Uma vida, e nada mais

Uma vida, e nada mais

 

Sempre tive em mente o medo do poema diante de sua coragem. Assim mesmo, de forma paradoxal, no modo mais enviesado. O poema sempre me veio como uma prática do si para além dele mesmo. Uma prática do sujeito para deixar de lado essa afirmação rigorosa da subjetividade e assumir sua coragem diante do outro. Talvez por isso possa pensá-lo como um cuidar. Isso quer dizer: expor-se, dar-se, implicar-se, dizer. Ao mesmo tempo em que aqueles verbos se colocam como reflexivos, o dizer é sempre direto, sempre diante, sempre de cara. Trata-se de tomar diante de si a imanência do outro. Tomo essa palavra talvez no sentido em que Gilles Deleuze a tomou: “uma vida, e nada mais”. E essa talvez seja a maior dificuldade das relações entre poesia e pensamento: tomar uma vida, e nada mais dentro de uma expressividade possível. A poesia aqui sempre como um ato, talvez último de uma singularidade que, no entanto, se agrega às experiências do outro, com o outro.

Talvez essa experiência de uma vida, e nada mais tenha consequências mais graves, ou mais explícitas ao tempo, agora, na poesia de agora. Quero dizer, há uma potência que desestabiliza as individualidades, que as coloca num outro feixe de acontecimentos, numa outra dicção talvez. Dicção que não percebemos tanto, por contemporânea demais. Dicção nebulosa que se faz no conjunto indefinido disso que podemos chamar uma vida, uma dicção. Diria, para me valer de certa coragem da verdade, de uns versos de Age de Carvalho:

Distância,

ainda,

do que se ergueu,
destro, entre a tua mão
e a minha
mão, do ante-
instante, disto:

uma verdade
se planta de pé,
pára-botânica, de palma
a palma –
o que em tempo de floração
ainda subsiste, respirando,
entre espaço
e entre-
espaço.

A distância dessa dicção está inscrita num certo tempo, esse que precisamos cuidar. O poema diz aqui do ainda de uma distância irremediável entre o eu e o outro. Mais propriamente entre o teu e o meu, entre as formas possessivas dessas propriedades do homem. Ali onde as mãos não se encontram, os gestos não se encontram. O poema é todo uma temporalidade imanente – nada a ele subsiste senão a partir de seu próprio ato de espaçamento. Em outras palavras, o poema cria esse ante-instante que precede a tudo apenas quando ele disse da distância insuperável entre o si mesmo e o outro. Há uma vida, e nada mais. Se Emmanuel Levinas já tinha chamado atenção para a sentença de Paul Celan ao dizer que ele não via “nenhuma diferença entre um aperto de mão e um poema”, poderíamos aqui ler a atualização disso que se ergue entre duas mãos, de duas singularidades, numa vivência, mas também em sua virtualidade imanente, numa existência anterior à afirmação de si mesmo, daquilo que vem como a voz de um só sujeito. Age de Carvalho faz com que a verdade “se plante de pé”, “de palma a palma”. E essa apenas se faz ao poeta, ao escreverem uma espécie de fala franca, uma espécie de anúncio da verdade diante do outro, no aperto de mão, talvez muito anterior ao encontro de dois indivíduos. Se há um cuidado do poema, ele se faz talvez na mesma direção do que Foucault intentou com a coragem da verdade, ou seja, como um dever dizer e uma prática de dizer tudo diante dos outros, cuidando-se. O ante-instante e o entre-espaço, marcados ambos por um enjambement decisivamente final, colocam aí a diferença irredutível do eu ao outro. “O que em tempo de floração / ainda subsiste, respirando” senão esse corte da própria respiração, um corte que exige sempre um cuidado demasiado para que a verdade não seja aqui confundida com a verdade, previamente estabelecida e adequada aos princípios jurídicos, mas que seja uma verdade e nada mais? O poema é sempre um tempo de floração porque subsiste nesse ainda da distância entre o que é aparentemente virtual e, ao mesmo tempo, incarnado; previamente apresentado como uma relação instantânea entre o eu e o outro, e disposição de um meio no qual sua imanência possa servir como uma espécie de suplementação das violências.

É preciso talvez, então, erguer algo. Disso diz o poema. Erguer pode significar erguer uma distância. Pode também significar erguer uma prática, um modo de fazer entre dois, ou mais, ou múltiplos. Age de Carvalho ainda diz, em outro poema:

Disso, do que conversamos,
do que
não dissemos,
do tanto que ficou
(marca do anel, desfeita a aliança)
para depois,
ficou
um caco, passos
na areia,
poema riscado no escuro,
resto de fogueira
na praia.

Amanheceu, erguei-vos:
teu estilhaço-verdade, reembalado, lanças
de volta às águas.

Entre destroços e o salvado,
o céu
boiando no lago.

Sempre um risco, deixado, um resto já há muito disposto na manhã em que se ergue uma imagem, uma palavra, um rastro. Permanecem ali, nessa vida, numa vida, os estilhaços da distância entre o que conversamos e o que não dissemos. Disso que se risca no escuro. O poema se faz no escuro daquela cena riscada. O poema age sobre a diferença da conversa e do não dizer. De tudo que há entre uma conversa e aquilo que optamos talvez, muito francamente, por não dizer. Nessa dicção estranha da verdade como uma prática, há sempre o perigo de embalar-nos numa história. Talvez numa história demasiadamente particular, demasiadamente privada. No entanto, na medida em que o poeta diz por estilhaços, ele intenta colocar-se entre destroços e o salvado,entre essa marca da ação desfeita diante do outro e um depois consigo que se configura como escrita do poema. Para além de qualquer privacidade, o poema põe a nu o poeta. Deixa-o tanto só quanto acompanhado de sua nudez, de seu gesto nu. Ao desnudar o poeta, o tempo do poema é sempre a posteriori, sempre lançado (talvez “de volta às águas” numa dessas manhãs que acabamos de perceber).E, por isso, trata-se sempre de um depois já espaçado, que talvez ainda não tenha chegado, que talvez não chegue por agora, mas que o poema já apresentou seus cuidados.

Brasília, 05 de agosto de 2016.

Piero Eyben é poeta, tradutor, professor de teoria literária na Universidade de Brasília. Publicou os livros voo de rapina, ocos, de poemas; Dizer – da aporia e Escritura do retorno (teoria), além de diversos outros títulos em organizações.

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