Nélida Piñon: ‘O ofício literário exige nervos de aço para criar e sobreviver’
A escritora Nélida Piñon (Foto: Simone Marinho)
O encantamento pelas palavras surgiu ainda menina. Aos sete anos, já escrevia pequenas histórias e as vendia para a família. E quando viajava com o pai, fazia questão de preencher as fichas dos hotéis dizendo que era escritora.
Vinda de uma linhagem de quatro avós galegos, filha única, a carioca Nélida Piñon foi criada para ser livre. Podia ler, pensar e escrever o que queria. Nada de limites e preconceitos. Em sua mesinha de cabeceira, clássicos da literatura. Entre os preferidos, Shakespeare e Dostoiévski. Tinha uma conta numa livraria e podia comprar os jornais e revistas que queria, sem restrições de conteúdo.
A mãe, Olivia Carmen, não cansava de repetir que se a escrita era seu sonho, ela precisava então ser uma grande escritora. O desafio foi levado a sério e a menina foi se preparando para o ofício de seus sonhos. E não parou mais de escrever e de surpreender.
Aos 79 anos, a escritora Nélida Piñon tem uma vasta obra com mais de 25 livros, entre romances, contos, crônicas, ensaios e discursos, com traduções em mais de trinta países. As dezenas de premiações, títulos e homenagens que marcam seu currículo aqui no Brasil e, principalmente, no exterior, formam um dos maiores conjuntos recebidos por um autor brasileiro.
Entre eles, destaca-se o Prêmio Internacional de Literatura Juan Rulfo (1995), o mais importante da América Latina e do Caribe, concedido pela primeira vez a uma mulher e a um autor de língua portuguesa. Pelo conjunto de sua obra, também recebeu o Príncipe de Astúrias – Letras (2005), quando chegou às finais do júri competindo com autores como Paul Auster, Philip Roth e Amos Oz, sendo também a primeira escritora de língua portuguesa a receber o prêmio. Em 2005, seu livro Vozes do deserto ganhou o prêmio Jabuti na categoria romance e melhor livro do ano na categoria geral.
Diante de tal reconhecimento, Nélida afirma que deve tudo o que é à literatura. “Orgulho-me dos prêmios ganhos, que me livraram de alguns obstáculos do ofício. Não creio, porém, que as homenagens recebidas nos conduza sem esforço ao âmago da criação. Julgo que abrir caminho é chegar à medula da arte, é tocar no fulcro mágico do verbo. É conduzir a narrativa de modo a decifrar as misteriosas camadas da realidade e dos sentimentos humanos”, afirma.
E se recorda que, na véspera do anúncio do prêmio Príncipe de Astúrias, se recolheu em seu escritório e pensou longamente nos “mortos e vivos” que a ajudaram em sua caminhada. “Repetia seus nomes e agradecia firmemente. Assim penso, que agradecer a quem olhou para meus olhos com o ardor que promove o sonho é o maior dos prêmios.”
Uma brasileira antiga
Nascida no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, em 3 de maio de 1937, Nélida Piñon cresceu independente e obstinada pela sua paixão. Aos dez anos, passou com a família uma temporada de dois anos na Galícia, que marcou sua vida e sua obra e lhe deu o segundo lar.
“Esses dois anos vividos em Borela, Cotobade, na casa da avó Isolina, propiciou uma comunhão com a natureza galega, com o mundo arcaico. Sentia-me Atlas a reter a esfera da Terra nas mãos, enquanto, destemida, absorvia a geografia, o galego, o castelhano, a comida, os costumes locais, vencia o prado e a montanha, o substrato da grei de que me originara.”
De volta ao Rio, aos doze anos, Nélida escolheu sua primeira máquina de escrever: uma pequena Hermes à venda em uma loja no centro do Rio, onde foi passear sozinha. Convenceu o comerciante a deixar levá-la para casa, mesmo não tendo dinheiro no momento. O pai, Lino Piñon Muiños, entre surpreso e orgulhoso com a audácia da filha, foi fazer o pagamento em seguida. A adolescente começou a exercitar com afinco seus próprios caminhos na prosa poética. Sua maior busca era se aproximar da linguagem pura, fugir das frases feitas.
