Um habeas corpus para a Constituição

Um habeas corpus para a Constituição
O presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP), declara promulgado o texto de 1988 (Foto: Reprodução)

 

Muita mentira, muita retórica e muita política sustentaram por meses os argumentos dos que pretendiam manter intocada a violação da Constituição, que o STF, influenciado pelos ares da Lava Jato, tomara em 2016.

A decisão da última quinta-feira, por apertada margem, mal permite que se comemore o prestígio dos princípios: os inconformados anunciam o revide por meio de emendas na Constituição, desdizendo o suposto anseio de “estabilidade jurídica” que tanto afirmavam sustentar.

Felizmente, a Constituição não suporta uma emenda para reduzir direitos individuais. Infelizmente, porém, nem todos entendem isso.

O legislador constituinte, consciente de que as políticas têm mais prestígio do que os princípios, resolveu estabelecer o que seria imexível na Constituição. Para evitar justamente o movimento das maiorias regressivas, que em determinados períodos põem em risco as democracias, estabeleceu cláusulas pétreas, temas que não podem ser objeto de deliberação.

A presunção de inocência, nos limites impostos pelo Constituinte de 1988, é um exemplo disso. Está no artigo 5º, da Constituição Federal, aquele dedicado aos “direitos e garantias individuais”. Nenhum deles pode ser suprimido, eliminado ou mesmo reduzido. Aliás, nunca foi. Em 31 anos de vida, a Constituição chegou a ser maltratada por várias vezes, esquecida outras tantas. Mas nunca – o que é um sinal importante – nunca teve algum de seus direitos inscritos no art. 5º suprimido.

Há quem postule, então, que substituir o “trânsito em julgado”, por “decisão confirmatória de sentença” não significaria a abolição da presunção de inocência, mas apenas uma “alteração de seu marco temporal”. Essa violação constitucional, empacotada com um elegante discurso mistificador, todavia, também não tem como vingar.

O constituinte poderia ter se limitado a garantir a presunção de inocência; ou, fazer como em outros ordenamentos, que condicionou a execução da pena a uma genérica expressão de “culpa formada”. No entanto, pelos motivos que já conhecemos, o legislador brasileiro buscou esclarecer o que tinha certeza que seria esvaziado se abrisse tamanho espaço para interpretações. Assim, traduziu o princípio da presunção de inocência em uma regra: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

O tal “trânsito em julgado” não é apenas um inocente “marco temporal”: é o núcleo essencial do direito individual. Um direito, aliás, coberto de lógica.

O direito a não ser considerado culpado, enquanto a culpa ainda estiver pendente de julgamento. Se não pode ser considerado culpado, não pode ter a sua pena executada como se assim fosse; pode ser preso a qualquer momento, desde a investigação, com a prisão temporária, até o curso do processo com a prisão preventiva, desde que em decisão especificamente fundamentada.

A prisão cautelar jamais deixou de existir por causa da presunção de inocência e quem mistura ambas as hipóteses (prisão-pena e prisão-processo) das duas uma: ou está enganado ou está enganando.

O trânsito em julgado não é um mero exemplo que o constituinte deu: é um limite. O limite do esgotamento dos recursos. Uma proposta que permita considerar culpado quem ainda tem recursos pendentes não faz uma “alteração no marco temporal”; elimina de todo o direito individual previsto na cláusula pétrea.

Dois argumentos recorrentes procuram estabelecer o terror desta proteção, uma espécie de exagero pernicioso feito pelo constituinte: a-) a ideia de que os autores dos mais bárbaros crimes vão ficar em liberdade até o trânsito em julgado; b-) a noção de que isso tutela, sobretudo, os direitos dos ricos, que podem se aproveitar melhor da malha recursal.

No julgamento do Supremo, por exemplo, o ministro Luiz Fux trouxe à tona o caso da menina Isabela Nardoni como um exemplo de liberdade aos “assassinos” que a presunção de inocência asseguraria. Mas como outras tentativas de levar o debate jurídico ao marco do sensacionalismo, o ministro desconhecia, supõe-se, que havia no caso decretação de prisão preventiva, bem antes do trânsito em julgado.

Já o ministro Luís Roberto Barroso foi contestado pelas estatísticas que mostraram, não apenas que as Defensorias Públicas contribuem praticamente com metade dos recursos nos tribunais superiores, como, ainda, que têm um êxito maior que os advogados constituídos. São os pobres e não os ricos, portanto, que mais demandam (e mais têm sucesso) nos tribunais superiores – os ricos só têm mais cobertura de mídia.

