Pacote penal acelera marcha para o milhão carcerário

Pacote penal acelera marcha para o milhão carcerário
O ministro da Justiça e Segurança Pública participa de solenidade de assinatura de acordo de cooperação técnica com o Banco do Brasil (Valter Campanato/Agência Brasil)

 

O ministro Sergio Moro comemorou a rápida e quase consensual aprovação, ainda que parcial, de seu Pacote “Anticrime”. Deputados da oposição, a seu turno, cantaram vitória pela desidratação do texto, que foi à votação sem vários pontos importantes. A guerra de narrativas dominou o horizonte político na semana que passou. Este artigo não pretende discutir quem venceu; quer apenas tratar sobre os derrotados.

A população preta, pobre e periférica é, sem dúvida alguma, a maior derrotada. 

As pesquisas apontam que é justamente sobre ela que recai a parte mais vigorosa da repressão penal. Não porque cometam mais delitos; mas porque são mais vigiados e mais punidos, quando, obviamente, sobrevivem às abordagens policiais.

O racismo estrutural; o caráter classista do direito, que tutela mais a propriedade do que a vida; a vulnerabilidade que dificulta a defesa. 

Várias são as causas, mas as consequências são visíveis a olhos nus: um volume desproporcional de negros e pardos e pobres de baixa instrução que superlotam as cadeias. Com a aprovação do pacote, superlotarão ainda mais, sem qualquer garantia de investimento nas instituições prisionais – até porque o ministro Moro garantiu, na sua exposição de motivos, que este seria um projeto sem aumento de despesas. 

Um dos pontos cruciais da legislação aprovada é justamente aquele que aumenta o prazo de progressão de regime. Quanto maior o tempo exigido, mais pena cumprida em regime fechado. A progressão padrão de 1/6 praticamente desaparece: ficará destinada apenas àqueles que tenham cometido crimes sem violência ou grave ameaça e ainda sejam primários, ou seja, o público que em regra desde logo cumpre pena em regime aberto e não precisa da progressão.

O roubo com emprego de arma de fogo ou com restrição da liberdade da vítima, diga-se as hipóteses mais comuns, passam a ser considerados crime hediondo; mesmo primário, o condenado deverá cumprir 40% da pena, até poder pleitear a progressão de regime. Considerando que a pena foi aumentada para oito a 20 anos, a progressão só será possível depois de mais de três anos de regime fechado.

Seria interessante saber dos propositores da lei qual o impacto carcerário desta singela medida. Mas a depender de seus autores jamais saberemos, porque seja a do ministro Moro, seja a do ministro Alexandre de Moraes, nenhuma das exposições de motivos vieram acompanhadas de estudo científico. Moro ainda foi mais longe ao dizer que seu projeto não se destinava aos professores de processo penal, invocando a máxima do terraplanismo que envolve a administração como um todo: não à ciência, não ao saber.

Quem milita no campo penal, todavia, não desconhece esse enorme impacto – tanto mais que a medida é acompanhada de outras regras igualmente draconianas, como a de considerar também hediondos o furto com explosivos ou a posse de arma restrita, cuja pena também se multiplica. 

A audiência de custódia, em boa hora, acabou entrando expressamente na legislação nacional – até então era reconhecida pelo caráter supralegal da ratificação da Convenção Americana, o Pacto de San José da Costa Rica. O intuito de Moro era inviabilizá-la, ao propor que se fizesse preferencialmente por videoconferência. Essa restrição não chegou a ser aprovada; mas a norma que proíbe o reincidente de receber a liberdade provisória vingou (art. 310, §2º, nova redação). 

Isto mostra que o processo como garantia, tal como erigido pela Constituição cidadã, também foi outro derrotado. Com essa norma, recupera-se a ideia da prisão preventiva compulsória, que já está afastada de nosso ordenamento há pelo menos 50 anos. Como prisão compulsória, quer-se dizer uma prisão preventiva que decorre de regras gerais e independe da demonstração da necessidade cautelar da custódia em cada caso.

