Como fazer coisas com palavras
Aos vencedores as batatas, de Matheus Rocha Pitta, 2016 (Divulgação)
Como as palavras, as frases e as histórias de que parte o artista Matheus Rocha Pitta se tornam, em um determinado momento, coisas
É difícil dizer o que mais me convoca no trabalho de Matheus Rocha Pitta. São muitos os elementos que ali me chamam a atenção. Nele reencontro, de modo bastante enigmático, rastros de autores que foram minhas leituras recorrentes nos últimos anos (Marx, Benjamin, Agamben e, através deste último, Warburg) e muitas das minhas próprias questões relativas ao lugar da mercadoria na sociedade capitalista, ao valor de uso e de troca das mesmas, ao rito, à profanação, ao ato, ao gesto, à comida, ao alimento, à política, à arte, à imagem em sua deriva histórica, a uma certa relação entre imagem e gesto que nos lança numa relação com a imagem totalmente diferente daquela com a qual estamos acostumados, e para a qual apontam, a seu modo, Agamben e Warburg.
Segundo Matheus, fui seu professor nos últimos anos do século passado, entre 1998 e 1999, enquanto ele era ainda aluno do curso de História da UFF, curso que veio a abandonar. Alguns anos depois, ele iniciou e mais uma vez abandonou o curso de filosofia da UERJ. Naqueles anos finais do século passado, em que fui seu professor, eu dava disciplinas introdutórias de filosofia para alunos de outros cursos, dentre os quais os de História. Ainda não existia o curso de graduação em Filosofia, que eu viria a criar em 2007 e cuja primeira turma teve início em 2008.
Eu não me lembro de Matheus como meu aluno. Desde 1994, tive alguns milhares de alunos na UFF, e é difícil, para mim, lembrar-me de todos, sobretudo tratando-se de alunos que cursavam comigo apenas uma disciplina introdutória e depois desapareciam. Matheus desapareceu, como a maioria desses alunos, mas reapareceu, creio que em 2013, quando ele estava na Itália a caminho de Napoli, onde faria a exposição L’acordo, na Fondazione Morra Greco. Conversamos na época, talvez um pouco antes dessa exposição, mas somente algum tempo depois ele me disse que eu tinha sido seu professor. Temos aqui o caso de duas pessoas que se conheceram em momentos diferentes. Matheus me conheceu no século passado, eu o conheci apenas neste século. Na passagem de um século ao outro, ambos mudamos e nossos caminhos convergiram de novo para um outro lugar: ele se tornou artista, eu me tornei um filósofo mais interessado no campo das artes visuais contemporâneas.
No ano passado, Matheus veio para Berlim, para fazer uma residência de um ano na Kunstlerhaus Bethanien. No início de janeiro deste ano, fui visitar amigos e participar de um seminário de psicanálise na cidade e aproveitei para encontrá-lo e conhecer o trabalho que ele estava desenvolvendo na residência. Conheci seu ateliê e fui até a oficina em que os primeiros trabalhos que estariam na futura exposição começavam a ser realizados. Vi um estágio já bastante avançado do trabalho. Fiquei de voltar para a abertura da exposição que concluiria a residência e à qual ele deu o título de Aos vencedores, as batatas, numa referência à frase de Machado de Assis, em Quincas Borba, a qual em terras alemãs ganhou ressonâncias outras, já que, após ter vindo para Berlim, Matheus descobriu que as pessoas colocam batatas no túmulo do Frederico, O Grande, quem trouxe a batata pela primeira vez para a Alemanha. É talvez difícil para nós nos darmos conta disso, mas as batatas são originárias das Américas.
Ao vencedor, as batatas é um trabalho que envolve escultura em cimento, colagem, instalação, sacos plásticos, batatas e também algo de uma dimensão performativa, já que o público da exposição é convidado a levar as batatas que estão na exposição, caso queira.
