A honestidade de Said e as falácias de Sayid
(Foto: Ansa Brasil/Reprodução)
“(…) seria injusto desprezar o poder do sionismo enquanto uma ideia para os judeus ou minimizar o complexo debate interno que caracteriza o sionismo, seu verdadeiro significado, seu destino messiânico etc. Apenas tratar desse assunto e, mais ainda, tentar “definir” o sionismo é uma questão muito difícil para um árabe, mas deve ser analisado com honestidade. (…) Sei (…) o que o antissemitismo significa para os judeus, sobretudo no século 20. Consequentemente, sou capaz de compreender o misto de terror e júbilo que alimenta o sionismo, e acredito que posso ao menos captar o que Israel significa para os judeus (…). Mas, como sou um árabe-palestino, também posso ver e sentir outras coisas, e são essas coisas que complicam consideravelmente a questão e me levam a me concentrar nos outros aspectos do sionismo. O resultado, acredito eu, merece ser descrito (…) porque é útil ver os fenômenos complementares, que normalmente não são associados entre si”
Edward Said
“Eu odeio o sionismo, assim como eu odeio o antissionismo”
Franz Kafka
A corrupção de um conceito na forma de um pecado original
Theodor Adorno, na sua genial crítica da modernidade, insistia no fato de que o aprisionamento do pensamento dentro de conceitos cristalizados e fetichizados não era apenas uma recusa de conhecer os objetos contraditórios da realidade como também era uma forma de dar vazão à razão instrumental cega à experiência concreta da vida. Tal mistificação criticada por Adorno, é alimentada em doses cavalares no que diz respeito ao conceito de sionismo tal qual formulado no artigo de Sayid Tenório publicado no site da Revista CULT, “A fábula do sionismo de esquerda”, assim como nos textos de Berenice Bento e Shajar Goldwaser em que Sayid se apoia. Toda a argumentação deles se estrutura numa pré-condição absoluta, num imperativo inescapável: para que se acabe com a violência e injustiças cometidas por Israel para com os palestinos e, mais ainda, para que haja paz entre os todos os povos do Oriente Médio e quiçá do mundo, é necessário se acabar com o que eles chamam de sionismo.
Berenice Bento substancia a retórica de Sayid sem ambiguidade: todo e qualquer israelense, mesmo os que são contra a ocupação e denunciam os abusos contra os palestinos, todos os movimentos pacifistas que congregam judeus e palestinos, ou até mesmo o movimento Breaking The Silence, de soldados israelenses que denunciam as brutalidades militares na Cisjordânia – sendo taxados de párias nacionais pelo mainstream de Israel -, todos eles, sem exceção, carregam um pecado original irreparável a menos que neguem em si mesmos a maldição de serem sionistas, pecado este que deve ser estendido a todos os judeus do mundo que se recusam a rechaçar de forma absoluta qualquer tipo de afinidade com o sionismo. Para Goldwaser, toda a esquerda que não tenha rompido com o sionismo “contribui com o extermínio do povo palestino”. Por tal lógica dos autores, deveríamos também incluir nesse grupo nefasto os refuseniks, soldados israelenses que se recusam a prestar serviço militar nos territórios ocupados, sendo inclusive alguns deles presos por conta disso em Israel. Afinal, boa parte destes soldados recusam a servir o exército precisamente por acharem que a opressão militar aos palestinos é contraditória com a sua defesa do…sionismo.
Sendo assim, sem mais, o sionismo definido como a encarnação do mal primordial, todos aqueles que o reivindicam de alguma forma irão constituir, sem qualquer nuance, um bloco homogêneo da perversidade. Assim, a luta sem tréguas contra qualquer sionismo se torna por tabela a tarefa política mais urgente, a mãe de todas as batalhas. Mas aqui a corrupção conceitual da demonização a priori do sionismo paga seu preço. Afinal, na lista de “campeões” de tal cruzada antissionista nossos autores irão encontrar a seguinte lista de companheiros de viagem: Para o atual aiatolá supremo do Irã Khamenei, o sionismo encarna um complô para impor ao seu país a igualdade de gênero e direito dos gays. Para o ex-presidente do Irã, Ahmadinejad, o próprio holocausto judaico seria uma farsa organizada pelo ardil manipulador do sionismo, com sua dominação da mídia, economia, etc. Já o Hamas é menos dissimulado e cita na sua carta de fundação diretamente o manifesto fundacional do antissemitismo moderno que são os Protocolos dos Sábios de Sião. No Kuwait, onde sionismo é crime de lesa-majestade, mais de 200 mil palestinos tiveram que fugir numa cruel punição coletiva em função do apoio da OLP para Saddam Hussein na Primeira Guerra do Golfo.
