Marxistas nos Estados Unidos

Marxistas nos Estados Unidos

Ruy Braga

Em seu conhecido ensaio, Considerações sobre o marxismo ocidental (1976), dedicado à análise do marxismo europeu entre o desfecho da Primeira Guerra Mundial e as grandes revoltas populares e estudantis do final dos anos 1960, Perry Anderson localizou o destino da tradição marxista crítica no interior de uma complexa trama das lutas de classes nacionais e internacionais do período. E, ao fazê-lo, logrou assentar as bases para futuras interpretações dessa corrente teórico-política.

Para Anderson, o marxismo ocidental teria se constituído a partir das sucessivas derrotas do movimento operário nos países capitalistas centrais da Europa pós-Revolução Bolchevique, tendo amadurecido no interior do ciclo de desenvolvimento econômico posterior à Segunda Guerra Mundial. Premido por toda sorte de autoritarismos, tendo o nazismo, de um lado, o stalinismo, de outro, e o reformismo esperando mais adiante, o marxismo ocidental teria experimentado uma combinação de hipertrofia estética com uma atrofia da política socialista.

A soma das revoltas estudantis e populares no centro do mundo capitalista avançado no final dos anos 1960, cujo momento paradigmático foi, sem dúvida, o “Maio de 68” francês – que completará 40 anos em poucos meses –, com o fim do ciclo de desenvolvimento do pós-guerra em meados da década de 1970 explicaria, em última instância, a decadência da grande tradição marxista representada por Lukács, Korsch, Adorno, Marcuse, Sartre, Althusser e Della Volpe. Em 1976, Perry Anderson apostava em uma possível reunificação do marxismo com as lutas populares capaz de desviar o centro de gravidade da cultura marxista para problemáticas “concretas” – associadas, sobretudo, ao movimento da mundialização econômica, ao estudo do Estado capitalista e das formas sociais da dominação, à análise da estrutura das classes sociais… –, além de deslocar geograficamente o núcleo produtivo do marxismo crítico da Europa “latina” para os Estados Unidos.

Segundo o historiador inglês, tal guinada poderia reviver a discussão estratégica dos caminhos pelos quais o movimento socialista seria capaz de superar o Estado capitalista e construir a sociedade comunista. De certa maneira, as revoltas universitárias no final dos anos 1960 conseguiram sustentar a promessa de uma futura intelectualidade socialista apta a examinar a herança dos pensadores marxistas clássicos, atualizando-a em direções imprevistas e inovadoras.

De fato, um novo “apetite pelo concreto” floresceu com a produção intelectual dos marxistas anglo-estadunidenses após o ciclo das revoltas populares das décadas de 1960 e 1970. Gravitando em torno de temas como os novos regimes de acumulação do capital, o Estado burguês, o processo capitalista de trabalho, as novas configurações das classes sociais no capitalismo avançado, os problemas relativos à degradação das cidades e do meio ambiente, a lógica cultural da dominação política das classes…, o marxismo crítico mostrou-se hábil em renovar a teoria socialista, estendendo-a para recantos ainda inexplorados.

Naturalmente, quer por sua localização geográfica, quer por sua inclinação temática, essa nova geração de estudiosos originária das lutas populares do final dos anos 1960 conseguiu estruturar uma profunda crítica da mais importante das sociedades imperialistas: os Estados Unidos. As conclusões às quais muitos deles chegaram figuram entre as mais bem-sucedidas críticas teórico-políticas jamais erigidas contra o Império estadunidense. O dossiê que o leitor tem mãos representa uma tentativa de destacar para o público brasileiro certos aspectos das obras de alguns consagrados representantes dessa tradição crítica.

Impulsionados pelo temor dos desdobramentos da atual crise financeira sobre o resto do planeta e pelo interesse despertado pela disputa presidencial – tendo a “Obamania” à frente –, o quotidiano político-econômico estadunidense invade os noticiários mundiais e parece estar mais presente do que nunca em nossas vidas. Trata-se de um momento privilegiado para refletirmos acerca dessas mesmas questões que foram levantadas em diferentes momentos pelos marxistas nos Estados Unidos.

