Alias Grace: não é preciso ser uma casa para ser assombrada
Sarah Gadon como Grace Marks em 'Alias Grace', série baseada em romance de Margaret Atwood (Divulgação)
Platão fez uma crítica aos tribunais, dizendo que, em um julgamento, parecia mais importante persuadir do que dizer a verdade. Muito tempo se passou da Grécia Antiga até os dias de hoje, mas o impasse entre verdadeiro e verossímil permanece nos inquietando. Esse é um dos temas centrais de Alias Grace (2017), nova série canadense lançada no Brasil pela Netflix.
Adaptada por Sarah Polley e dirigida por Mary Harron, a série de seis episódios é inspirada no romance homônimo de Margaret Atwood (1996). Aqui, o livro foi publicado como Vulgo Grace (Rocco), com tradução de Geni Hirata. O substantivo alias poderia ser traduzido também como pseudônimo, alcunha, identidade secreta ou identidade falsa. Já o advérbio alias poderia ser pensado como outrora, anteriormente, entre outros.
Embora a escolha da tradutora esteja correta, resgato a polissemia do termo para que possamos considerar a complexidade do que representa, em especial as múltiplas camadas da protagonista, Grace Marks. Desde o título, o enigma está posto: quem seria a pessoa por trás do nome Grace?
“Penso em tudo o que foi escrito a meu respeito – que sou um demônio desumano, uma vítima inocente de um canalha, forçada contra a minha vontade e com a própria vida em risco, que eu era ignorante demais para saber como agir e que me enforcar seria um crime judiciário, que eu gosto de animais, que sou muito bonita, com uma pele radiante, que tenho olhos azuis, que tenho olhos verdes, que meus cabelos são ruivos e também que são castanhos, que sou alta e também de estatura mediana, que me visto com propriedade e decência, que para isso roubei uma mulher morta, que sou ligeira e esperta em meu trabalho, que tenho má índole e um temperamento genioso, que tenho a aparência de uma pessoa acima da minha humilde condição social, que sou uma pessoa dócil, de natureza afável, de quem nunca ninguém se queixou, que sou astuta e insidiosa, que sou fraca da cabeça, quase uma retardada. E eu me pergunto: como posso ser todas essas coisas distintas ao mesmo tempo?”
A ótima atuação de Sarah Gadon ajuda a sustentar a ambivalência da personagem, elemento essencial para a história que Atwood e Polley pretendem contar (Atwood é produtora da série e faz uma pequena participação como atriz). A edição também nos dá pistas de que existem contradições importantes ou, ao menos, diferentes versões de memórias.
Costura entre história e ficção
No romance, Atwood constrói uma narrativa em primeira pessoa inspirada por uma história real: Grace Marks foi uma imigrante irlandesa, nascida por volta de 1828, que chegou ao Canadá em 1840. Três anos depois, foi condenada pelo assassinato de Thomas Kinnear, proprietário da fazenda onde trabalhava, e suspeita da morte de Nancy Montgomery, a governanta da casa. Na época, o julgamento dividiu opiniões. Grace teria sido incriminada injustamente ou de fato havia participado dos assassinatos ao lado de James McDermott, rebelde funcionário da propriedade?
McDermott foi condenado à morte e enforcado, enquanto Marks passou quase trinta anos entre um instituto psiquiátrico e uma penitenciária.
“A razão para quererem me ver é que sou uma célebre assassina. Ou pelo menos foi o que escreveram. Quando li isso pela primeira vez, fiquei surpresa, porque costumam dizer Cantor Célebre, Poeta Célebre, Espiritualista Célebre e Atriz Célebre, mas o que existe de célebre em assassinato? De qualquer modo, Assassina é uma palavra forte para estar associada à sua pessoa. Tem um odor característico, essa palavra, almiscarado e sufocante, como flores mortas em um vaso. Às vezes, à noite, eu a sussurro para mim mesma: Assassina. Assassina. Ela produz um som farfalhante, como uma saia de tafetá pelo assoalho.