E mais: para parcelas importantes da mídia e elites do mundo árabe, a primavera árabe foi um complô urdido pela mídia e elites globais “sionistas”. Já para o governo de Assad – responsável junto com Irã, Rússia e Hezbollah pelo morticínio de 90% dos centenas de milhares de civis na atual tragédia síria, aqui inclusos milhares de palestinos, e também pela tortura até a morte de mulheres e crianças – a oposição da sociedade síria ao seu governo só pode ser mais uma maquinação destes malditos judeus sionistas. Note-se aqui que temos uma combinação curiosa de um antissionismo que é antissemita, mas que ao mesmo tempo também é islamofóbico. Pois, afinal, quando se afirma que as pessoas que têm protestado massivamente contra seus governos autoritários na Síria, no Irã e mais recentemente na Argélia são meras marionetes dos “tentáculos” sionistas, o que se está afirmando no fundo é que essas pessoas não tem agência, não tem inteligência, não tem capacidade de tomar decisões políticas por si próprias, e logo são atrasadas, incapazes e ingênuas. Tem-se aqui uma réplica do discurso orientalista racista que Edward Said tão bem analisou, com a diferença de que no caso não é o Ocidente, mas sim as próprias lideranças do mundo árabe que o sustentam. Diga-se de passagem, que o mesmo fenômeno – o antissionismo antissemita e islamofóbico ao mesmo tempo – é uma marca de parte da nova e influente extrema-direita mundial. Para figuras como o popular francês Alain Soral, ou para o ex-líder da Ku Klux Klan David Duke que é a referência dos supremacistas brancos que gravitam em torno do Trumpismo, os judeus sionistas são os responsáveis por incentivar a imigração muçulmana como forma de destruir a “pureza” da França e América cristãs. Ficamos muito curiosos como Sayid se posiciona em meio a esta salada bizarra cheia de fantasias…
Nos parece evidente que. para a discussão avançar, é preciso separar dois planos do problema em tela que, mesmo que componham um mesmo todo, exigem análises separadas para que este todo seja devidamente iluminado. De um lado, não há em absoluto qualquer simetria ou igualdade na relação entre o governo de Israel e os palestinos. Tal argumentação “moralizante” ou justificadora da ocupação de Cisjordânia e do bloqueio de Gaza da parte de muitos dos defensores de Israel deve ser tratada como ela é, a saber, uma hipocrisia que nos fatos corrobora a continuidade das prisões, assassinatos, checkpoints, punições coletivas e roubo de terras e recursos e que inviabiliza nos fatos a solução de dois Estados. Se como ironizou Marx, o Groucho, que “inteligência militar é uma contradição em termos”, a inteligência militar imposta por Israel no dia-a-dia dos palestinos é a contraface da imposição de uma vida cada vez mais sufocante e sem perspectiva de melhora para milhões de pessoas e que deve ser tratada sem ambiguidade como a desumanidade que é. A ocupação se transformou num fato consumado que sustenta tanto a posição do complexo militar-industrial de Israel como exportador mundial de tecnologias de controle e repressão assim como sustenta os interesses dos EUA em manter a região sob ameaça militar permanente. Assim como a ocupação também serve para desviar as tensões internas de uma pretensa “start-up nation” que expulsa aqueles judeus que ela não consegue integrar para a colonização da Cisjordânia. Com a ascensão de Trump e seu apoio a Netanyahu, reforça-se ainda mais a narrativa grotesca orientalista e islamofóbica que busca estigmatizar todos os palestinos, árabes e muçulmanos para perpetuar o impasse em curso.
Mas aqui chegamos então na questão fulcral. Como, para valer, é possível combater o impasse Israel/Palestina? Seguir a “lógica” de Sayid e demais de que só o fim de todo e qualquer sionismo é a pré-condição de qualquer saída? Obviamente que tal posição é em si mesma parte do próprio impasse. E isto por uma razão muito simples: para a grande maioria dos judeus, o sionismo não tem a ver com as fantasias delirantes descritas acima, mas sim como a ideia de um lar/estado nacional na Palestina como válvula de escape derradeira tanto perante o antissemitismo europeu devastador da primeira metade do século 20 – num contexto em que o mundo ocidental inúmeras vezes limitou ou barrou a imigração de judeus – assim como perante o antissemitismo dos países muçulmanos após a criação de Israel em 1948 que acarretou na expulsão, fuga ou coação para imigrar de 900 mil judeus do Oriente Médio, muitos dos quais migraram para Israel e hoje com seus descendentes perfazem mais da metade dos judeus do país. Ou não?
