e escavar as origens dos atuais problemas que a elas competem, fiz uma passageira menção à ideia kantiana de gênio, ampliada pelo movimento romântico, até mostrá-la transfigurada em sua versão fetichizada no nome-slogan dos dias de hoje.
A rebordosa não tardou. De todas, foram duas críticas a sacudirem a poeira. Uma delas enseja detalhar reflexões acerca do conceito de gênio e dos meios a partir dos quais o artista ou o intelectual dá forma às suas obras. Outra deixo de canto, à espera. Vamos, pois, ao que interessa: embora a validade da ideia de gênio já tenha sido dissolvida pelos críticos e esteja definitivamente estremecida desde o advento das mais diferentes técnicas de reprodução de imagens e sons, resquícios afetivos ainda se organizam intensamente em torno dela e se mantêm entranhados no espírito do artista ou do intelectual. Tocar seu âmago pode, é o que por aí se constata, abalar frágeis espíritos ou causar uma espécie de furor passional entre os que se dedicam à produção artística ou intelectual. Esse persistente problema, todavia, existe desde a década de 1930, quando Walter Benjamin o expôs de maneira clara em “Pequena história da fotografia”:
Os inúmeros debates realizados no século passado sobre […] [fotografia] no fundo não conseguiram libertar-se do esquema grotesco utilizado por um jornal chauvinista, Leipziger Anzeiger, para combater a invenção diabólica de além-Reno. Querer “fixar efêmeras imagens de espelho não é somente uma impossibilidade, como a ciência alemã o provou irrefutavelmente, mas um projeto sacrílego. O homem foi feito à semelhança de Deus, e a imagem de Deus não pode ser fixada por nenhum mecanismo humano. No máximo o próprio artista divino, movido por uma inspiração celeste, poderia atrever-se a reproduzir esses traços ao mesmo tempo divinos e humanos, num momento de suprema solenidade, obedecendo às diretrizes superiores do seu gênio, sem qualquer artifício mecânico.
Certamente não se leria hoje nenhuma nota parecida com a encontrada por Benjamin no Leipziger Anzeiger. Demonizar a técnica fotográfica é coisa do passado, assim como reforçar expressamente a ideia de gênio. De todo modo, como tentei indicar em “‘Apesar de’[…]”, o imaginário do artista ou do intelectual ainda não se livrou de todo da aura genial, especialmente quando seu trabalho ocorre “apesar de” todas as condições concretamente desfavoráveis que a ele se impõem, de forma mais ou menos gritantes, desde a era burguesa. Como se, para muitos, a produção artística ou intelectual dependesse de “diretrizes superiores” que ultrapassassem quaisquer bases concretas materialmente colocadas.
Pela ótica psicanalítica, porém, mais do que promover esclarecimentos sobre sujeitos excepcionais, a insistente incorporação da ideia de gênio pode indicar uma espécie de defesa psíquica. Explico com mais vagar: sob condições materiais adversas ou insuficientes, a noção de gênio presta-se perfeitamente a sustentar e reforçar o campo do desejo que move artistas e intelectuais. A despeito da míngua, o arranjo psíquico que a absorve dá respaldo para que esses sujeitos, ao se sentirem excepcionais, persistam nas rotas do desejo que irão conformar seus trabalhos.
Que, por outro lado, não haja dúvida: a crítica à ideia de gênio não nega valor extraordinário a algumas obras. Insisto apenas no fato de que ela, tal como sugere a epígrafe, explica pouca coisa, se é que não serve de pivô na articulação ideológica que determina o lugar da arte e do pensamento na era burguesa. Se as técnicas reprodutivas conseguiram profanar os meios pelos quais a arte pode ser confeccionada e retiraram dela seu halo sagrado, vestígios que operam silenciosamente nos espíritos daqueles que se sentem eleitos e possuem a dádiva da genialidade que os faz “criar” só puderam ser dissolvidos pela explicitação da experiência do duplo, estabelecida por Freud ainda em 1919.
Profanar a ideia romântica de gênio, circunscrita pelas fronteiras do sagrado, a partir de estratégias lançadas por Sigmund Freud e Giorgio Agamben, será, então, uma primeira tarefa a que me proponho aqui. A segunda será a de mostrar como o conceito freudiano de duplo é capaz de substituir a noção de genialidade ao elucidar processos psíquicos implicados na confecção de obras artísticas e intelectuais, longe de qualquer apelo a arranjos sobrenaturais.