A escolha dos autores não foi arbitrária. Buscamos ampliar ao máximo o escopo temático e, assim, trazer à tona, por meio da diversidade das abordagens, a riqueza dessa tradição: David Harvey, Mike Davis, Fredric Jameson, Erik Olin Wright e Michael Burawoy perfazem uma respeitável amostra dos inimigos íntimos do Império. Começando com Harvey – que apesar de nascido na Inglaterra, assim como Burawoy, notabilizou-se como um dos mais importantes geógrafos de sua geração trabalhando na Johns Hopkins University, em Baltimore –, podemos dizer que este restabeleceu as principais determinações conceituais e históricas da teoria marxista do imperialismo.

Retomando o eixo das relações entre economia e política, um dos muitos pontos que Marx apenas esboçou e não teve tempo de desenvolver satisfatoriamente em sua magnum opus, Harvey foi capaz de evitar as armadilhas subconsumistas presentes em Rosa Luxemburgo e fazer avançar a teoria das crises inspirada em O capital por meio da análise dos principais fenômenos político-econômicos dos últimos 35 anos: a financeirização, a mundialização e a política neoliberal.

Mike Davis, historiador e urbanista, professor da Universidade da Califórnia em Irvine, por seu turno, é um mordaz crítico de fenômenos como a favelização das megacidades, o aquecimento global, a pandemia e o terror militar. Davis notabilizou-se em diferentes trabalhos por sua sistemática tentativa de compreender como a vida urbana tornou-se tão caótica e como a catástrofe ambiental não pode ser separada da acumulação capitalista e do atual estágio de dominação imperialista.

Fredric Jameson é um dos mais destacados críticos culturais dos Estados Unidos. Autêntico pensador dialético, esse professor de estudos literários da Duke University sabe como poucos desvelar as lutas de classes encobertas nos produtos midiáticos. Sua teoria da lógica cultural do capitalismo tardio, baseada parcialmente na mais importante obra do economista belga-alemão Ernest Mandel, é reconhecida mundialmente como uma das mais consistentes críticas do pós-modernismo já intentadas.

Por fim, o leitor encontrará uma entrevista realizada com dois dos mais influentes sociólogos marxistas dessa geração: Erik Olin Wright e Michael Burawoy. Especialista em estratificação social, Erik Olin Wright desenvolveu uma das mais importantes e sofisticadas renovações da teoria e da tipologia de classe marxista que temos notícia.

Michael Burawoy, professor do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia em Berkeley, por sua vez, é um reverenciado estudioso das transformações do trabalho na contemporaneidade.

Como salientamos, se, em 1976, Perry Anderson apostava em uma reunificação do marxismo com as lutas populares, é importante dizer que essa possibilidade, ao menos por enquanto, falhou. O marxismo estadunidense que floresceu e se consolidou após 1968 deparou-se rapidamente com a era Reagan e o neoliberalismo, a queda do Muro de Berlin e a crise mundial do socialismo, as guerras contra o Iraque e o 11 de Setembro. Ou seja, por muitas razões, o marxismo nos Estados Unidos simplesmente não conseguiu reviver a discussão estratégica dos caminhos pelos quais o movimento socialista seria capaz de superar o Estado capitalista, permanecendo refugiado na academia.

O revolucionário russo Leon Trotsky afirmou uma feita que a primeira tarefa do militante socialista que vive em um país capitalista central é criticar o próprio imperialismo. Apesar de todas as dificuldades, o marxismo estadunidense não deixou de prosperar nessa hercúlea tarefa. E, por isso mesmo, pode nos oferecer chaves explicativas fundamentais para compreendermos o momento presente.

Ruy Braga
é professor do Departamento de Sociologia da USP

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