Neste ponto é impossível tergiversar. Ou bem adotamos uma postura universalista de criticar toda e qualquer aspiração nacional, tal como Kafka sugeriu quando disse que “Eu odeio o sionismo, mas também odeio o antissionismo”, ou então caímos na armadilha kafkiana de dizer de que os judeus – e apenas os judeus – não têm direitos a tais aspirações, mesmo com toda a realidade do antissemitismo que ainda está muito longe de ter acabado, muito pelo contrário. A situação seria completamente diferente se a crítica ao sionismo estivesse lastreada na tese bastante pertinente e promissora de que o Estado-nação virou algo obsoleto em todo o mundo e que, portanto, ele deve ser superado com a abolição de todas as fronteiras entre todos os países. Neste plano, não apenas o sionismo, mas também os nacionalismos palestino e árabe deveriam ser igualmente superados.
Todo o problema é que Israel e Palestina estão entrelaçados num caso sui generis em que a questão nacional foi e ainda é inescapável. Hannah Arendt certa vez formulou de forma lúcida que “a restauração dos direitos humanos, como o exemplo recente do Estado de Israel prova, foi alcançada até agora através da restauração ou do estabelecimento de direitos nacionais. O mundo não encontrou nada sagrado na nudez abstrata de ser humano”. Tal ausência de direitos humanos dada a ausência de direitos nacionais que conduziu os judeus para o sionismo é a mesma dinâmica que hoje torna a aspiração por direitos humanos dos palestinos diretamente ligada à sua aspiração nacional. Pois mesmo se é inegável que a tragédia judaica não foi produzida pelos palestinos, e que por outro lado a tragédia palestina foi e ainda é reproduzida fundamentalmente por Israel, e também se é inegável que o sofrimento humano trazido pelo conflito hoje recai com um peso muito mais brutal sobre os palestinos, a formulação de Arendt – agora também estendida aos palestinos – é a única que pode fornecer uma base fértil para se sair do impasse. Não se pode esquecer também que, mesmo que Israel seja já um Estado-nação poderosamente armado e que a Palestina de outro lado viva sob ocupação e bloqueio de Israel, é evidente que os temores dos israelenses quanto ao seu estatuto futuro num Oriente Médio em convulsão e desagregação não vem apenas da propaganda de medo e ódio de Netanyahu, mas tem sim também bases muito concretas na realidade passada e atual da região.
Sobre crimes e castigos
Pelo fato de Sayid e os demais autores definirem o sionismo já em si e por si mesmo como “o” crime, as suas proposições políticas colocam o pecado de ser sionista à frente de tudo. Propositalmente ou não, se mistura aqui o joio e o trigo, e a narrativa joga a coerência para o espaço. Ninguém em sã consciência poderia negar que sob a bandeira e em nome do sionismo crimes, racismos, barbaridades e alianças espúrias foram e são praticados. Todo o problema é que se estes forem o critério de demarcação, por obrigação devemos aqui devolver a questão a Sayid. O mufti Hussein principal dirigente nacional palestino foi o grande aliado de Hitler no Oriente Médio durante a Segunda Guerra, e a OLP foi a grande aliada de Saddam Hussein quando este dizimava mais de 100 mil curdos no fim dos anos 1980. O governo do Sudão na década passada, em nome do nacionalismo árabe, produziu o extermínio racista de centenas de milhares de negros não-muçulmanos. O Irã, após a vitória dos aiatolás, prendeu ou matou toda a sua esquerda que tinha jogado um papel chave na Revolução e ainda hoje prende ou deixa no exílio seus ativistas. Para não falar da atual sustentação militar e política iraniana dos crimes hediondos de Assad em curso na Síria. Por conta de tais fatos seriam então por definição pecados o nacionalismo palestino, árabe ou iraniano? Ora, quando um crime praticado por um judeu é qualificado como infinitamente mais malévolo que crimes iguais ou piores cometidos por outros, isso não apenas é antissemitismo, como trata-se de uma aporia que tem consequências políticas viesadas muito práticas.
Senão, vejamos. Para Sayid “a esquerda sionista condena os chamados “atentados” realizados pelos diversos grupos palestinos que lutam pela independência”. Aqui de novo Sayid teima em misturar tudo. Se ninguém pode condenar a resistência, inclusive violenta, à ocupação israelense, isso jamais pode estar no mesmo plano dos atentados do Hamas e outros grupos quando estes explodem cafés ou ônibus escolares, ou ainda quando lançam mísseis contra civis israelenses. Se assim não for, Sayid deve então conceder aos curdos o direito de assassinar civis no Oriente Médio, posto que quase meio milhão deles foram mortos desde a Primeira Guerra Mundial em conflitos com países do mundo muçulmano. Ou ainda pela mesma lógica, Sayid deve concordar que um refugiado sírio cuja família foi morta pelo governo Assad poderia explodir um café em Teerã ou numa cidade libanesa em que o Hezbollah tem domínio político. Ou os castigos só valem para os judeus? Deixemos aqui o professor palestino e ex-conselheiro da OLP Rashid Khalidi dar o veredito sobre os atentados do Hamas que Sayid coloca entre aspas: “além de serem moralmente indefensáveis, isso se provou ser um terrível erro estratégico”. Em síntese, não é preciso ser muito inteligente para ver que por trás da cortina de fumaça de juras de ódio e destruição mútua entre Israel de um lado e Irã/Hezbollah/Hamas do outro, no fundo todos eles estão perfeitamente irmanados na manutenção da geopolítico da barbárie que varre a região. Netanyahu é o primeiro a agradecer a narrativa de crimes e castigos de Sayid.
Num outro plano coloca-se o mesmo problema. Berenice Bento tem razão ao afirmar que muitas vezes a retórica dos israelenses em relação aos palestinos é sim coberta de uma pretensa superioridade moral que é racista. Ademais, o argumento de que Israel não deve cometer atos bárbaros em nome de supostas credenciais éticas é uma sublimação das barbáries cometidas e que merece sim ser condenada. Todavia, Bento parte do princípio indefensável de que toda e qualquer fala do israelense não pode jamais ser tomada pelo seu valor de face. Ou seja, quando um israelense defende os direitos dos gays sempre é pinkwashing, quando um israelense tem posições de esquerda sempre é redwashing. Consequentemente, seguindo a argumentação de Bento, as posições de esquerda dos israelenses sempre carregam a “limpeza/washing” de algo ruim e, portanto, sempre escondem alguma outra posição condenável. Não se trata aqui de negar que tais fenômenos existam (apenas perguntaria a Bento se ela concordaria que também existe um antizionistwashing avassalador para cobrir diferentes abusos e violências no mundo muçulmano…). A questão de fundo aqui é bem outra. Para qualquer um que conheça a questão judaica, é difícil não notar que a essencialização sem mediações que envolve tal discurso sobre “limpeza” flerta diretamente com o circuito fechado do ressentimento antissemita: quando o judeu fala algo positivo e para o bem, no fundo ele sempre pretende dissimular uma intenção má, pérfida, sub-reptícia, oculta, isto é, “suja”.
Em suma, é preciso aqui concluir com o óbvio. É sim de se esperar que, um palestino submetido ao terror de Estado da ocupação israelense apoie o Hamas e toda a sua política. Mas também é possível esperar que um israelense tenha receio em criticar o seu governo quando a narrativa que lhe é apresentada como alternativa clama por “destruir a entidade sionista” ou “varrer Israel do mapa” como fazem Irã/Hamas/Hezbollah. Ou não? Ora, apenas o entendimento mútuo entre judeus e palestinos levando em conta suas respectivas aspirações nacionais no sentido de Hannah Arendt pode trazer a paz, inclusive para uma futura solução pós-nacional para o conflito. Para tanto, é obrigatório rechaçar a guerra de narrativas de pretensos “líderes” dos dois lados que nos fatos apenas corroboram o atual status quo. A ex-premiê israelense Golda Meir certa vez disse que “não existe povo palestino”. No caso, tratava-se de negar a causa palestina, dissolvendo-a no mundo árabe em geral. O fato de que a causa palestina continue extremamente viva é a contraprova da falácia de Meir. De outro lado, o Dr. Ahmad Shehada, presidente do Instituto Brasil Palestina(IBRASPAL) do qual Sayid Tenório é o secretário-geral, afirmou recentemente em discurso na Assembléia Legislativa de São Paulo “Os judeus de hoje são os sionistas estupradores da Palestina, a maioria deles não tem nada a ver com os israelitas que ocuparam a Palestina por um período da história, mas são descendentes dos khazares, que se converteram ao judaísmo nos séculos 10 e 11. E são sim, filhos dos terroristas que massacraram os palestinos e destruíram locais de culto muçulmanos e cristãos e expulsaram as pessoas de suas casas.” Para o Dr. Shehada, os judeus de hoje não são os judeus da Bíblia (não diga Doutor!?), mas são todos terroristas e que seja maldita toda a sua descendência inclusive! Contra tais falácias de Sayid e seus companheiros, a honestidade ao se tratar da questão do sionismo e do antissemitismo tal como pleiteia o intelectual palestino Edward Said prossegue sendo o mais poderoso antídoto.
Daniel Feldmann é economista, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e professor adjunto do Departamento de Economia da Unifesp