Em Profanações, Giorgio Agamben explica que “sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses”. Juristas romanos, esclarece o filósofo, sabiam que profanar implicava devolver os objetos ao livre uso dos homens. Ao citar o jurista Trebácio, lembra-se ainda que “profano em sentido próprio denomina-se àquilo que, de sagrado ou religioso que era, é devolvido ao uso e à propriedade dos homens”. Enquanto a religião retira coisas, lugares, animais ou pessoas de seu uso comum, confinando-os em uma esfera apartada, profanar exige aproximação com o objeto e envolvimento com sua materialidade. Encurralado por essa espécie de separação, o sagrado resulta de sacrifício repleto de rituais minuciosos. Borra-se essa fronteira demarcada ritualmente apenas quando se alcança a carne do objeto. O contágio profanador se dá pelo toque que desencanta e joga na vala comum do simples uso aquilo que se mantinha petrificado como sagrado intocável. Transgredir os limites que determinam a indisponibilidade da coisa era sacrilégio que esfacelava a aura sagrada.
Foi a autonomia da arte que fez dela um objeto sagrado, apartado em seu templo: o museu. Sem perder o hábito da pesquisa etimológica, Agamben descobre que, diferentemente do que se costuma pensar, o termo religio (religião) não deriva de religare, isto é, daquilo que une o humano ao divino, mas sim de relegere, relações com os deuses guiadas por escrúpulo e atenção; reler com “inquieta hesitação perante as formas — e as fórmulas — que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano”. Religio, então, não é o que ata homens e deuses. Ao contrário: é o que preserva a distinção entre ambos, mantendo o sagrado intocável, distante.
Não é outro filósofo a notar como o processo de museificação do mundo retira do uso comum as potências espirituais que pertenciam à vida dos homens — a arte, a religião, a filosofia, a ideia de natureza e até mesmo a política. O museu não é mero espaço físico no qual estão reunidas, armazenadas e dispostas as obras realizadas por humanos. Sua concepção marca a própria segmentação e a preservação mumificada daquilo já não está entre nós, como parte essencial da vida corriqueira. Como diz Agamben, a museificação indica “a exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência”.
Jogo e sagrado ligam-se intimamente, explica. Antigas cerimônias sacras, rituais ou práticas divinatórias, assim como brincadeiras de roda estavam atreladas ao campo religioso; o bate bola reproduzia a luta dos deuses pela posse do sol; jogos de azar também originaram-se nas práticas divinatórias dos oráculos; pião e xadrez uma vez serviram como instrumentos de adivinhação. Embora a origem do jogo esteja na esfera sagrada, a conversão do sagrado em profano também se liga ao jogar. Quando o mito se atualiza no rito, se institui o campo do sagrado, mas o ludus, jogo de ação, dissolve o mito, conservando apenas o rito; o jacus, jogo de palavras, por outro lado, revoga o rito e sustenta apenas o mito. O sagrado se sustém na atualização do jogo que preserva a unidade entre mito e rito, ao passo que o jogo repartido em apenas uma dessas facetas liberta o uso comum dos objetos. Para o filósofo italiano, então, profanar nada tem a ver com deixar de crer; relaciona-se antes a colocar-se de forma indiferente diante do que aparece como divino e a assumir uma atitude livre, distraída, até mesmo negligente ante essa separação.
Sob a égide fetichizada da mercadoria, porém, o próprio jogo que institui o processo de profanação está em crise. Na modernidade, esfacela-se a capacidade de jogar e fazer simples uso dos objetos. Com olhos enfeitiçados e mãos sedentas de consumo, o resgate do mero uso das coisas pelos sujeitos modernos passou a ser uma tarefa política. Alcançá-la, entretanto, exigiria um trabalho de desmitificação que só se daria pela elaboração psíquica de lutos de objetos intocáveis.
Fração do eu e sua sacralidade
Gérard Lebrun (1970) mostra que Immanuel Kant e a estética alemã buscavam através da distinção entre artistas providos de gênio e artesãos “[…] encontrar para além do mundo opaco dos objetos, certas coisas que, por milagre, não sejam essencialmente mercadorias, como se fosse preciso que os artistas se tornassem divinos em uma cidade da qual os proletários nunca serão cidadãos”.