A exposição também não se reduz ao espaço da galeria, pois Matheus ocupou duas vitrines de duas estações do metrô de Berlim: uma, na Gesundbrunnen, em que há estelas com colagens, e outra, na Hermannplatz, em que há troféus esculpidos com bolsas de plástico brancas e o título da exposição em várias línguas. A exposição acontece, portanto, na galeria e no metrô de Berlim.
Na galeria, há, antes de entrarmos no salão em que se encontram as batatas propriamente ditas, uma única estela, na qual vemos uma série de imagens recortadas de revistas e jornais nas quais o gesto de erguer e beijar o troféu, após a vitória, é modificado por Matheus, colocando-se, no lugar do troféu, a imagem de uma batata. Em geral, as imagens de batatas são retiradas de panfletos publicitários de produtos de supermercado. Na estela há ainda, no alto, o título da exposição em português: “Aos vencedores, as batatas”, disposto em semi-círculo, e embaixo do título, também em semi-círculo, as imagens dos troféus substituídos pelas batatas nas imagens que se encontram na parte inferior da estela, dispostas em forma triangular. Essa estela é iluminada por uma lâmpada fluorescente dentro de uma caixa que pende do teto. No interior no salão, temos uma instalação escultural, em cujo centro há uma mesa baixa retangular feita de tijolos de concreto e tampo de vidro, sobre o qual encontram-se esculturas na forma de troféus feitas com concreto e bolsas de plástico brancas. Em torno da mesa, dispostos de modo a formar uma elipse, sacos plásticos brancos no interior dos quais encontram-se as batatas que devem ser trocadas, a cada dois dias, por todo o período de duração da exposição.
Estela é um termo que Matheus extrai da arqueologia e que designa uma coluna ou placa de pedra em que os antigos faziam inscrições, geralmente funerárias, mas indica, em sentido geral, qualquer monumento monolítico feito em pedra vertical. As estelas se tornaram a “marca estilística” (para tomar de empréstimo a expressão de Kaira Cabañas) de Matheus. A ideia de “colar” imagens de jornal no cimento, no entanto, é anterior à descoberta das estelas por Matheus e tem um origem quase anedótica. Na entrevista que fiz com ele no dia seguinte à abertura da exposição (a ser publicada em breve na Revista Caliban, de Portugal), num parque criado pelos berlineneses após a desativação do aeroporto de Tempelhofer, o Temperhofer Feld, pergunto a Matheus sobre a origem das estelas e do trabalho com o cimento e ele me conta a seguinte história:
“Eu sempre recortei as coisas de que eu gostava, e eu guardava. E isso era uma coisa que eu fazia sem a menor seriedade. E isso foi ficando sério. Começou a ficar sério quando começaram a aparecer umas notícias de pessoas que tinham que morrer, que eram para morrer, mas não morreram, por acaso. Por exemplo: um cara que era testemunha de um crime e deram um tiro na cabeça dele, queima de arquivo, e o cara não morreu. E levantou. Botaram ele numa cova rasa. Treze horas depois ele levantou e foi para o hospital. (…) Eu estava meio fascinado com essa coisa desse momento da morte que é adiado, o acaso adiando a morte. Aí eu comecei a refazer essas notícias, reconstituindo-as. Uma delas era em um cemitério. Eu estava morando em Belo Horizonte nessa época. Aí eu fui no cemitério fazer a foto e eu descobri que os túmulos mais pobres, quando você não tem dinheiro para ter um túmulo de granito ou de mármore, eles fazem de alvenaria, de tijolo e cimento nas laterais, e a tampa é uma laje de concreto. E essa laje é feita no cemitério, porque é muito mais barato você fazer no próprio cemitério do que fazer em outro lugar e transportar, porque é um negócio pesado. E a forma como eles fazem a laje é assim: ela só tem as laterais, é uma moldura, ela não tem fundo. Então eles usam folhas de jornal para isolar do chão, e nelas ele jogam o concreto mole. O jornal continua ali, e a pessoa é enterrada com o jornal para ler. Eu fiquei meio fascinado com aquilo e emparedei aquelas notícias, as notícias que eu estava reconstituindo. Eu fiz uma lápide com elas. Isso foi em 2004, tem muito tempo. Deu super certo o trabalho, ficou lindo.”