Sim, este é o mesmo tema da malfadada “prisão em segundo grau”, que graças ao caso Lula, virou objeto de desejo preferido nos meios políticos. É certo que a regra da prisão em segundo grau (inconstitucional, aliás) não foi votada neste projeto, o que também gerou comemorações oposicionistas; na semana seguinte, porém, foi aprovado um projeto específico no Senado sobre o tema – caminho, aliás, que poderá ser trilhado em relação aos pontos que ficaram de fora.

Mas é bom lembrar que mesmo a prisão em segundo grau deixou um filhote no texto: a prisão obrigatória em primeiro grau do reú condenado a pena maior de 15 anos no Tribunal do Júri. A prisão preventiva compulsória da versão original do Código de Processo Penal de 1941, de conhecida inclinação fascista, era exigida dos crimes apenados com dez ou mais anos de reclusão.

A ampliação da excludente de ilicitude não entrou no acordo; mas ela também deixou resquícios pelo caminho: a legítima defesa preventiva, que repele “risco de agressão” no caso de refém (em uma redação confusa, eis que a princípio exige a presença dos requisitos tradicionais da legítima defesa) e a criação de um procedimento de inquérito com direito ao contraditório. Esta seria, de fato, uma novidade a ser saudada, se não fosse destinada exclusivamente para policiais acusados de violência. Por que, afinal de contas, o policial suspeito de uso abusivo da força precisa ou merece uma defesa maior que todos os outros réus? Como se vê, o princípio da igualdade também sofreu importante revés.

Ideia fixa da Lava Jato, o confisco alargado finalmente foi aprovado, normatizando uma questionável prática da operação que foi o esvaziamento do conceito jurídico de propriedade, para alcançar bens que, embora não sejam de titularidade do réu, tenha ele o “benefício direto ou indireto”. Vale aqui a epígrafe que sugeri quando do projeto das chamadas 10 Medidas contra a Corrupção: “Legaliza a Operação Lava Jato e dá outras providências…” 

A péssima ideia de destinar bens apreendidos a quem os apreendeu coloca em evidência um conflito de interesses preterido pelo utilitarismo: não demora e estaremos destinando aos promotores as custas cobradas dos processos em que oficiam.

Até questões tradicionalmente superadas do Direito Penal foram reinterpretadas no projeto, como a recuperação do flagrante preparado, crime impossível por natureza. Moro quis deixar claro que a venda simulada de droga por policial disfarçado caracteriza o tráfico; mas em vez de exigir prova da posse pretérita da droga (ou seja, que o agente não foi atrás dela apenas porque o policial pediu), ele se contenta na hipótese em que estejam presentes “elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente”. 

A explicitação é sutil, mas incorpora a ideia de que “elementos razoáveis” são suficientes para condenar. Ou seja, a presunção da inocência que já havia sido ferida com a prisão preventiva compulsória, também sai aniquilada com a baixa do sarrafo da exigência de provas.  

O que o texto tem de razoável não passou por Moro, mas pela comissão do ministro Alexandre de Moraes, como a exigência de representação da vítima para a ação penal pelo estelionato e a incorporação da cadeia de custódia das provas. Ademais da timidez destes avanços – seria o caso de se perguntar por que não a mesma exigência de representação com outros delitos sem violência, como o furto? -, eles são ainda mais do que compensados pelo espírito da Lei de Crimes Hediondos que guiou o ex-promotor: o aumento de 30 para 40 anos no limite de penas e a distribuição banalizada da hediondez.

Cabe lembrar que o limite de penas de 30 anos foi proposto em 1983, pela Comissão que então redigia a Nova Parte Geral do Código Penal, ainda durante a ditadura.

Lembrar da Lei dos Crimes Hediondos, aliás, também teria sido muito oportuno. Seria o caso de seguir o conselho de Paulinho da Viola: “quando eu penso no futuro não esqueço meu passado”. A LCH é de 1990, quando a massa carcerária ainda estava por volta de 90.000 presos; depois dela, foi subindo sem parar, até ultrapassarmos os 700.000, e sermos agraciados com a medalha de bronze do superencarceramento mundial. 