Mutatis Mutandis, não haveria como definir melhor o lugar reservado aos artistas na era burguesa. O estreito espaço só se sustenta pelos frágeis pilares da autonomia da arte e da ideia de gênio próprias à modernidade. Kant e seu juízo estético (Bürger, 2008) desligam a arte da práxis vital. Apartada dos interesses e necessidades que movem a sociedade, a arte, na visão kantiana, resguarda a condição de possibilidade da liberdade pelas vias da imaginação. Friedrich Schiller (Bürger, 2008), herdeiro de Kant, vê na l´art pour l´art a possibilidade de independência em relação aos propósitos imediatos que movem os sujeitos modernos e a ocasião de reunir o trabalho manual ao intelectual, apartados nas sociedades burguesas.
Antes de escrever sua Crítica do juízo, Kant já tinha posto um ponto final nas peripécias desgovernadas da razão, lançando para fora da investigação filosófica toda a estrutura de ideias e ideais oriunda do livre jogo entre imaginação e entendimento. Ultrapassar as amarras de juízos categóricos estabelecidos a priori implicou a evocação do Belo e do Sublime, tópicos de sua terceira crítica, que aborda a subjetividade absorvida pelas formas artísticas e pelo disforme da natureza. O tópico da subjetividade é denso na filosofia kantiana e o enrosco todo foi apresentado ainda na primeira crítica a partir de suas considerações acerca da apercepção do eu.
Ali constata-se logo uma lacuna intransponível quando o feixe de intuições e representações que emana do sujeito transpõe-se para a posição do eu visto como objeto empiricamente percebido. O sujeito que a partir de si percebe o mundo e tem os sentidos voltados para fora não pode apreender sua própria posição, o lugar através do qual enxerga os objetos externos. Seus braços e suas pernas estão acessíveis aos olhos, mas os próprios olhos não podem ser vistos (Kurle, 2012). Ao pensar sobre o estádio do espelho, Jacques Lacan tocou problemas similares aos de Kant, considerando que, ainda que o reflexo do sujeito esteja acessível aos olhos no espelho, o olhar será sempre opaco e inacessível.
É esse caráter opaco do eu que orientará as investigações de Johann Gottlieb Fichte em sua Doutrina-da-Ciência. Ele abandona a elucidação das formas lógico-conceituais existentes a priori, como Kant se propôs a fazer, e realiza uma “escavação” epistemológica para alcançar o “subsolo” do eu. Nesse processo, Fichte toca vestígios da massa com a qual os conceitos lógicos e analíticos serão moldados. Matéria ainda viva, orgânica que formará os fundamentos da arquitetura de sistemas de pensamento. A Doutrina-da-Ciência pretende, assim, revelar a linguagem do conteúdo intuitivo a partir da qual se forma o conhecimento. Linguagem, porém, inexistente e para a qual serão necessários letramento e invenção de um léxico, sem que eles recaíam na forma da lógica-conceitual, distante do composto vivo que integra esse conteúdo intuitivo. Preserva ao menos a certeza imediata do princípio cognoscente para só então recorrer à mediação de sua exposição. Fichte pretende expandir o significado kantiano do sujeito transcendental da experiência, transformando sua unidade potencial em ato puro e presente, sua mera condição de possibilidade da experiência em “experiência” da condição de possibilidade. Desenterrada por Fichte, essa produção orgânica da consciência interessará aos românticos alemães que farejarão sobretudo a matéria prima do eu, posta sob forma de obra.
Kant e o gênio romântico
Uma despretensiosa pincelada na principal ideia kantiana adotada pelos românticos servirá aos fins deste artigo. Segundo Kant, gênio é o artista cuja imaginação pode subtrair-se às amarras do entendimento. Ou, mais especificamente: “é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá regra à arte”. Somente o sentimento do belo liberta o sujeito da determinação, da finalidade e do interesse ao entrar num “livre jogo” da imaginação com o entendimento. Sendo a faculdade da imaginação própria ao gênio, este constrói o belo por meio de matérias dadas pela natureza. Por certo, o juízo estético desprende a multiplicidade dos “objetos”, antes atada na subsunção destes à unidade dos juízos a priori do entendimento. Os princípios capazes de “moldar” a imaginação se situam acima da razão e só podem ser parte da ilusão transcendental, bem-vinda no campo da imaginação genial.
