O buraco negro e o índio
Máscaras de gás, Segunda Guerra Mundial, Praga (Foto: Nikoli Afina/Unsplash)
No livro O tao da física – um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental , o físico austríaco Fritjof Capra descreve o que seria um buraco negro à luz da ciência: o campo gravitacional de um corpo celeste começa a se tornar tão denso que passa a atrair (como um gigantesco ímã) tudo o que está a sua volta, inclusive e paradoxalmente, a luz. Este processo pode durar milhares de anos. E tem um nome: “horizonte de eventos”. Chega um ponto em que esse fenômeno natural, físico-químico, torna-se irreversível.
Li esse livro há mais de 30 anos. Estou rememorando sem consultá-lo novamente. Talvez minha citação não esteja tão exata. Não sei se as ideias de Capra são corretas ou incorretas, relevantes ou irrelevantes no mundo científico – esse debate cabe aos cientistas. Mas estou certo de que servem como metáfora para o que quero dizer.
Tenho pensado cada vez mais (e tenho certeza de que não sou o único) que estamos num colapso não apenas político, mas civilizacional. Esta civilização pós(?), hiper(?), ultra(?) moderna está fundada exageradamente na produção e no consumo. Se produz coisas demais, se consome demais. Inclusive dados. É uma avalanche além do limite. Predatória em todos os sentidos: natural, cultural, psicológica. Para piorar, a riqueza resultante dessa colossal produção é concentrada cada vez mais na mão de uma obscena minoria, enquanto a maioria dos viventes é jogada na vala do desespero.
Esse modelo não aponta um futuro promissor. É cada vez maior o grau de desesperança – desespero, até – tanto das velhas quanto das novas gerações em relação ao futuro. Com a realidade de hoje, como pensar a vida daqui a 50, 80 ou 100 anos?
Por outro lado, tenho pensado muito nestes tempos de isolamento social: que direito os mais velhos têm de projetar profecias do fim do mundo sobre os mais jovens?
Os que têm parâmetros de comparação, por conhecimento e experiência própria, de um outro tempo, podem e devem alertar sobre o colapso iminente. Mas têm o direito de vaticinar o fim do mundo para os que ainda estão chegando? Não seria o velho erro dos velhos – projetar sua desesperança sobre o caminho daqueles que mal começaram a caminhada?
É verdade que muitos da minha geração (agora puxo o cobertor, um tanto esfarrapado, para o meu lado) se deixaram levar pelas sereias da fama e do deslumbramento, se afundaram numa rede de enganos e falsas seduções, e agora exigem autocrítica de todos. Não vejo assim. Muitos fizeram (e continuam fazendo) o que tinha que ser feito, o que puderam fazer e, muitas vezes, bem além dos limites impostos. E pagam caro por isso, inclusive – especialmente neste momento de supremacia da brutal ignorância.
A questão principal, para mim, é: a ganância predatória de alguns (explicável não só pelas teorias políticas e sociais, mas até mesmo psicológicas) não pode, de jeito nenhum, comprometer a vida de todos. E a ignorância não pode subjugar o conhecimento, quiçá, a sabedoria – se não for pedir demais.
Os dados estão lançados. O jogo precisa ser alterado pelos que estão chegando e vão durar mais tempo do que nós, que já dobramos o Cabo da Boa Esperança. Não seria melhor nutri-los com o que pudermos em vez de despejarmos nossos resmungos sobre eles?
Certamente, para o misterioso e incomensurável Universo, a vida humana e o planeta Terra significam menos do que uma pulga no pelo de um lobo selvagem. Ele se sente até prazerosamente aliviado quando se livra dela. Mas, afinal, a vida é tudo o que temos e o planeta é a casa em que vivemos. Ao menos por um breve tempo. Uns chegam, outros vão, e deixar a casa arrumada para os que continuarão chegando é o mínimo que pede a boa educação.
Não estou certo de que a pandemia do coronavírus vai gerar, automaticamente, um grau de compreensão maior sobre o ser e estar (passageiro) neste planeta. Mas lembro e cantarolo, em um jogo de associações de ideias, a antiga canção “Um índio”, de Caetano Veloso: “E aquilo que neste momento se revelará aos povos / surpreenderá a todos não por ser exótico / mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / quando terá sido o óbvio.”
Ademir Assunção é poeta e jornalista. Autor de A voz do ventríloquo (Prêmio Jabuti), Pig Brother e Faróis no caos, entre outros livros de poesia, ficção e jornalismo.