A ideia, portanto, de colar imagens extraídas de jornais no cimento vem dessa experiência do cemitério. É uma apropriação artística de um gesto que acontece em qualquer cemitério brasileiro. Antes de Matheus, os coveiros já jogavam cimento sobre jornal, para tampar os túmulos. A ideia de um defunto leitor, à qual Matheus se refere na entrevista, é ainda mais perturbadora que aquela, de um defunto escritor, que Machado introduz com Brás Cubas. De qualquer modo, é esse o start das estelas de Matheus. É só num tempo posterior que ele articula esse trabalho com as estelas propriamente ditas, que ele descobre em sua primeira viagem a Napoli. Na época, interessado no gesto do acordo, ele encontra estelas funerárias gregas que mostram o morto cumprimentando um deus. Essas representações de duas pessoas, oferecendo, uma à outra,a mão direita, são chamadas de dexiosis, do verbo grego dexiomai, “dar (a alguém) a (mão) direita”. A partir desse encontro, Matheus fez a exposição L’Accordo, na Fondazione Morra Greco, em Napoli, em 2013.
Há, aqui, portanto, um cruzamento muito intrincado: o cimento, a laje, o túmulo, o cemitério, o leitor defunto, o cimento barato enquanto material banal, presente de forma exposta nas favelas cariocas e nas moradias pobres em geral, se encontra com as imagens das estelas antigas, e desse encontro surgem as estelas de Matheus Rocha Pitta. As imagens gravadas na pedra são substituídas por colagens de notícias de jornais, de imagens de revistas e de material publicitário. Ao nos situarmos diante de uma estela de Matheus, há uma solenidade que o próprio formato e peso da peça traz, assim como as imagens em papel que, nelas,ele cola, mas há ao mesmo tempo um precariedade não escondida, ao contrário, explicitada, que dialoga com a realidade brasileira em sua precariedade arquitetônica. Esse encontro insólito é certamente um dos aspectos que mais me chama a atenção no seu trabalho.
As estelas e as lajes (as peças em concreto, maiores ou menores, respectivamente) se tornaram presentes em vários trabalhos de Matheus desde então. As estelas, em geral, cumprem, segundo o próprio Matheus, uma função de boas-vindas, de apresentação, dentro da exposição, como no caso de Aos vencedores, as batatas, a exposição em Berlim, mas também de Golpe de Graça, a exposição realizada na galeria Pivô, em São Paulo, em 2013. Mas elas também podem assumir outros lugares na exposição. Em Berlim, elas aparecem dispostas de modo inédito na vitrine da estação Hermannplatz, formando uma espécie de coluna, para que elas possam ser vistas de todos os lados da vitrine que fica no meio da estação de metrô.
As lajes, as peças de cimento menores, são colocadas encostadas nas paredes da sala de exposição e em geral têm a forma de catálogos dos gestos que são tematizados na exposição, como se fossem uma “falsa” coleção warburguiana de gestos, uma vez que, em vez de colecionar imagens de gestos extraídas da história da arte, Matheus coleciona imagens de gestos extraídas de suportes muito menos nobres como jornais, revistas e materiais publicitários, assim como é menos nobre o cimento em que essas imagens são coladas. Como se Matheus fosse um Warburg contemporâneo, lidando com fontes “menores”, estendendo o trânsito da Pathosformel a um domínio indefinido e ilimitado. Mas o motor do trabalho de Matheus é sem dúvida influenciado por esse impulso warburguiano, que ele pretende levar mais longe, até uma dimensão ainda enigmática, pois a transmissão de gestos e imagens está em toda parte, mesmo num panfleto com anúncios de supermercado.