Assassino é meramente brutal. É como um martelo ou um pedaço de metal. Eu prefiro ser uma assassina a ser um assassino, se essas forem as únicas escolhas.”
A pergunta que ocupou historiadores é: por que as punições teriam sido diferentes? Atwood sutilmente insinua a resposta nos parágrafos acima: “Eu prefiro ser uma assassina a ser um assassino, se essas forem as únicas escolhas”.
Logo nas primeiras linhas, a narradora nos diz que embora seja um objeto de temor – como uma aranha –, também é um objeto de caridade. Atwood é certeira ao acentuar essa ambiguidade, romanceando fatos e criando novos personagens, como o médico Dr. Simon Jordan, que, 15 anos após a condenação, chega à cidade para investigar a versão da protagonista, buscando, nas fissuras de suas memórias, oportunidades para ajudá-la.
Dr. Jordan foi contratado por um comitê interessado em questionar a participação de Grace nos crimes, acreditando que um relatório favorável poderia libertá-la. Quando ela o recebe na penitenciária, diz que tudo já havia sido decidido e que o que disser a ele não mudará nada. “Pergunte aos advogados, juízes e jornalistas, eles parecem saber da minha história melhor do que eu”, completa. Em seguida, afirma que perdeu parte da memória e anuncia: “Talvez eu lhe diga mentiras”.
Vilã ou vítima?
Se Grace Marks passou a vida sofrendo toda sorte de violência, nessa ocasião específica encontrou algo que podemos chamar de privilégio – embora o termo não pareça exatamente justo. A historiadora Ashley Banbury acredita que Marks recebeu clemência porque foi capaz de conquistar a simpatia do júri, formado apenas por homens, ao realizar uma bem-sucedida performance de gênero. Banbury escreveu um artigo instigante levantando tais hipóteses, “The trial and testemony of Grace Marks, murderess: gender performance in a colonial courtroom”, em que argumenta: “As mulheres não tinham nenhum controle direto sobre os procedimentos legais e seus julgamentos eram submetidos a ideologias e visões de mundo masculinas”.
A aposta da historiadora é que Grace conseguiu escapar da forca porque encenou a personagem que dela esperavam: a mulher ingênua e sem malícia, frágil e vulnerável, que foi coagida e manipulada por McDermott. Grace Marks, a vítima. Ser ou não inocente importava menos do que parecer inocente, correspondendo às expectativas sociais. As questões que o julgamento desperta, infelizmente, permanecem bastante atuais.
Como Dr. Jordan e como o júri, queremos acreditar em Grace: sua história de sofrimento nos comove e revolta, é fácil ser submergido por ela. Mas também ficamos com a sensação de que há mais nas entrelinhas do que seu discurso pode nos contar.
Em seu texto “Introdução ao verossímel”, Tzvetan Todorov, filósofo e linguista búlgaro, escreve: “As palavras não são simplesmente os nomes transparentes das coisas, elas formam uma entidade autônoma, regida por leis próprias, e que pode ser julgada em si mesma. A importância das palavras ultrapassa a das coisas que elas supostamente refletiam”. Todorov lembra que estudar o verossímil significa mostrar que os discursos são regidos por suas próprias leis, embora a fraseologia no interior desses discursos queira nos fazer acreditar no contrário.
A pergunta que nos persegue é: as mentiras de Grace Marks teriam como objetivo dissimular os dois assassinatos que de fato cometeu ou seriam meros artifícios de sobrevivência, tal como Sherazade na lenda persa, que fascinou o sultão ao lhe contar histórias fantásticas, escapando da morte, dia após dia, por mil e uma noites?
Enquanto costura uma colcha de retalhos, Grace também alinhava sua história de acordo com o que que Dr. Jordan espera ouvir. Comporta-se de maneira recatada e assume a identidade social de boa moça, indefesa e injustiçada. “A vítima é o herói de nosso tempo. (…) Como poderia a vítima ser culpada, ou melhor, responsável por alguma coisa? Não fez, foi feito a ela. Não age, padece”, escreve Daniele Giglioli, professor italiano de literatura, no ensaio “Crítica da vítima”.
