Consumidor, torcedor e membro de seita: o eleitor brasileiro de 2018
(Arte Andreia Freire/Revista CULT)
A tipologia da atitude eleitoral pode ser representada por diferentes padrões. Que têm a ver com o modo como cada pessoa processa a sua própria decisão eleitoral, o tipo de vínculo que estabelece com a candidatura escolhida e a sua disposição a lidar com fatos, informações, experiências e até com os candidatos e eleitores adversários. Além disso, os diferentes tipos de atitude eleitoral podem representar diferentes fases na adesão a um candidato e a um partido ao longo de uma disputa eleitoral.
Cada padrão de atitude pode ser referido a uma metáfora. Assim, o primeiro tipo de eleitor é o consumidor. O sujeito precisa, digamos, de um par de sapatos. Visita lojas, compara preços, examina os produtos, busca informações online, consulta quem acha que deve e aí decide, a partir do que tem à disposição, usando para isso o conhecimento do produto escolhido e as suas próprias preferências. Naturalmente, há o consumidor precipitado, que resolve tudo rapidamente; há o decidido, que já sabe o que quer antes mesmo de ver o que tem em oferta; e há o ponderado, que examina tudo, compara, indaga, reflete muito e retarda a decisão o máximo que pode.
O segundo tipo de eleitor é o torcedor. Os candidatos não são produtos que ele consome, são times disputando um campeonato e ele precisa escolher um. A candidatura não tem para ele um valor de uso, mas um valor identitário. Ele está escolhendo uma identidade e uma paixão. Escolha feita, o eleitor e o candidato agora não são mais duas entidades, interagindo em uma troca utilitária, mas a mesma coisa. O eleitor-consumidor vota no PT, o eleitor-torcedor é PT. Para o eleitor-consumidor, Bolsonaro é uma escolha em um cardápio fechado com 13 alternativas; o eleitor-torcedor e Bolsonaro formam uma única coisa: as aflições do deputado são as suas aflições, a crítica a Bolsonaro é sentida em primeira pessoa e a ela se reage como se fosse uma ofensa pessoal, a vitória do deputado seria vivida pelo seu torcedor como um triunfo próprio.
Naturalmente, temos torcedores de vários modelos. Há o torcedor comum, que celebra as vitórias do seu time enquanto lamenta as suas derrotas, e há o torcedor hiperantagônico, que precisa de um arquirrival para que a vida tenha graça. Neste caso, o sujeito passa a torcer duas vezes, e não uma: torce pelo seu time do coração e torce pelo fracasso do arquirrival, de modo que, frequentemente, pode ser-lhe mais importante e compensador o fracasso do odiado inimigo de que a vitória do seu clube preferido. Não basta que o Vasco ganhe, o importante é que o Flamengo se dê muito mal; não me importa quem ganhe o campeonato eleitoral, desde que o PT vá para o quinto dos infernos.
Por fim, temos o terceiro tipo de atitude, que é o do membro da seita. Seitas são, literalmente, partes cortadas de um todo, seções de um movimento religioso. Por isso, a seita obsessivamente precisa reafirmar para os seus membros a razão por que era necessário separar-se da totalidade de que fazia parte. Assim, as características fundamentais de uma seita são o elevado grau de coesão identitária (nós versus eles), a convicção de que tudo o que está fora dela é erro e abominação, e a certeza de que a nossa causa é mais valiosa que tudo, até do que a nossa própria vida. O eleitor sectário não considera a sua seita uma forma de vida possível dentre outras no mundo, mas a única forma verdadeira e a única moralmente sã. Metáfora à parte, os argumentos em favor dos outros candidatos não são sequer considerados, uma vez que, obviamente, estão errados ou são enunciados por almas perdidas, dominadas pelo pecado. A única alternativa aceitável para os outros é converter-se e se tornar um de nós, ou permanecer nas trevas do pecado e da morte.
O eleitor sectário aderiu a tal ponto a uma determinada candidatura que já não se trata apenas de incorporar o candidato à sua identidade pessoal, como faz o eleitor-torcedor, mas de incorporar as causas, os valores e os princípios do candidato ou do seu partido às suas aspirações existenciais. A seita, o partido ou o candidato são vividos agora como se fossem um projeto de vida e uma razão para existir.
Sintoma de saúde política de qualquer sociedade é a sua capacidade de acomodar pretensões divergentes, de forma que o necessário atrito de opinião e conflito de interesses não se tornem destrutivos nem dos laços sociais nem dos combinados fundamentais que nos mantêm cooperando na construção do bem comum. Nesse sentido, uma alta proporção de eleitores-consumidores no conjunto das atitudes eleitorais é um medidor razoavelmente confiável da saúde democrática de uma determinada sociedade. Essas são as pessoas que consideram argumentos e informações sobre o que escolhem consumir e que têm consciência de que terão que arcar com as consequências da própria decisão. O eleitor-consumidor, de fato, faz as escolhas possíveis considerando todas as alternativas, hesita, busca ativamente informação sobre todas as candidaturas na vitrine, levando em conta sobretudo o seu valor de uso, a sua serventia depois da escolha efetuada.
Infelizmente, uma análise clínica do estado da distribuição das atitudes eleitorais na sociedade brasileira revelaria que uma proporção assustadoramente grande de eleitores atravessou o período eleitoral como torcedor ou como membro de uma seita. Passou pela comunicação estratégica das campanhas, pela propaganda eleitoral, pelos debates e entrevistas, pelos comentários e análises políticas publicadas na imprensa ou em mídias digitais, e até pela cobertura dos meios de informação, como se nada fossem ou representassem. Nada lhe disse respeito nem a afetou, a não ser para reforçar o que já presumia saber ou confirmar as convicções previamente assumidas. Afinal, torcedor que é torcedor não muda de time, não importam o mundo, os fatos, as circunstâncias, as evidências e os prognósticos. É uma questão de integridade e honra estar com o seu candidato do coração onde ele estiver. E nós, da nossa seita, os últimos e únicos portadores da Verdade, é que não mudamos mesmo. Como podemos mudar se fora de nós só há erro e perdição?
E assim irão votar no domingo tantos brasileiros, com um coração de torcedor fanático, dispostos a tudo pelas suas cores, surdos a comentários e análises, imune a fatos, fora do alcance de razões, desprezando qualquer sistema de consequências, certos de que uma eleição é só mais um tipo de game e que tudo o que importa é que a gente ganhe dos adversários, principalmente do nosso arquirrival. Ou, pior ainda, irão às urnas com um coração sectário, fanatizados e dogmáticos, altivos e autocomplacentes, confirmados em suas crenças, dispostos a matar ou morrer por elas.
Uma vez que no mundo real nem a eleição é um videogame que se reinicia assim que a partida se conclui, nem o início do Ano Santo Senhor, só nos resta desejar que Deus se apiede de todos nós. Na vida real uma eleição é apenas o começo e não há começo pior do que uma sociedade de torcedores fanatizados e de sectários em fúria, convencidos da própria superioridade moral.