Em Paris, as noites são ‘fauves’

Em Paris, as noites são ‘fauves’

 

“Os teus sonhos me acordaram!
A música dos teus sonhos me acordou!”

do filme de Eric Hurtado e Marc Hurtado,
Jajouka, quelquer chose de bon vient vers toi,
visto numa seção especial, na Cinémathè que Française,
com a presença dos diretores.

Em Paris, as noites são… Sim, como traduzir o termo fauves que aparece no título deste texto? Impossível ouvir o termo sem pensar no Fauvismo, o movimento artístico surgido no início do século 20 e que teve em Henri Matisse seu principal nome. O termo foi criado a partir da reação de um jornalista chamado Louis Vauxcelles, que, no outono de 1905, por ocasião do Salão de Outono – que gerou escândalo na Paris da época -, publicou uma crítica numa revista chamada Gil Blas, em que descrevia o Salão, sala por sala. Naquela em que se encontravam os trabalhos de Henri Matisse, Marquet, Manguin, Camoin, Girieud, Derain e Ramon Pichot havia ainda duas esculturas tradicionais, colocadas no centro da sala: um torso de criança e um pequeno busto em mármore. Vauxcelles não hesitou e descreveu nestas palavras o que via: Donatello chez les fauves, “Donatello entre as feras”, fazendo referência ao grande escultor italiano Donatello e aos pintores que rodeavam as esculturas com as suas telas de pinceladas e cores violentas: os fauves, as feras.  Embora sua intenção fosse crítica, Vauxcelles não mandou mal: o termo era preciso, pois fazia ao mesmo tempo referência à cor e ao caráter das obras, já que fauve, em francês, designa, em primeiro lugar,uma gama de cores, que vai do amarelo ao vermelho, e também os animais que têm o pelo dessa cor, como a lebre, o cervo e o leão, mas sobretudo felinos de grande porte, como este último. Fauves são, portanto, essas cores, mas também os animais ferozes e selvagens que as trazem na pele e no pelo. Fauves são também os pintores, como Matisse, Braque e Dufy, que usam essas cores puras em pinceladas violentas. E, por fim, fauves são ainda as noites de Paris, desde que a música eletrônica as invadiu e passou a habitar o cais do Sena, em um novo clube que tem por nome: Nuits Fauves. O clube fica embaixo da Cité de la Mode et du Design, um lugar de eventos que funciona onde antes eram as antigas docas de Paris e que, até por seu aspecto arquitetônico contemporâneo, se quer fonte de inspiração de um estilo de vida voltado para o futuro. Nada podia ser mais adequado para o Nuits Fauves, ou Noites Selvagens.

Em minha primeira ida ao clube, fazia 2 graus lá fora. “Lá fora” é força de expressão, porque você continua “lá fora”, quando “entra”: a chapelaria, por exemplo, também fica “lá fora”, mesmo que você só tenha acesso a ela depois de estar “dentro”, o que significa ter que tirar o seu sobretudo “lá fora”, mesmo depois de já ter “entrado”. Num frio de 2 graus não é uma tarefa muito fácil. E a pista principal, no subsolo, também é “lá fora”, sem nenhum aquecimento, e as pessoas dançam com seus sobretudos. No andar de cima, há ainda duas outras pistas, fechadas e aquecidas. Foi numa delas que ouvi e dancei, durante horas, um set magnífico de Marc Romboy, um dj e produtor de música eletrônica que sempre coloca em seus sets uma pitada de soul, em reverência à insanidade das pistas old school de Chicago/Detroit. Mas foi na pista do subsolo, maior, sentindo muito frio, que me ocorreram algumas elucubrações que me povoam desde que eu comecei a frequentar as noites de música eletrônica no Rio de Janeiro, há uns 8 anos. Quando saio para dançar, não tem jeito, também saio para pensar, porque as noites, sobretudo quando são fauves, me fazem pensar na mesma medida em que me fazem dançar (tenho o projeto de escrever um dia uma ontologia da noite, que começa, é claro, com Hesíodo).

Há muitos momentos sublimes numa noite de música eletrônica e, sem dúvida nenhuma, um deles é a passagem do som. Uma noite clássica de música eletrônica (a regra não vale para as raves, que podem durar muitas horas, e nas quais há muitas passagens de som – a maior a que eu fui até hoje durou doze horas) é composta por três djs/produtores de música eletrônica: aquele que abre, aquele que fecha e o convidado principal, que recebe e entrega a pista (é claro que, em vez de um dj/produtor, é possível haver duplas ou até coletivos). Há djs/produtores especializados em abrir pistas e outros em fechá-las, mas o momento mais desejado, em geral, é o que se coloca entre ambos. E, em geral, é chamado para esse momento um dj já com um percurso, conhecido do público.

O momento da passagem de som é sublime, o que quer que aconteça, já que a passagem pode se dar de modos diferentes. Basicamente, de dois modos: ou o dj/produtor que recebe o som espera o anterior concluir totalmente o seu set, fazendo um intervalo de silêncio antes de iniciar o seu set; ou ele vai introduzir o seu som sem interromper o som do anterior, sem que a pista pare, e, nesse sentido, vai ter que fazer a sua música surgir da música que lhe antecede, metamorfoseando-a.

