Multivocalidade nos kapiwaiá dos Hupd’äh
Em tempos de crescentes violações dos direitos sociais, é através de discursos políticos que ouvimos as vozes de importantes lideranças indígenas erguerem-se em defesa de seus povos. Como revelam os escritos recentes de Davi Kopenawa, escritor e líder indígena brasileiro, essa retórica pública, que surpreende sempre pela força de suas imagens ecopolíticas a desvelar a violência dos “comedores de terra” e do “ouro canibal”, nutre-se de uma poética do xamanismo expressa por gêneros verbais como relatos de sonhos, cantos e profecias. Na região amazônica do Alto Rio Negro (AM), os Hupd’äh têm em seus cantos do caarpi, os kapiwaiá, uma poderosa arte verbo-musical que, em meio aos movimentos da dança coletiva ou da entoação solitária do cantor, suscitam deslocamentos, estranhamentos, lembranças e escutas fundamentais ao seu posicionamento na luta contra a máquina de um mundo predatório. Suas comunidades situam-se às margens de igarapés da área interfluvial dos rios Tiquié e Papuri, afluentes da margem esquerda do rio Uaupés. Os dados demográficos mais recentes estimam a população num total de 1.500 indivíduos distribuídos em aproximadamente 35 aldeias.
A primeira vez que ouvi um canto do caarpi não era capaz de entender uma palavra sequer da língua Hup, mas, percebendo os ritmos, paralelismos e melodias, pude acompanhar meu interlocutor. Ao meu lado, o senhor Henrique Brasil Socot entoou um repertório inteiro dos cantos que costumava puxar para que todos aqueles que bebiam caarpi (Banisteriacaapi, ayuasca) empunhassem seus bastões de dança, formassem um corpo de baile e, juntos, vislumbrassem os eventos míticos da criação num tempo em que os animais falavam, os seres humanos navegavam sob a pele fria da cobra-canoa e os ancestrais banhavam-se com as águas do Lago-de-Leite. Com o tempo, seu filho, Américo Socot, uma das grandes lideranças do povo, começou a ensinar-me como esses cantos-danças marcavam cada um dos momentos de rituais de troca, que reuniam parentes de diferentes aldeias para celebrar suas alianças e propiciar momentos em que mitos eram narrados, flautas eram tocadas e cantos eram entoados. Derramando o caarpi das cuias em suas bocas e erguendo-se de seus bancos ao comando de um mestre de cerimônia como Henrique, os dançarinos levantavam-se e, ritmados pelos passos e socos dos bastões, cantavam em uníssono versos cujos sentidos eram muitas vezes incompreensíveis.
Hoje, na paisagem sonora das aldeias, é comum ouvir-se a voz solitária de um senhor a recitar os versos do kapiwaiá quando o caxiri, bebida fermentada de mandioca, terminou e a algazarra da festa vai sendo engolida pelo silêncio noturno. Deitado em sua rede, em meio à saudade das danças antigas e ao embalo dos sonhos de sua família, o senhor canta os kapiwaiá que aprendera com seu pai ou avô, ensinando e protegendo os seus. Além da comunicação com um tempo mítico, esses são cantos xamânicos cuja enunciação permite a cura e proteção, assim como o bom deslocamento onírico pelo cosmos daqueles que, adormecendo, viajam como espíritos a diferentes paragens florestais, celestes, aquáticas, ctônicas e urbanas. Não é à toa que durante as incursões à cidade de São Gabriel, ouvem-se as vozes dos cantores nos acampamentos da beira-rio a proteger seus filhos e netos das violências dos comerciantes, militares, burocratas e assassinos locais. Comum a muitos povos da região do Alto Rio Negro, os cantos do caarpi parecem ser um gênero poético definido por seu alto grau de formalização e pela incompreensão da totalidade ou de boa parte das palavras enunciadas. A repetição de linhas ou de estrofes delineia estruturas fortemente marcadas pelo paralelismo que vão garantindo a constância do ritmo e do contorno melódico. Questionados sobre as palavras cantadas desprovidas de sentido em suas próprias línguas, os cantores dizem que há, nos kapiwaiá, palavras arcaicas de outros povos com quem seus ancestrais costumavam dançar. Mas as palavras desconhecidas surgem também em citações de falas de animais que vão compondo o tecido polifônico desse gênero discursivo. Os ecos de antigas danças e as falas de animais evidenciam uma retórica aberta à alteridade. Assim, os kapiwaiá parecem elaborar poeticamente um devir outro que situa mnemônica e politicamente a presença de antepassados, de predadores e de presas.
