A fábrica da desunião
(Foto: Volodymyr Hryshchenko)
Geração ofendida
Para muitos, a sensação é de termos sido lançados em um pesadelo. Diante dos absurdos que se repetem, há uma pergunta que ainda não recebeu uma resposta adequada: como permitimos essa longa noite que parece não ter fim?
Por um lado, a visão de mundo hegemônica parece indicar que os “outros” devem ser percebidos como ameaças, concorrentes e, não raro, inimigos que devem ser destruídos. O egoísmo tornou-se virtude em um mundo em que o objetivo principal é a acumulação de capital.
Por outro, a esperança de um mudo melhor desapareceu. O capitalismo, em seu momento neoliberal, apresenta-se como a única via possível.
A esquerda anticapitalista, que poderia reagir a esse estado de coisas, caiu na armadilha ideológica de reproduzir a lógica da concorrência e criar muros onde deveria existir comunhão.
Em recente e polêmico livro (Génération offensée, Grasset, 2020), a feminista Caroline Fourest aponta um fenômeno que atende aos objetivos dos atuais detentores do poder político e/ou econômico (lembrando que na pós-democracia, em regra, o poder econômico volta a se identificar com o poder político) de “dividir para conquistar”. Para Fourest, as pessoas da “nova geração” são levadas a censurar, odiar e atacar tudo e todos os que lhes incomodam ou “ofendem”. Se a geração de maio de 1968 tinha como palavra de ordem o “é proibido proibir”, hoje a postura é diametralmente oposta, no sentido da proibição, do cancelamento e da execução à morte (ainda que simbólica). Ter-se-ia, então, uma “geração ofendida”.
O que deveria ser um exercício crítico e uma reflexão necessária para reduzir as opressões direcionadas às mulheres e às minorias, por uma distorção ideológica, parece se aproximar perigosamente da caricatura liberticida fabricada por conservadores e reacionários. Hoje, basta uma palavra mal colocada ou mal interpretada para fazer cessar uma conversa ou qualquer possibilidade de diálogo. O outro, por mais próximo que esteja no campo das ideias, torna-se um inimigo a ser destruído. Feministas gastam mais tempo atacando outras feministas do que lutando para desconstruir o patriarcado. Negros passam mais tempo atacando outros negros do que atacando as bases do racismo. Trabalhadores, que passam a se ver como empresários-de-si, percebem outros trabalhadores como concorrentes. Enquanto, isso os opressores vibram com os novos e inusitados aliados, enquanto, não raro, posam de “defensores das liberdades”.
Ataques ao pensamento, às ideias e à cultura protagonizados pela extrema-direita que se afirma conservadora e moralista sempre foram esperados. O problema é que, hoje, vários ataques partem de uma certa esquerda moralista e identitária. Essa “esquerda” abandona o espírito libertário e igualitário para atuar a partir de anátemas, slogans argumentativos vazios e manifestações autoritárias.
É importante ter em mente que o objeto da “ofensa”, que leva à reação agressiva, não são os verdadeiros perigos à dignidade humana ou à pluralidade cultural, tais como o pensamento autoritário da extrema-direita ou o desejo de dominação cultural. Ao contrário, os ataques são direcionados a pessoas que deveriam figurar como aliados nas lutas contra todas as formas de opressão e artistas.
Exemplos do absurdo travestido de luta em favor das minorias e dos mais fracos não faltam. Caroline Fourest lembra pessoas que se insurgiram por Rihanna usar tranças que seriam tipicamente “africanas”, outros censuraram o chef Jamie Olivier por ter preparado um “arroz jamaicano”. No Canadá, estudantes de esquerda exigiram a supressão de um curso de yoga para evitar a apropriação da cultura indiana. Em todo mundo, pessoas “politizadas” se recusam a ler grandes obras clássicas que contenham “passagens ofensivas”.
Mesmo em ambientes acadêmicos, instaura-se um regime de terror voltado ao pensamento. Algo muito semelhante ao anti-intelectualismo que marca os regimes autoritários de direita. Mínimas contradições ou frases descontextualizadas são transformadas em micro-agressões. Em vários ambientes, o direito de falar (e de pensar) passou a exigir autorização segundo o gênero, a cor da pele e ou a classe da pessoa. Distorce-se, com frequência, a ideia de “local de fala” para fazer dela uma justificativa à interdição do debate e à intimidação, inclusive de professores. Um homem pode se manifestar sobre o machismo, embora não possa sentir a dor que qualifica a fala de quem sente na pele essa forma de opressão.
Toda criação (ou reforço) artificial de uma identidade (quando as identidades são sempre múltiplas) é tendencialmente autoritária e serve para justificar diferenças e tratamentos privilegiados. Não por acaso, Simone de Beauvoir, Judith Butler, Achille Mbembe, dentre outros, apontam que significantes como “mulher” e “negro” foram construções dos opressores para “justificar” opressões.