Mas, vez ou outra, Grace se contradiz em olhares e palavras. Quando assume uma versão mais direta e ousada, rapidamente atribui as ideias a uma amiga, Mary Whitney, que morreu de maneira trágica.
O movimento entre registros diferentes pode ser uma estratégia para enredar Dr. Jordan, para seduzi-lo. O enigma parece capturá-lo. Mas também é possível pensar que nem mesmo à Grace tenha sido permitido conhecer um pouco mais de si mesma. A opressão política, religiosa e social era tão imperativa que alguns pensamentos e afetos só poderiam emergir em condições extremas. Desmaios, delírios, assombrações… quando Grace está fora de si, quem falaria por ela?
A presença de Mary Whitney
Antes de ser presa, Grace tentou fugir ao lado de McDermott. Vestia as roupas de Montgomery, a governanta assassinada, e usava o nome de Mary Whitney como seu. Whitney havia sido uma amiga alegre, inteligente e questionadora, tornando-se uma referência de força e afetividade para Grace, que parece carregá-la consigo de maneira profunda.
Vale lembrar que, no século 19, embora a ciência buscasse alternativas para compreender alguns fenômenos obscuros, como através da hipnose e, depois, da psicanálise, boa parte ainda era “explicada” de maneira religiosa.
Mas antes que Freud apresentasse o conceito de inconsciente, propondo a ideia de que “o eu não é senhor em sua própria casa”, a poeta Emily Dickinson, contemporânea de Grace Marks – Dickinson nasceu em 1830 nos Estados Unidos –, conseguiu condensar belamente tais contradições e mistérios em seus poemas. É com dois trechos de uma de suas desconcertantes poesias que a série se inicia, epígrafes do primeiro episódio:
“One need not to be a Chamber — to be Haunted —
One need not to be a House —
The brain has Corridors — surpassing
Material Place —(…)
Ourself behind ourself, concealed —
Should startle most —
Assassin hid in our Apartment
Be Horror’s least.”
Nesse poema, Dickinson escreve que não é preciso ser uma casa para ser assombrada: o cérebro tem corredores que superam os lugares materiais. O eu oculto atrás do eu deveria assustar tanto que um assassino escondido em nosso apartamento seria um horror menor.
Embora tenha menos de seis horas de duração, a complexidade da série, e do romance que a inspirou, pediriam mais palavras e spoilers do que esse texto pode comportar. Então encerro essa breve resenha com mais uma citação de Dickinson, brilhantemente escolhida para o último episódio, em simetria com o primeiro:
“I felt a Cleaving in my Mind —
As if my brain had split —
I tried to match it — Seam by Seam
But could not make it fit”.
Nesses versos, Dickinson escreve que sentiu uma fenda em sua mente, como se o cérebro tivesse se partido. Mas, ao tentar juntá-lo, parte por parte, não conseguiu encaixá-las.
O encaixe poderia ser pensado como um equivalente da verossimilhança; já o desencaixe estaria, quem sabe, mais próximo do caos da verdade de um sujeito. É com essa sensação conflituosa que também ficamos ao ler e assistir a Alias Grace, que escapa de simplificações e, corajosamente, abarca temas espinhosos sem didatismo.
Sem dúvida, uma das melhores produções de 2017.
FABIANE SECCHES é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Escreve sobre literatura, cinema e psicanálise.
(4) Comentários
Matéria ótima, cheia de referências instigantes e reflexões na medida que não chegam aos spoilers. Cult brilhando 😉
Ótimo texto! Assisti a série por causa dessa recomendação e não me arrependi.
Excelente resenha, Fabiane Secches. Assisti à série e estou lendo o livro, fascinada e intrigada com a complexidade da personagem, que a autora logra desenhar. Alta literatura. Aliás, alta reflexão sobre a condição humana.
Adorei o modo como a autora da resenha expõe o tema da linguagem (o impasse verdadeiro e fictício) e sua argumentação sobre a maneira como ela é explorada na série. Já conhecia Alias Grace antes dessa leitura, mas certamente ela reforçou meu interesse no livro de Atwood. Parabéns!