Há, portanto, na exposição de Berlim, o uso das estelas, enquanto algo que já caracteriza o trabalho de Matheus há alguns anos. Mas há também outros aspectos da exposição de Berlim que se repetem (no bom sentido da repetição, aquele freudiano-kierkegaardiano, da repetição como produtor da diferença) em trabalhos anteriores de Matheus, como o uso de alimentos e a referência a frases, expressões, ditados, narrativas, como detonadores de gestos. Em Berlim, esse detonador é a frase de Machado, no Quincas Borba, “Aos vencedores, as batatas”. O procedimento artístico que Matheus adota no tratamento desses elementos significantes é sempre muito surpreendente. Como se seu esforço fosse recuperar a dimensão mais concreta desses elementos discursivos. Em Aos vencedores, as batatas, trata-se simplesmente de substituir os troféus por batatas, e mostrar os vencedores beijando e erguendo, não troféus, mas batatas, na estela que se encontra na galeria e naquelas que se encontram na vitrine da estação de metrô, mas, ao mesmo tempo, as batatas são transformadas em material escultórico na instalação que constitui o centro da exposição.
Através desse procedimento, Matheus restitui a dimensão de gesto dos gestos do vencedores, ao levantar ou beijar a taça. Sem os troféus, com batatas, esses gestos aparecem deslocados de sua finalidade mais evidente: a ideia de que ao receber o troféu, ao erguê-lo e beijá-lo, eles comemoram o recebimento do prêmio, aquilo pelo que lutaram. Sem o troféu, esses gestos aparecem como isso que o filósofo italiano Giorgio Agamben chamou de meios sem fins, ou seja, os gestos são expostos em sua própria medialidade e não em sua finalidade. O mesmo procedimento acontece com outras intervenções produzidas por trabalhos anteriores de Matheus, como Primeira Pedra (2015) e Sopa de Pedra (2014). No primeiro, inspirado na cena em que Cristo impede o apedrejamento de uma mulher adúltera, Matheus permite que o público da exposição troque pedras que encontre na rua, e que preencham a sua mão, pelas pedras esculpidas e assinadas por ele e que se encontram na galeria. No segundo, uma sopa é feita e consumida num espaço público (os fundos do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, no Rio de Janeiro), utilizando legumes e legumes esculpidos em pedra sabão, em referência à história do viajante faminto que começa a fazer uma sopa de pedra à qual os outros vão acrescentando legumes de verdade. Aqui, é a palavra pedra que gera a pedra escultórica produzida pelo artista, no caso, a pedra-sabão. Em ambos os casos, a escultura surge não porque se trata de um artista escultor. Matheus, como bom artista contemporâneo, não pode ser definido por nenhum tipo de técnica artística a priori, não tendo inclusive se interessado jamais por cursar uma faculdade de Belas Artes. A escultura vem como uma consequência do trabalho com o discurso. São as palavras que obrigam-no a ocupar-se de escultura.
Há, portanto, nesses trabalhos, uma atualização do discurso que impõe, ao mesmo tempo, uma dimensão escultórica e uma dimensão performativa. Daí ser Austin, com seu How to do things with words, juntamente com Agamben e Warburg, também uma referência filosófica para Matheus, mesmo que ele tome, por um lado, ao pé da letra, a própria frase-título de Austin. Como fazer coisas com palavras poderia ser um resumo de uma parte significativa do trabalho de Matheus, aquela que o empurra para a escultura. É impressionante como as palavras, as frases, as histórias de que ele parte se tornam, em um determinado momento, coisas. Imagens, colagens, cimento, papel, pedra, comida. Mas, por outro lado, o título do livro de Austin também nomeia uma outra dimensão, menos concreta, menos escultórica, e mais simbólico, que o trabalho de Matheus assume. Essas “coisas” concretas que as palavras geram e fazem aparecer no seu trabalho não aparecem nunca “sozinhas”. Elas surgem, e talvez esse seja o elemento mais fundamental do seu trabalho, sempre amarradas a gestos. O gesto de atirar/não atirar a pedra, de buscar a pedra, de trocar a pedra pela pedra, o gesto de preparar a sopa de legumes/pedras, o gesto de erguer o/a troféu/batata, de ir a uma exposição de arte e de voltar pra casa com uma batata, como um vencedor.