Quem protege da bondade dos bons?
Assusta ver que parte significativa dessas posturas intolerantes, agressivas e de controle da cultura não partem de um Estado autoritário ou da extrema-direita, mas de uma parcela da população ultrassensível à injustiça. E isso seria ótimo, como percebe Caroline Fourest, se essas pessoas não estivessem tomadas por uma visão inquisitorial de justiça que parte de certezas tipicamente paranoicas. Diante dessa distorção que contamina as “melhores intenções”, cabe indagar: “quem nos protegerá da bondade dos bons”? (Agostinho Ramalho).
Tem-se um contexto paradoxal: vive-se um mundo em que o ódio se encontra liberado, em especial nas redes sociais, embora a liberdade de falar e de pensar esteja sob profunda vigilância. Mas não é só. Estamos em uma quadra histórica na qual, em nome da liberdade e até do amor ao próximo, odeia-se cada vez mais.
De um lado, tem-se a manipulação e o comércio da incitação ao ódio, da mentira e da mistificação por quem detém o poder político e/ou o poder econômico, protegidos em nome de uma visão distorcida e ideologicamente direcionada da “liberdade de expressão”. De outro, um grupo de inquisidores de esquerda, que pretende afirmar uma espécie de superioridade moral, faz o papel de corregedor do pensamento, atacando adversários, destruindo reputações e impedindo que artistas e suas obras sejam vistos.
De volta ao castelo dos vampiros.
O diagnóstico de Caroline Fourest vai ao encontro do pensamento de Mark Fisher expresso em um de seus mais importantes textos: “Deixando o castelo do vampiro”.
Para Fisher havia um sentimento paralisante de culpa e suspeita que acabava por enfraquecer as lutas contra todas as formas de opressão, bem como distanciava grande parcela da população das lutas da “esquerda”. Ainda segundo ele, os moralistas da posh left (algo como “esnobes de esquerda”) não cansavam de submeter as pessoas a julgamentos inquisitoriais e a assassinatos de reputação, mesmo que para isso fosse necessário recolher “evidências” em fontes da direita mais reacionária e comprometida com os interesses das grandes corporações financeiras. Mas, não é só. Fisher também identificou uma parcela da esquerda que parecia acreditar que a classe trabalhadora deveria permanecer na pobreza e na impotência para não perder “autenticidade”.
O “castelo dos vampiros” seria o local da propagação da culpa e de onde partiriam os ataques a pessoas que poderiam figurar como companheiros de luta contra a opressão. No lugar da conscientização e do diálogo, que ajudariam a corrigir equívocos e a superar eventuais preconceitos, a opção pelos ataques, muitas vezes em tom despótico, revela uma perversão da esquerda.
Antes dele se tornar mais uma vítima desses “vampiros”, Mark Fisher chegou a elencar as “leis” do “castelo dos vampiros”. Dentre elas, a que enuncia o dever de individualizar e privatizar os problemas, fazendo com que a crítica seja direcionada ao indivíduo e deixe de lado as estruturas impessoais e os condicionantes históricos ou sociais. No castelo dos vampiros, como apontou Fisher, busca-se propagar tanta culpa quanto possível e, quase sempre, “essencializar” as pessoas. Recorre-se, para tanto, a simplificações da realidade, a dicotomias (bem contra o mal) e a posturas identitárias que têm como principal efeito político a fragmentação do campo dos oprimidos.
Abandonar o “manual do militante perfeito”
Hoje, as mentalidades inquisitoriais, tanto à direita quanto à esquerda, recorrem a manuais de comportamento que estabelecem as condutas esperadas dos “militantes perfeitos” e as penas cruéis a serem impostas aos impuros. Se as regras do “manual” não são rigorosamente seguidas, dá-se a demonização do infrator.
Ao seguir esses manuais da militância, as pessoas tornam-se acríticas e perdem a potência criativa. Impossível construir coletivamente algo comum se inexiste autonomia. Quem quiser mudar a sociedade precisa abandonar esses discursos padronizados que só fazem sucesso entre os iniciados no ativismo e na militância.
Não se pode querer transformar o mundo podando o pensamento, interditando a fala ou reproduzindo frases feitas e cânticos anacrônicos. É preciso frear a tendência ao patrulhamento e abandonar o narcisismo das pequenas diferenças. Como deixou escrito Mark Fisher, o objetivo não pode se resumir a “ser um ativista” ou posar de militante perfeito. É preciso ajudar na transformação da sociedade, reconhecer as diferenças, aprender com as contradições e participar ativamente da construção coletiva de um outro mundo.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano