Per cloaca ad astra

Per cloaca ad astra
O único elemento organizador das forças políticas visível nesta eleição foi a rejeição a Renan Calheiros (Arte: Revista CULT)

 

O episódio da recente eleição do presidente do Senado foi das coisas mais sintomáticas do estado da saúde do sistema político brasileiro, bem no comecinho desta medonha 56ª Legislatura. Deu para sentir perfeitamente o pulso da principal instituição política brasileira, e o que se pode verificar de cara é que as coisas andam mesmo muito ruins. Sim, teve tensão, tumulto, polarização, agressões e reviravoltas, mas até aí nada demais, política é uma atividade que envolve necessariamente competição, atrito, animosidade. Não se tratou, contudo, apenas disso. O que esses dois dias de eleição revelaram com clareza foi o estado caótico das forças políticas institucionais no país e, infelizmente, também o definhamento moral da câmara alta do Poder Legislativo brasileiro.

Já que a moral está na moda, comecemos por ela. Pois foi um impressionante espetáculo de molecagem, presepadas e briga de foice. Os senis senhores não tiveram pudor de, frequentemente, comportar-se como um monte de pestinhas malcriadas sem supervisão de adultos, disputando cadeiras, brigadeiros, pastas, docinhos e o cobiçadíssimo microfone, além da chance de aparecer na TV Senado. Aquelas coisas que crianças sem educação teriam vergonha de fazer quando a mãe está por perto. A maior parte das vezes, contudo, os senadores comportaram-se mesmo foi como uma horda descontrolada de marmanjos, todos cheios de apetites e más intenções, espumando fúrias e expelindo perdigotos, a armar ciladas e passar rasteiras uns nos outros.

Por etimologia, pelo menos, o Senatus é um lugar de “seniores”, pessoas não apenas com idade suficiente para ter juízo e sensatez, mas um exemplo de senioridade, esse capital simbólico atribuído pela sociedade a seus cidadãos mais eminentes. Pois, vejam só, o ponto mais sintomático do espetáculo da escolha do líder da Casa no fim de semana foi uma eleição fraudulenta, com mais votos na urna do que eleitores autorizados. Se tem gatuno no Senado até para tentar roubar uma eleição com apenas 80 pessoas e acompanhada em temo real pelo Brasil inteiro, imagine o que não farão esses senhores quando pouca gente ou ninguém estiver olhando. A mensagem foi passada e é muito clara.

O fato político é igualmente desanimador.  Até Fernando Henrique Cardoso, em um dos seus cada vez mais raros momentos de lucidez, foi capaz de perceber. E declarou, acertadamente, em um tweet:  “Triste eleição no Senado.  Não há esquerda e direita, nem governo e oposição.  Ou se reorganizam forças políticas ou como votar reformas? O povo se desilude, paga o custo da desordem e se abrem portas para aventuras”.

A primeira parte da declaração acertou na mosca, já quanto à segunda… Bem, Fernando Henrique é meio lerdo, como se sabe, caso contrário já ter-se-ia dado conta de que desde o final do ano passado o Brasil embarcou, efetivamente, em uma aventura.  Mas o fato é que o impeachment de Dilma Rousseff e o período de vale-tudo que se seguiu desbarataram as linhas de força tradicionais nas instituições políticas e desordenaram completamente o sistema político brasileiro. Não há mais nada que o vertebre ideologicamente, que ordene as forças em torno de projetos e líderes, como se percebeu na confusa, surpreendente e autodestrutiva eleição da presidência do Senado. O eleito, por maioria mínima, foi um audaz oportunista que acabou sendo visto apenas como o mais ousado dos anti-Renan Calheiros. Incitado, de fora, por um dublê de deputado e ministro, pessoalmente irrelevante quanto o próprio eleito. Anti-Renan, sim, pois o único elemento organizador das forças políticas visível nesta eleição foi o ódio, a rejeição a Renan Calheiros. O resto foi a história das contusões, das picuinhas e rancores há muito alimentados. Na eleição à presidência da República com na escolha do presidente do Senado, a rejeição parece ser a única coisa que realmente move a massa. Mais nada.

O que se seguiu à eleição não foi menos sintomático do estado de desordem e convulsão da política nacional. Analisando a vexaminosa eleição do Senado, a colunista Dora Kramer, ex-Estadão e agora na Veja, escreveu:

“O senador, até agora considerado imbatível no quesito dominação de apoios internos, foi vítima da própria arrogância que o impediu de perceber a mudança do rumo dos ventos. Achou que poderia renovar e dobrar a aposta. Tombou vítima de uma série de manobras que já havia aplicado quando no poder e que dessa vez foram adotadas contra ele.”

A reação do senador, publicada no Twitter, foi um assombroso monumento à canalhice.  Uma velhacaria surpreendente até para o nível Renan que, lembremos, surgiu na política nacional como um arruaceiro da chamada tropa de choque do candidato Collor de Mello, consagrando a divisa “bateu, levou”.  Pois bem, o amargurado senador consegue a proeza, de, em pouco mais de 100 caracteres, atacar da maneira mais vil a moral sexual da jornalista, rebaixar pesadamente dois ex-colegas senadores (inclusive o pai da sua rival no momento, Simone Tebet) e humilhar a própria esposa e o marido da jornalista, que entraram na narrativa apenas para tanto. Tudo no mais genuíno estilo canalha, tão em voga em ambientes de machos clássicos de quinta, à base do “está dizendo isso por despeito porque a rejeitei sexualmente”.

Surpresos? Ora, meus amigos, como assim surpresos? Os brasileiros acabaram de empossar como presidente da República o parlamentar que até então detinha todos os recordes de atitudes e declarações infames. Uma das mais fortes razões do seu sucesso, inclusive, vem da coragem de ser desbocado, ofensivo, sem peias ou filtros. “Zoeiro” e “lacrador” são os novos elogios da moda em política, reservados para quem não tem papas na língua nem coloca panos quentes, que, em vez de repreendido, será recompensado pela patada dada. Não fomos informados no dia 1º de janeiro de 2019 que no Brasil se inaugurava uma nova Era, que começava justamente com o fim do politicamente correto? E o que pode representar o fim do politicamente correto a não ser admitir que o cidadão de bem agora tem reconhecido o seu direito de ser politicamente sacana? Como vivem repetindo os bolsonaristas, “é assim agora!”.

O padrão do que pode, ou não, ser dito ou feito por homens públicos em público dificilmente voltará ao nível da decência.  Num país em que um deputado diz a uma colega que só não a estupra por não ter ela atrativos suficientes para merecer-lhe a “homenagem”, e é recompensado com a presidência da República, como ficar sinceramente surpreso com um senador que diz de uma jornalista casada que só não a pegou porque não quis e que ainda a repassou aos coleguinhas com menos dotes e graças? Alguém terá direito de se escandalizar com tal nível de cafajestice? Alguns de nós, sim, mas certamente não os que entronizaram aquele que até então era o canalha mor da nação.  Quem sabe Renan Calheiros, diplomado nacionalmente como “raposa política”, não tenha descoberto que o esgoto é o caminho mais curto para a ascensão política neste país da delicadeza perdida? Até sugiro uma divisa para a Nova Era, em latim, como deve ser: per cloaca ad astraÀs estrelas pelo esgoto! O latim é macarrônico e cafona, eu sei, mas assim também é o Brasil neste momento. É assim agora. Lastimo.


> Leia a coluna de Wilson Gomes toda sexta-feira no site da CULT

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