Ao pensar sobre o estádio do espelho, Jacques Lacan tocou problemas similares aos de Kant, considerando que, ainda que o reflexo do sujeito esteja acessível aos olhos no espelho, o olhar será sempre opaco e inacessível.
Como a razão modela a imaginação do gênio, não há nele possibilidade de determinar ou contemplar. Suas ideias seriam tão poderosas e avassaladoras que o compeliriam (possivelmente pela sua própria natureza, diz Kant) a retratá-las em suas obras. Para o gênio, as ideias da razão não são fantasias e nem categorias reguladoras. São reais. O gênio acredita tocá-las em sua completude pela imaginação, assim que esta alcança atalhos para a razão. Todavia, tais ideias seriam, pelo prisma kantiano, inacessíveis ao conhecimento.
Com todo esse conjunto de considerações, a obra genial oferece um paradigma para toda a crítica kantiana: ao tornar presente aquilo que é impossível de apresentar-se enquanto conhecimento, ela reflete o empreendimento que imita o absoluto ao mesmo tempo em que fecha o acesso a ele. A obra seria o retrato da experiência do indecifrável (Lebrun, 1970).
Sublime, genialidade e razão apontam para o suprassensível incondicionado. Numa distinção que se tornou frequente no campo da estética, Kant diz que os sentimentos de sublime e de belo resultam de um juízo estético puro promovido através de ideias. Em Kant, o belo seria acessado pela via estética, enquanto o sublime percorreria a via da razão. Se o belo ocorre pelo livre jogo da imaginação com o entendimento, encetado pela contemplação de um objeto da natureza ou de uma obra de arte, o sublime só pode ser experimentado na contemplação da natureza ou pela obra de arte em exercícios de analogia com a própria natureza.
Uma diferença central entre ambos é que o belo preserva a forma, ao passo que o sublime não, é sem forma. Vale sublinhar que, na ótica kantiana, as faculdades do ânimo envolvidas no sentimento do sublime são a imaginação e a razão; no belo são a imaginação e o entendimento. Belo e sublime distinguem-se ainda por um último motivo: enquanto o primeiro pertence ao gosto, o sublime escapa dele. Isso significa que o belo promove a sociabilidade e pressupõe um público idealizado e digno de ajuizá-lo, chamado sensus communis, já o sublime provoca isolamento. Ou seja, o sublime tornaria dispensável o “sentimento de universalidade”.
Duplo: face profana do gênio
São resquícios desse sedutor enrosco que ainda impregnam os espíritos de artistas e intelectuais. Recorrendo mais uma vez à etimologia e contrariando seus movimentos profanadores anteriormente aludidos, Giorgio Agamben revisitou a ideia de gênio para emprestar-lhe ares universais. Sagrado, diz o filósofo, era o dia do nascimento do genius. A ele liga-se o verbo gerar, cuja origem é das mais concretas: genialis lectus, a cama na qual os latinos viam acontecer o ato de geração do genius.
Como se vê, os meandros da ideia de gênio são definidos por Agamben a partir de sua origem latina: um “deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento”. “Divinização da pessoa” ou o “princípio que rege e exprime a sua existência inteira”. No nascimento ingere-se esse momento de divinização em que o mais íntimo é um estranho ao Eu. Com ele, alerta Agamben, é necessário “ser condescendente”, abandonar-se aos seus poderes. Conceder voz aos seus caprichos significa ser fiel às nossas mais secretas exigências de felicidade. Trair o gênio, por outro lado, equivale a desviar-se de si. Esse deus íntimo é paradoxalmente impessoal para nós. Ele infiltra-se naquilo que nos excede e supera. O melhor a ser feito, porém, é entregar-se aos seus anseios. Sim, pois seus aparentes disparates são os mais próximos sinais de nossos desejos. Nos termos de Agamben:
Genial (genialis) é a vida que revida o olhar da morte até afastá-la. O olhar volta-se, sem vacilar para o ímpeto do gênio. A peculiaridade desse deus muito íntimo e pessoal é justamente a de que ele é também “a parte mais impessoal em nós, a personalização do que, em nós, nos supera e excede”. Genius é essa parte alheia, desconhecida que deu origem ao que somos. Quando parece haver uma coincidência entre o Genius e aquilo que pensamos sobre nós, ele logo se prepara para nos surpreender e mostrar os limites de nossas suposições acerca de nosso eu. O Genius extrapola os limites do Eu e da consciência individual, aproximando o impessoal daquilo que nos diz respeito. Essa parcela imprópria é atemporal, inseparável do agora.