O primeiro caso, o da passagem de som através do silêncio, é mais raro. Ele acontece, em geral, quando o dj/produtor anterior é muito bom ou muito famoso (o que nem sempre quer dizer a mesma coisa), e o dj posterior quer fazer-lhe uma homenagem ou alguém lhe pede para fazer essa homenagem, alguém que pode ser, por exemplo, o dono do clube. Em geral, nesse momento de silêncio, de intervalo, o público aplaude e ovaciona o set do dj que acaba de tocar. Sem dúvida, é momento bonito, pois o dj/produtor aparece ali como um artista que colhe imediatamente, do seu público,o reconhecimento pelo trabalho que acabou de apresentar, como qualquer outro músico após uma apresentação. A parada também pode ser feita pelo dj/produtor posterior simplesmente porque ele quer uma passagem mais radical e o silêncio, nesse caso, tem o dom de zerar a pista. Mas, em geral, o segundo caso é o mais comum: o dj/produtor posterior não quer deixar a pista parar e pega, literalmente, o “bonde andando”. O sublime aí consiste em fazer a sua música surgir da que lhe antecede, marcando uma diferença, mas ao mesmo tempo, pensando numa continuidade. É um momento de limbo, em que não fica muito claro, durante algum tempo, se ainda estamos no set anterior ou se já estamos no set seguinte. Em geral, os dois djs/produtores ainda estão presentes na cena, juntos, o anterior recolhendo as suas coisas, o posterior instalando-se e instalando as suas. O sublime consiste nesse momento em que fica claro, para nós, do público, que já estamos no set seguinte, que quem está tocando não é mais o dj/produtor anterior, mas o novo, que acabou de tomar para si o som da festa. É como se percebêssemos muito tarde, já sempre muito tarde, o que aconteceu: a música mudou. E nunca é muito claro em que momento essa passagem se dá.

Para fazer a transição é preciso, por exemplo, que o novo dj/produtor decida o que fazer ritmicamente com o que lhe antecede. Esse é o momento lógico da música eletrônica. E, sem sombra de dúvida, a música eletrônica, sobretudo em sua vertente mais techno, é uma música que não tem medo da lógica, pois ela sabe que a verdadeira lógica é ritmo, que a verdadeira lógica é a que nos faz dançar. Esse aspecto da música eletrônica nos faz entender por que Nietzsche dizia que faltava lógica a Wagner. Veja bem: Nietzsche dizendo a alguém que lhe falta lógica!Até para um nietzschiano, não é fácil entender isso. Mas é que Nietzsche entendia a lógica na música como uma das suas dimensões mais fundamentais: como ritmo. Um dj/produtor de música eletrônica não tem medo da lógica, do mesmo modo como um pintor, nos dizia Clarice, não deve ter medo da simetria. Um dos aspectos mais sublimes da música eletrônica é nos permitir fazer essa experiência de uma lógica que nos faz dançar ou de uma dança que é, em sua essência, lógica. Uma lógica que não se opõe ao corpo. Uma lógica da pulsação. Ou da pulsão, se vocês preferirem.

A passagem do som na música eletrônica é um problema lógico que cada dj/produtor tem, a cada vez, que resolver. É um problema teórico-prático. Mas não é um problema apenas lógico. Porque a música não é só ritmo, ela não é só lógica. Ela também é timbre: é textura, superfície, tato. É preciso fazer também, nesse sentido,uma transição tímbrica do som, o que significa dar cor à música. O timbre na música eletrônica é tão importante que ele é, em geral, o que faz nela as vezes da melodia, na medida em que, ao menos na música eletrônica underground, aquela que mais me interessa, uma melodia, explícita, é algo raro. Porque a música eletrônica em sua vertente mais radical se afasta da ideia de canção, na qual a melodia domina. E isso, por vários motivos. Um deles, certamente, tem a ver com o fato de que a canção é uma formal musical breve e finita, e a música eletrônica tende à extensão e à infinitude. É algo de que se deu conta um grande amigo meu, o filósofo italiano Lorenzo Vinciguerra, que, ao passar alguns dias na minha casa e ter que suportar longas sessões de música eletrônica como pano de fundo das nossas conversas, um dia me saiu com a seguinte exclamação:  Ma non finisce mai questa musica? “Mas não acaba nunca essa música?” Essa talvez seja uma das razões pelas quais a verdadeira música eletrônica é bastante refratária à melodia apostando suas fichas no timbre como dimensão paralela mais adequada ao ritmo.

O timbre faria essa transição entre o ritmo e a melodia, nem ritmo, nem melodia, um pouco como a imaginação, entre os filósofos, que faz uma conciliação entre o entendimento e a sensação. O timbre é uma espécie de limbo entre melodia e ritmo, entendimento e sensação e, nesse sentido, ele também é uma das figuras da comunidade que vem de que nos fala Agamben. Quando as noites se tornam fauves, as diferenças se tornam tímbricas, elas se tornam indiferenças entre ritmo e melodia. O timbre é uma esperança de indeterminação. E a música eletrônica é a sua comemoração. A comunidade que vem é fauve.

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