O canto Way Naku é entoado sempre pelo senhor Ponciano R. Socot, uma grande liderança política hup e um profundo conhecedor das práticas xamânicas. Seu aprendizado deu-se com seu pai e avô em meio aos cerimoniais quando a execução coletiva do canto poderia durar horas. Hoje as execuções breves podem alongar-se caso haja um ouvinte interessado que repita as palavras finais de cada verso, acompanhando e aprendendo com o cantor. Abaixo, é possível perceber como o canto Way Naku delineia-se a partir do paralelismo da repetição de linhas que, em seu conjunto, configuram algo semelhante a estrofes. O cantor cita as falas do homem-sombra, ouvidas por um ancestral hup num passado distante. O uso da primeira pessoa expressa o ponto de vista do homem-sombra, ele mesmo a cantar enquanto lança cachos de fruta para a terra. As palavras arcaicas são enunciadas na terceira estrofe e explicita-se, através da expressão /mah/, “dizem”, a dimensão de um canto reportado por outros, no qual é possível distinguir apenas o nome próprio Way Naku e a fala dos antepassados em outra língua /Yarinóóy […]/.
Quando narram a origem dos cantos do caarpi, muitos interlocutores entoam essa canção, pois ela é considerada a fonte de todas as demais. A narrativa mítica fala de um tempo em que não havia festas e os homens desconheciam os cantos. Pescando próximo a uma árvore de cucura (fruta de cachos grandes como uvas – PouromaCecropiaefolia) um homem hup ouviu o cantar de Way Naku, um homem-sombra (ser maléfico), que colhia os cachos de fruta e jogava-os para baixo. Além desse canto, o ser cantou todo o seu repertório por noites e dias a fio. O pescador escutava atento e, quando o inimigo silenciou a cantoria, ele bateu com seu facão no tronco da árvore. O homem-sombra caiu no rio e teve seu braço devorado por um enorme jacaré. O pescador retornou para sua aldeia e ensinou os cantos do caarpi a seus parentes que começaram a se reunir de tempos em tempos para a dança e celebração coletivas.
Fortemente reprimidos pela ação missionária salesiana durante os anos de 1970 e 1980 em todas as suas práticas rituais e xamânicas, os Hupd’äh, como muitos povos do Rio Negro, parecem ter restringido o consumo do caarpi às atividades dos pajés. Realizam-se ainda hoje as cerimônias de Dabucuri, importantes para a iniciação masculina e celebração de laços de reciprocidade entre grupos, mas já não se ouve mais falar de encontros para o consumo do caarpi e realização de danças coletivas. A entoação solitária ou acompanhada de um interlocutor-aprendiz leva a pensar nas estratégias não de preservação do gênero, mas de resistência poético-xamânica a partir de um cantar polifônico que, colocando cantor e ouvintes em contato com diversas vozes, garante, como no caso do pescador hup, o aprendizado, o enfrentamento e a festa coletiva. As mudanças nos contextos de enunciação dos kapiwaiá reverberam as transformações no mundo vivido desse povo. Sinalizam a acentuação de seu caráter memorial e xamânico, do fazer ecoar, pelas vozes dos anciões de agora, aquelas de antepassados distantes, de animais e de seres como o homem-sombra.
Muitos dos recursos estéticos presentes nessa arte verbal ameríndia parecem aproximá-la de propostas artístico-literárias que enfatizam a multivocalidade, os efeitos de estranhamento, as colagens e as montagens. As possibilidades de leitura e escuta atentas dos kapiwaiá tornam-se viáveis quando historicizamos essa forma de expressão, tomando-a, a um só tempo, na força de suas dimensões estéticas, políticas e xamânicas. Como nas palavras do grande xamã yanomami, os cantos do caarpi dos Hupd’äh nutrem-se das vozes arcaicas ancestrais e dos pontos de vista de espíritos e animais, expondo os jovens ouvintes a potências primordiais importantes para situarem-se num tempo da cidade que desfigura suas identidades e tenta aniquilar seus laços vitais com a terra, a memória e as artes do fazer de seu povo.
Danilo Paiva Ramos é pesquisador de pós-doutorado do Departamento de Antropologia da USP
(2) Comentários
mt interessante.
Olá morei um ano e quatro meses com os Hupda. Tomei carpi algumas vezes com eles, tenho um trabalho sobre isso. Gostaria de entrar em contato com o autor desse artigo. Um abraço!