Nas discussões sobre a edição da LCH, resgato o discurso de outro ex-promotor, professor Damásio de Jesus: 

Urge que se faça alguma coisa no plano legislativo com o fim de reduzir a prática delituosa, protegendo os interesses mais importantes da vida social com uma resposta penal mais severa, um dos meios de controle deste tipo de criminalidade.” (apud SILVA FRANCO, Crimes Hediondos; Saraiva, 2005, p. 93).

“Alguma coisa no plano legislativo” foi prender mais, mais e mais. Atacando nos mesmos pontos: aumento de penas, criação do “hediondo” como obstáculo para as progressões e prisão preventiva obrigatória -até que o STF reconhecesse 15 anos depois a inconstitucionalidade de parte da lei. O resultado da lei foi um sistema penitenciário devastado, o crescimento gigantesco do encarceramento feminino e a criação e fortalecimento das facções criminosas.

Ajudar a combater a criminalidade certamente não ajudou, a ponto de chegarmos três décadas depois com um projeto denominado “anticrime” para dizer mais ou menos a mesma coisa, em um exercício que, na melhor das hipóteses, representaria o ingênuo triunfo da esperança sobre a experiência. Na pior, uma demagogia rasteira para vencer eleições à custa de corpos pretos e pobres.

A retirada do texto da ampliação da excludente de ilicitude é um alívio – só por propor como política de governo o estímulo à morte para combate à criminalidade, Moro deveria estar às barras dos tribunais internacionais. Mas o fato é que o estímulo à matança funciona mesmo sem a lei aprovada. O aumento da violência estatal nos grandes centros é uma mostra clara de que inserir na legislação a licença para matar pode ser menos importante do que a certeza de que os governos não agirão contra aqueles que se excedem.

O pacote “anticrime” foi, sobretudo, uma armadilha. 

Um texto com a envergadura de Código, com uma plêiade de leis que não têm conexão umas com as outras, reunidas em um único texto com o objetivo de aprovar o que se conseguisse. Para quem não tem amnésia, foi exatamente o mesmo modelo das 10 Medidas contra a Corrupção. O próprio Moro apresentou o pacote, pela primeira vez em fevereiro, também dividido em “medidas”. 

A ideia de que é possível fazer uma lei genericamente “contra corrupção” ou “contra o crime” banaliza o processo legislativo, outro dos derrotados do episódio. Códigos são projetos resultantes de grande maturação; e por isso mesmo, acabam sendo legitimados em sua trajetória. O processo é longo, porque é preciso compreender e aceitar a lógica e os sistemas que são propostos. Não basta votar como um bordão. 

Da mesma forma, seria preciso de tempo para discutir uma quantidade tão grande de leis, de natureza, complexidade e temas diferentes (até processo civil entrou de cambulhada). Os interlocutores de cada medida, ou de cada projeto, eventualmente são diferentes. Quando se aglutinam, muitos temas perdem relevância. Aqui mesmo, a despeito de um texto longo, foi impossível discutir a maior parte das disposições: captação ambiental, perfil genético, regimes diferenciados, recompensa ao informante, acordo de não-persecução penal e civil, entre vários outros.

Podíamos de fato mencionar que a versão final acabou por abrigar a figura do juiz de garantias, importante, sobretudo, para distinguir o juiz que se envolve na investigação daquele que virá a julgar a acusação. Quem acompanhou com atenção aos capítulos da Vaza Jato sabe muito bem a relevância disso. A proposta, todavia, ainda está cercada por incertezas, ameaçada de veto e dependente de uma adesão do Judiciário para sua implementação.

Enfim, se há uma coisa que o pacote garante é que o tempo para chegarmos ao milhão carcerário será fortemente reduzido. Ultrapassá-lo, provavelmente, também não vai demorar. 

Não é de se estranhar que alguém se candidate balançando justamente a bandeira da continuação deste monstrengo. Como já previram Patrick Mariano e Rafael Borges neste espaço na semana que passou, discurso para Moro não faltará.

MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Doutor em Criminologia pela USP, é membro e ex–presidente da Associação Juízes para a Democracia


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