E, para isso, tinha um ritual especial: escrever ao som de música erudita, especialmente Tchaikovsky. Na falta de discos e vitrola, sintonizava programas de rádio, para onde enviava cartas com seus pedidos. Até hoje, seu processo de criação não dispensa a música clássica. “Se preciso que meu coração bata mais forte, se quero me arrebatar para escrever uma cena mais caliente, ouço Wagner, Schubert ou Verdi. Também adoro o flamenco, que me acompanha na criação de muitas personagens femininas”, conta Nélida.
Enquanto não atrevia a se lançar no mundo literário, frequentou as temporadas internacionais de concertos, balés e óperas do Teatro Municipal do Rio, incentivada pela mãe. O pai sempre a esperava na saída. Os dois mantinham uma competição diária sobre quem sabia primeiro as notícias do dia. Como Nélida levantava mais cedo e lia o jornal, normalmente ganhava.
O gosto pelo jornalismo a levou a fazer o curso na Faculdade de Filosofia da PUC Rio. “Escolhi o curso de Jornalismo por desejar participar ativamente do cotidiano. Sustentada por uma formação humanística já sólida para a minha idade, julguei que me faria bem banalizar meus conhecimentos por meio da crueza que o Jornalismo podia me aportar. Foi uma experiência magnífica, que me lançou à fogueira humana”, explica Nélida. Fez estágios no jornal O Globo e em revistas, mas sabia que aquela era apenas uma experiência a ser acrescentada à literatura. E nunca deixou de colaborar com publicações nacionais e estrangeiras.
Seu primeiro romance, Guia-mapa de Gabriel arcanjo, foi lançado em 1961, tendo como temas o pecado e o perdão. As obras seguintes foram os romances Madeira feita cruz (1963), Fundador (1969), a novela A casa da paixão (1972), e os volumes de contos Tempo das frutas (1966) e Sala de armas (1973). Depois vieram os romances Tebas do meu coração (1974) e A força do destino (1977). Em todos eles, há a marca de um texto considerado vanguardista e renovador no panorama da literatura brasileira.
O livro que ela acha mais importante é o romance autobiográfico A república dos sonhos, publicado em 1984. Com setecentas páginas, narra a saga de uma família da Galícia que emigra para o Brasil e conta a história do país nos últimos 150 anos. Praticamente não fez pesquisas. Valeu-se dos conhecimentos adquiridos ao longo de muito anos com a leitura de livros de história, um de seus grandes interesses. A obra foi um tributo a sua brasilidade, numa época em que ainda se considerava “uma brasileira recente”. Esse sentimento passou. Hoje, Nélida se diz uma brasileira antiga. “Conquistei uma profunda maturidade brasileira. Sou tão arcaica quanto quem aqui esteve no albor desta terra.”
Em 1987, lançou o romance A doce canção de Caetana, seguido pelo livro de contos O calor das coisas (1980) e o romance premiado com o Jabuti Vozes do deserto (2004), entre outros. Atualmente, Nélida escreve com o ritmo de sempre. E até o final do ano publicará, pela editora Record, o livro de ensaio Filhos da América, enquanto trabalha em um novo com reflexões e aforismos.
Literatura como ofício
Ao falar sobre sua obra, o escritor mexicano Carlos Fuentes dizia que a magia de Nélida Piñon consiste em aliar imaginação e compaixão para dar a seus personagens e leitores “uma pele com a temperatura igual à deles”. Para o prêmio Nobel Mario Vargas Llosa, ela é uma das pessoas mais encantadoras que conheceu, “não apenas uma escritora muito fina, mas uma mulher extraordinária”. O mexicano Octavio Paz, ao se referir a Nélida, afirmava que “o Brasil é a terra de uma das mais admiráveis romancistas da América Latina”.
Esses escritores e tantos outros, ela conheceu em suas andanças pelo mundo, iniciadas em 1965, quando recebeu uma bolsa do governo norte-americano. A partir daí não parou mais de viajar e fazer palestras sobre criação literária, literatura e cultura em seminários e encontros internacionais.
