As eleições da OAB e a defesa da democracia

As eleições da OAB e a defesa da democracia
(Arte Revista CULT)

 

Amanhã é dia de eleição na Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo. Todos os advogados inscritos votam obrigatoriamente (a multa é de 20% da anuidade, ou seja, quase R$ 200), escolhendo o presidente da seção (estadual) e da subseção (que abrange um município, normalmente). Não é um dia qualquer, porque algo que afeta as condições de trabalho da advocacia certamente impacta em toda a sociedade.

Basta lembrar alguns números: estamos falando de um universo de mais de um milhão de advogados inscritos pelo país, além de cerca de 750 mil estudantes de direito matriculados nas mais de 1000 graduações que existem atualmente; boa parte dos estudantes também está vinculada (e paga) à OAB na condição de estagiário. São números pesados. Um terço daquele milhão é de advogados inscritos em São Paulo. Aliás, é melhor frisar: advogados e advogadas, porque 48% das inscrições na OAB nacional são de mulheres. Não sei exatamente quantos desses advogados são negros, porque a OAB não registrava essa informação, mas há poucos anos o Conselho Federal da OAB divulgou que “nos últimos 30 meses, 39 mil advogados negros ingressaram nos quadros da OAB, ou seja, uma média de 1300 novos advogados negros por mês”.

Trata-se, portanto, de uma categoria imensa e ainda crescente, bastante heterogênea e complexa demais por trás da imagem de bonança ou de “esperteza” que o noticiário e o anedotário insistem em pregar sobre toda advocacia. Todos esses advogados e advogadas têm orgulho do art. 133 da Constituição: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Mas deveríamos ir além do orgulho: eu, que já vi bacharel com a camiseta “In Moro we trust”, afirmo que o curso de direito deveria ser inteiramente dedicado a demonstrar a importância da advocacia para a democracia, a preparar esse contingente gigantesco de estudantes para as lutas do país, mais do que as das suas carreiras pessoais (porque, no fim das contas, vão perceber que os sucessos pessoais valem muito pouco num país degradado). Assim deveria ser, ainda mais num tempo em que as garantias elementares da democracia têm sido atropeladas, sem a menor cerimônia, sem o menor respeito pela Constituição e pelas leis, no discurso e nos atos da imensa maioria dos agentes do Estado, dos mais vários níveis, como se o país tivesse decidido fazer – sob a coordenação de alguns políticos, juízes, promotores, policiais – uma “reforma constitucional não escrita”, para a qual, é claro, o povo não precisa ser consultado (como, ademais, declarou o vice-presidente eleito).

Isso é muito sério, não apenas para a advocacia, claro. Não passamos um dia na advocacia sem alguma surpresa com a criatividade de juízes e promotores para colocar obstáculos à defesa dos direitos de nossos clientes. São infinitas formas de dificultar a atuação dos advogados, desde requisitos abusivos criados em portarias a simples caprichos que se movem de acordo com os humores de cada autoridade (e, de resto, parece não haver auxílio-isso-ou-aquilo capaz de melhorar muito o humor e a disposição de grande parte das autoridades). As conversas entre advogados, nos últimos tempos, têm sido uma triste competição: você conta um absurdo que aconteceu num processo e o colega conta outro ainda pior. E nenhum deles precisa mentir…

Quando os advogados estão algemados (e não falo apenas da advogada Valéria Lucia dos Santos, literalmente algemada durante uma audiência no Rio de Janeiro; a propósito, a juíza leiga que determinou a medida foi absolvida pelo Tribunal de Justiça)… quando os advogados estão algemados e não podem exercer completamente sua profissão, os clientes perdem, o direito perde, toda a sociedade perde.

É pensando nisso que devemos votar amanhã. Confesso que nunca me preocupei muito com o resultado das eleições da OAB, mas neste momento em que toda força em favor da democracia é fundamental, me dei ao trabalho de ler as diversas propostas das chapas concorrentes. Vi mais semelhanças do que diferenças entre as propostas centrais dos candidatos e também na composição das chapas. Chama atenção, por exemplo, que as cinco chapas que disputam a presidência estadual sejam encabeçadas por homens brancos. Por dentro, até onde pude identificar, as chapas apresentam mudança muito tímida de perfil se comparada à transformação da advocacia que os números acima indicam, com uma curva muito significativa nos últimos anos, redefinindo essa profissão que, há algumas décadas, era verdadeiramente de elite, bem remunerada, de difícil acesso e grande prestígio, inclusive do ponto de vista político.

Nada disso se sustenta atualmente. Daí que seja tão comum, nas propostas, o discurso sobre a “valorização da advocacia” e, junto a isso, aparecer a promessa de uma “defesa intransigente” da cidadania, da democracia, da Constituição, e também a retomada do “protagonismo no debate político”. Estas são, de fato, pautas muito importantes para a advocacia, porque são as mais importantes para o país. É por meio delas que a advocacia tem que se reconstruir, mas suas tarefas se misturam às da reconstrução do país, das instituições, da possibilidade de uma sociedade democrática. De costas para o debate mais amplo, cuidando apenas de “seus problemas”, não há futuro para a advocacia (aliás, advogar, por definição, é se meter nos problemas alheios…).

Pois bem. Tentando definir meu voto, fiquei contente ao ler, nas propostas dos candidatos, palavras que apontam para esse horizonte. Não sei até que ponto confio na “combatividade” dessas propostas todas, mas sinceramente espero que, em breve, tenhamos mais do que palavras. O país precisa de uma advocacia melhor e, por sua vez, a advocacia precisa de um país melhor. Precisamos de muita disposição dentro de cada “tailleur”, de cada terno, atrás de cada gravata, porque não faltam razões aos advogados e advogadas para lutar: seja porque o cerco da arbitrariedade está cada vez mais próximo, seja porque as condições de trabalho da imensa maioria da advocacia estão longe de permitir qualquer sossego. E essas duas questões se resolvem juntas.

Então, bom voto amanhã, boa luta sempre.

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