As “longas e trêmulas asas” do gênio demonstram o fulgor de quem ignora a lógica opressiva do tempo. Muitas vezes, seu suspiro atinge o ventre e logo se espalha pelo fio alongado da espinha, como se seu hálito gélido soprasse por entre os poros de cada um dos órgãos do corpo. Quando esse frêmito se alastra, embaralha as referências de um Eu encerrado. Após seu primeiro sinal, o ímpeto intensifica o fluxo de sangue, revigora o corpo ou entrega-se ao torpor que alcança imagens de sonhos. Essas íntimas manifestações corpóreas e impessoais do gênio também são esquisitas por mostrarem uma faceta impertinente, irrefreável, voluntariosa. O estranho que habita em mim de forma indomesticável é o genius, tal como o desenha Agamben.
Ora, ora! Não é que temos diante de nossos narizes uma versão quase mítica do fenômeno unheimlich, descrito por Freud? Diferentemente de Freud, entretanto, Agamben não considera essa faceta impessoal do eu como uma forma de recalque de teor histórico. Para ele, não se trata de uma lembrança calcificada nas malhas da memória que pode repentinamente emergir de modo inquietante e perturbador numa experiência do presente. “Genius é a nossa vida, enquanto não nos pertence”, diz ainda o filósofo de Veneza. Caminhar lado a lado ao genius significa testemunhar a demolição de nossas pretensões egóicas. Campo de tensões entre genius e eu, o corpo quase sempre tem seu lado desajeitado, um tanto desengonçado por ouvir a um só tempo esses dois lados em disputa.
É bem provável que, se vivo fosse, Freud não discordasse em nada da descrição poético-filosófica agambiana, sendo-lhe inclusive grato pela precisão e beleza das colocações. Imagino-o, porém, tragando calmamente seu charuto até declarar: “tudo isso é muito belo e verdadeiro, mas não explica lá muita coisa…”. Com sua pena enxerida, acrescentaria suas articulações psicanalíticas, sempre apoiadas numa materialidade afetiva historicamente constituída.
Em Freud, uma das mais definitivas encarnações do fenômeno unheimlich se encontra na experiência de duplicação do eu. Duplo e gênio são figuras que coabitam cenários da literatura, do cinema, das artes visuais e de reflexões filosóficas. Embora o romantismo tenha sido palco principal da expressão desses ícones demoníacos, ainda hoje é recorrente seu uso de maneira bastante ampla. Nossa hipótese é de que a ideia de gênio, inaugurada por Kant na modernidade, tenha sofrido sua história de profanação pelas mãos de Freud, quando este explicitou o arranjo psíquico implicado no papel do duplo.
É bem provável que, se vivo fosse, Freud não discordasse em nada da descrição poético-filosófica agambiana, sendo-lhe inclusive grato pela precisão e beleza das colocações
De um ângulo inusitado, o superego pode ser visto como a mais evidente manifestação da forma laica do gênio. Com ele, porém, Freud ainda representa a história de uma batalha entre o eu e o campo infamiliar que o habita, numa tentativa inglória de domínio das audácias emanadas pela voz do Outro, que extrapola a parte egóica do sujeito. Introduzir o duplo na psicanálise, reconfigura o registro metapsicológico das tensões entre o ego e o infamiliar.
Um pouco desgastada nos dias atuais, a definição psicanalítica do duplo começou numa pequena obra escrita por Otto Rank, cujo título é O duplo. Resgatando clássicos do cinema e da literatura expressionistas, Rank observou as características psíquicas do fenômeno do “duplo”, que remetem invariavelmente ao reflexo especular narcísico. São imagens iguais ou semelhantes às do protagonista que assumem suas características psíquicas, magicamente transpostas de um a outro. Confusões mentais da personagem sobre o seu próprio eu diante de uma figura similar e ao mesmo tempo estranha à dele embaralha conformações egoicas. Há, ainda, personagens que se desdobram em mais de um. Essa segmentação duplicada ou transposição do eu pode assumir a forma de sombras, sugerindo que aquilo que se mantinha obscuro para o sujeito passa a ganhar vida própria, descolando-se do corpo original para colar-se em outro parecido.
