Covid-19: um país sem humanidades é desumano

Covid-19: um país sem humanidades é desumano
(Foto: Arte Revista Cult)

 

A pandemia causada pelo Covid-19 alastra-se pelos cinco continentes. Em um contexto de globalização, os efeitos da disseminação são catastróficos e escancaram a perversidade do neoliberalismo, ao acentuar uma crise que já se instalara há muito tempo e que diante da ameaça à vida não é possível encobrir. Essa crise tem, pelo menos, três perspectivas, além do pano de fundo ligado aos problemas ambientais: (i) a da saúde, causada, sobretudo, pelo estrangulamento da capacidade de atendimento, insuficiência de materiais, falta de recursos humanos e de infraestrutura nos hospitais e postos para atender muitas pessoas simultaneamente, situação agravada pela política de teto de gastos do governo; (ii) a sanitária, que já assombra tanto as regiões distantes dos grandes centros, quanto estes últimos, em virtude da superpopulação, ainda mais se consideradas a população das periferias, ruas e presídios, sem condições mínimas (falta de água, por exemplo) para proteção contra vírus; (iii) a econômica, pois empregos, manutenção da renda, medidas protetivas ao setor produtivo e de serviços dependem da atuação imediata do Estado, que vem se omitindo ou apresenta soluções insuficientes diante da gravidade do cenário. São os mais pobres, aqueles que não têm sequer meios para o autoisolamento que vão sucumbir em maior número: trabalhadoras e trabalhadores em situação de vulnerabilidade sofrerão mais que as outras camadas sociais os efeitos cruéis da doença, redução de salários, desemprego, perda de direitos, que os levará à perda de moradia, à fome, à marginalização ainda mais acentuada.

Mas o coronavírus deflagra, ainda, uma crise profundamente humana que subjaz às perspectivas apontadas. O debate em torno da pandemia impõe perguntas importantes: onde está a dimensão da solidariedade na sociedade, entre os indivíduos? Onde está a dimensão humanitária neste momento? Qual o lugar dos afetos e do diálogo? Qual é a função da arte e da cultura? Como enfrentar a pandemia sem que, paralelamente ao enfrentamento das três perspectivas da crise apontadas, haja ampla e profunda reflexão sob o ponto de vista das humanidades (e aqui se incluem ciências humanas, artes, cultura)?

Para além do pragmatismo que a contenção da propagação do vírus e do que ele desencadeia reivindica, como refletir sobre as megalópoles, sobre benefícios e toxidades das redes sociais, sobre aqueles que, vítimas da desigualdade, não podem desfrutar do mundo virtual? Como pensar sobre a aceleração do tempo e esvaziamento das relações humanas? Como enfrentar as relações de poder corroídas e as ameaças à democracia, questões que a cada dia mais vêm à luz a partir do que o quadro criado pela Covid-19 desvela, põe a nu? Como tomar posição frente a essas questões sem que as ciências humanas, as artes e as manifestações  culturais ocupem lugar de destaque para fomentar discussões, para propor pontos de vista diferentes, para dialogar com as subjetividades que vagam em busca não de respostas, mas de perguntas que façam sentido à existência, que partam da experiência, esta que nos assola? Se transformado em massa amorfa, o gesto crítico das ciências humanas e das artes não poderá exercer o papel de pensar sobre o mundo e de devolver questionamentos, esperanças, estesia a um país que mergulha em ruínas, destituído de tantos meios de circulação da cultura – virtuais ou físicos.

As ações, pesquisas e intervenções que buscam a solução para a gravidade do cenário presente de modo pontual e eficaz, apesar de cruciais para a sobrevivência e para a preservação de vidas, não são capazes de promover a superação dos danos que a Covid-19 expõe sem a participação dos profissionais das humanidades, sem artistas; mundo este dominado pelo capitalismo em seu estágio mais atroz. A desunião está na própria esquerda, em parceiros de um mesmo campo, em grupos de Whatsapp, páginas de Facebook, nas janelas de um mesmo apartamento disputando para ver quem veicula a melhor canção de protesto, no oportunismo da campanha política de oposição sob o “álibi” do combate ao vírus. O que significa ação coletiva? Por que não gritamos o mesmo grito ainda?

É fundamental que ao mesmo tempo que os encaminhamentos protetivos que se implementam no curto prazo sejam acompanhados de uma vasta rede de produção de conhecimento nas humanidades e que esta tenha meios para atuar na proposição de reflexões e comportamentos coletivos que possam promover alterações radicais no curso da história. Ao darem suporte às medidas de curto prazo, contribuem para o fortalecimento das instituições do estado democrático de direito, para a organização do trabalho, das relações entre as pessoas, no combate à desigualdade, para a percepção subjetiva e comunitária da vida, isto é, as humanidades oferecem, por meio da arte e do pensamento, bens imprecifícáveis, e, nesse aspecto, atuam diretamente na sociedade que não tem sabido a quem endereçar as mais íntimas demandas, pois são reduzidos os espaços de evasão e de lirismo, as possibilidades do lúdico e do viver artístico, em meio ao desalento. Tais demandas em muito ultrapassam a questão econômica ou social, estão em jogo os mais íntimos anseios individuais ligados à vida, ao tempo, à rotina, ao entretenimento, aos bens culturais, às cidades pelas quais circulamos e é importante não esquecermos disso.

Em outras palavras, uma coisa é dominar o mundo, desafiá-lo, regulá-lo, organizá-lo, conforme discutem e explicam as ciências exatas, biomédicas, humanas aplicadas; outra é ter acesso a ele, habitar esse mundo esteticamente e acessá-lo culturalmente, por assim dizer, pelo caminho que é fornecido pela própria reflexão, pois arte e pensamento resistem ao acinzentado do mundo para repropor um acesso ao que nos rodeia, ao humano, ao sentido ou à falta dele.

A garantia de ação das ciências humanas, do trabalho artístico e da cultura é urgente na superação do caos instalado. O Estado e toda a sociedade precisam fortalecer, valorizar e legitimar o valor dessas instâncias no combate à doença e para o que virá depois dela, em sua dimensão humana mais profunda. O sucateamento das humanidades imporá custos ainda maiores do que o coronavírus – tolherá a capacidade de reações para vencer quadros semelhantes no futuro. Um país que não reflete, não desfruta da arte, não entende o valor da cultura e não aprende a olhar para si mesmo, não é capaz de alteridades, pois ignora a organização social e política em que está imerso, que silencia as subjetividades e desmerece o pensamento crítico, é refém do dogmatismo. Não combate doenças, não derrota o neoliberalismo, sucumbirá sem meios para lutar. Um país sem humanidades é desumano.

DIANA JUNKES é poeta, crítica literária e professora da Universidade Federal de São Carlos, onde coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Poesia e Cultura – NEPPOC/CNPq (dijunkes@gmail.com).


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