Também deu cursos em diversas universidades internacionais, entre elas a Université Paris-Sorbonne, a City University of New York e a Columbia University. Em 1990, foi escolhida entre oitenta intelectuais inscritos para ocupar a cátedra Henry King Stanford em Humanidades, da University of Miami, substituindo o escritor polonês Isaac Bashevis Singer, prêmio Nobel de Literatura.
Feminista histórica, ela não hesita em combater o machismo, que ainda vê muito presente no Brasil. E conta que já defendia a implantação do 8 de março no país antes da criação do dia. Em Nova York, acompanhou de perto o movimento feminista – que considera o mais importante do século 20 – e o Black Power. E confessa que sentiu o preconceito de perto por ser mulher e escritora.
“Desde o início, sentia-me discriminada. Precisava dar constantes provas de que, ao escolher a literatura como ofício de vida, estava decidida a alcançar a excelência estética. Assim, convivi com a desconfiança, com as definições imputadas às mulheres, com um conjunto de circunstâncias que me marginalizavam. Mas não me importei. Sempre soube que o ofício literário exigia nervos de aço para criar e para sobreviver. Uma função que raramente concedia privilégios, mas propenso a penalizar a mulher”, revela.
Ela afirma que o Brasil possui hoje um brilhante time de escritoras, nem sempre reconhecidas como grandes figuras literárias. “Mas como poderia ser diferente se no passado foi negado à mulher o acesso à cultura normativa, ao domínio da linguagem, às artimanhas narrativas?”
Um dos momentos significativos de sua trajetória foi em 1997, quando tornou-se a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL), reduto tradicionalmente masculino. Sua votação recebeu o apoio quase unânime, salvo por um voto. Nélida cuidou dos festejos dos cem anos da instituição e lembra que criou programas e iniciativas que abriram as portas para a comunidade brasileira.
Na ABL, desde 1989, a escritora ocupa a cadeira número trinta, aberta com a morte de Aurélio Buarque de Holanda. “Essa presidência repercutiu enormemente, tanto na imprensa nacional quanto estrangeira. A sociedade brasileira igualmente apreciou. Até hoje, esse fato, de certa dimensão histórica, ecoa e beneficia o papel da mulher na vida pública.”
Solteira e sem filhos, Nélida não sofre com a solidão. Em seu apartamento na Lagoa, quando não está trabalhando em uma nova obra e escrevendo de oito a nove horas por dia, assiste a vídeos culinários e a filmes western de John Ford, que conhece de cor. Convive com dois cachorrinhos pinscher, a quem faz questão de chamar pelo nome e sobrenome – o seu. “São minhas paixões. Gravetinho Piñon é muito mal-humorado, mas Suzy Piñon é furiosa e encantadora”. Adora cozinhar e receber os amigos em happy hours e jantares. E, com dias de antecedência, prepara o cardápio repleto de iguarias.
Sempre foi assim. Em menina, fazia amizade com os bailarinos do Teatro Municipal quando ia aos balés. Mais tarde, com as viagens para dar palestras e com os compromissos no exterior, conheceu o rei Juan Carlos da Espanha, tomou chá com o pianista polonês Arthur Rubinstein e ficou amiga de grandes escritores como o colombiano Gabriel García Márquez, os mexicanos Carlos Fuentes e Octavio Paz, os argentinos Manuel Puig e Julio Cortázar. “Isso não me entorpeceu. Minha mãe comentava que, graças a Deus, eu fui ficando cada vez mais desprendida.”
Nos últimos meses, devido a um problema degenerativo nos olhos, a escritora tem sentido dificuldade em ler, escrever e identificar as pessoas de longe. Diz que não há o que fazer, mas não reclama. E, se não contar, ninguém repara. “Talvez a degeneração se deve a haver me excedido em enxergar o mundo e agora estou sendo chamada à atenção pelos meus excessos. Mas sempre confiei na bondade alheia, como dizia [a personagem] Blanche DuBois, assim usarei quem esteja perto para me servir de escudo. Importa-me seguir desenvolvendo minha capacidade de viver.” E na arte de viver, a imortal Nélida Piñon já mostrou que é uma exímia aprendiz.