Nos primórdios da vida, duplicar nada mais é do que um modo de defesa contra a extinção do eu, que carrega ameaças internas ou se defronta com perigos externos. Depositando conteúdos sexuais e agressivos em um outro de si mesmo ou esculpindo ideias como as de imortalidade ou vida após a morte nos contornos de um espírito vagante, essa duplicidade nasce mais uma vez de um amor narcísico primário, predominante na mente infantil. Nesse enredo defensivo, o aspecto central introduzido por Freud é a inversão que o duplo opera quando essa etapa é ultrapassada. Ou seja, quando o duplo emerge após ameaças ou medos infantis terem sido superados, ele se torna o estranho prenunciador da morte, dos terrores ou de desejos eróticos que o ego antes pretendeu evitar através de uma imagem duplicada. “A qualidade de estranheza só pode advir”, admite Freud, “do fato de o ‘duplo’ ser uma criação que data de um estádio mental muito primitivo, há muito superado – incidentalmente, um estádio em que o ‘duplo’ tinha um aspecto mais amistoso” (Freud, 1919). Depois o ‘duplo’ se converte em objeto de terror, “tal como após o colapso da religião, os deuses se transformam em demônios” (Freud, 1919).
Nessa junção de referências aqui combinadas, o duplo pode emergir como fenômeno psíquico e social que alimenta a produção do artista ou do intelectual. Ao invés da ideia de gênio, que supõe elementos divinos inexplicáveis para justificar a “dádiva” da criação de eleitos cidadãos numa sociedade mercantil, o duplo recoloca a complexidade do conceito psicanalítico de identificação no plano das artes e das reflexões intelectuais. Trata-se de um conceito denso que não caberá no espaço deste texto. De todo modo, são as complexas e profundas identificações a engendrarem afinidades eletivas entre os vários artistas e intelectuais espalhados pelo mundo e pelos diferentes tempos da história. O sujeito que se quer artista ou intelectual produz sua própria obra em constantes movimentos de atração indecifrável e estranhamento repulsivo, tanto em relação à personalidade de um autor, como em relação à consistência formal e ao conteúdo de sua produção. Seu próprio trabalho será paradoxalmente estranho a ele, já que é a faceta opaca ao eu o que determina caminhos identificatórios centrais para a mobilização de afetos que integram obras artísticas e intelectuais.
Não à toa, Freud dizia que, assim como outros autores da cultura alemã e da tradição ocidental, Arthur Schnitzler era seu duplo. Nos interstícios lacunares de obras artísticas e intelectuais, em gestos e discursos enigmáticos de personagens literários e de seus autores, em indecifráveis ímpetos artísticos configuradores ou na própria tessitura misteriosa de páginas filosóficas, sempre será possível enxergar uma duplicidade do eu, algo que se estranha e que, ao mesmo tempo, clama por nossa atenção dedicada. Dar vazão a tais traços identificatórios, com os quais trombamos na materialidade própria às obras, até que deles seja possível extrair uma nova forma alinhada e simultaneamente resistente aos contornos delas, é o que Kant talvez tenha denominado belo nas artes. No campo do sublime, a duplicidade é ainda mais perturbadora, pois não se encontra apoio egoico em sua experiência por mais que a obra nos convoque e fisgue, isso se dá de maneira inteiramente obscura.
Estetas pós-kantianos já haviam englobado o conceito de sublime na confecção artística, tirando-lhe de sua restrição meramente natural. A psicanálise acrescentaria um quê de traumático a essa experiência. Com a introdução do trauma na composição das obras, elas se tornam menos um privilégios dos que dispõem de genialidade do que uma necessidade psíquica daqueles que querem habitar o próprio tempo num mundo tão devastador quanto tem sido o nosso…
Alessandra Martins Parente é psicanalista, coordenadora do Projeto Causdequê? (UBS-Pinheiros/Programa da Saúde do Adolescente do Estado de São Paulo) e membra do GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia), do Latesfip-USP (Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise) e do GEPEF (Grupo de Estudos, Pesquisas e Escritas Feministas.
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