O episódio acabou revelando uma inusitada disparidade: o jurista utilizou-se do senso comum; o jornalismo foi atrás das estatísticas. Pode ter passado despercebido, mas esta é uma derrota e tanto para quem cultua o direito como ciência.

O pensamento conservador dentro do direito tradicionalmente procurou interpretar o novo pelo paradigma do antigo, fazendo com que as mudanças demorassem a ser implementadas. Com a Constituição de 1988 não foi diferente. Uma plêiade de interpretações que usavam o direito infraconstitucional como âncora para o seu conhecimento. O positivismo jurídico, solidificado nas instituições e nas academias, legou uma interpretação que, por sua vez, privilegiava as regras sobre os princípios; e que historicamente reagia aos postulados garantistas, relegando-os à posição de normas programáticas -ou seja, meras cartas de intenção.

Curiosamente, o então professor Luís Roberto Barroso foi um dos artífices da nova hermenêutica que tinha como base compreender, e assim tratar, a Constituição como um documento jurídico, não apenas político. Em linhas gerais: “vale o que está escrito”. A principal correção de rumos foi justamente a consideração de que os direitos fundamentais eram de eficácia imediata e não podiam ficar dependendo do bom humor do governante ou do legislador para serem regulamentados.

Esse amadurecimento de interpretação teve vários frutos, entre os quais, uma maior consideração acerca da inconstitucionalidade das leis, a que as composições do tribunal anteriores ou logo em seguida a Constituição, pouco se atreviam.

Os primeiros anos do século 21 foram marcados por este despertar argumentativo e pelo fato de o STF abdicar da omissão interpretativa a que estava acostumado. Não por outro motivo, no período foram considerados inconstitucionais a proibição da progressão de regime da Lei dos Crimes Hediondos, a regra que impedia o recebimento do recurso do réu que não chegasse a ser preso, as proibições genéricas de concessão de liberdade provisória em determinados crimes e até mesmo entendeu-se que a Lei de Imprensa, vigente há mais de quarenta anos, não havia sido recepcionada pela Constituição, dada a amplitude da liberdade de expressão nesta incorporada -decisão saudada com louvores pela mesma mídia que hoje despreza a presunção de inocência.

Neste sentido, é que não houve propriamente uma surpresa quando o STF, em 2009, ao julgar o HC 84.078, concluiu por 7×4 que a proibição de efeito suspensivo aos recursos especial e extraordinário eram contrários à presunção da inocência: se não é possível considerar culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, como executar a pena antecipadamente? Já havia uma contundente doutrina neste sentido e até decisões esparsas em medidas cautelares dos tribunais superiores suspendendo a execução.

O próprio Congresso votou a alteração de normas do Código de Processo Penal, contemplando a nova redação do art. 283, que traduzia o comando constitucional como o STF interpretara. E não houve rupturas na jurisprudência após a decisão do STF: quem pretendeu prender antes do trânsito o fez com os instrumentos legalmente disponíveis, como a decretação da prisão preventiva.

Mas, uma vez cristalizada na jurisprudência constitucional e processual a regra da presunção de inocência, começaram as tentativas de reforma.

A primeira delas ficou conhecida como PEC Peluso (PEC dos Recursos). Elaborada a partir de sugestão do então presidente do STF, que consistia em considerar os recursos especial e extraordinário como ações rescisórias, das quais o trânsito em julgado não mais dependia. Hoje se sabe que não foi adiante porque envolvia também permitir a execução definitiva de sentenças cíveis ou trabalhistas, o que causou reações dos entes públicos e grandes empresas, que também queriam o acesso aos tribunais superiores antes de dar o processo por encerrado. E como mexer com a propriedade e o dinheiro era mais delicado do que violar a liberdade, ficou por isso mesmo.

A segunda foi a proposta de projeto de lei formulada pela Associação dos Juizes Federais, subscrita pelo então senador Roberto Requião, que criava inusitadas hipóteses legais para a prisão antes do trânsito (PLS 402/2015). Eu estive na CCJ do Senado, em setembro de 2015, para discussão deste monstrengo, como também esteve o então juiz Sergio Moro, que o defendia fortemente.

Junto com outros juízes, promotores de justiça, defensores públicos e advogados, dizíamos que a lei não poderia ser alterada em face de previsão expressa da Constituição e da própria decisão do STF que a explicitava: a resposta que recebemos daquele grupo de juízes ligado à Lava Jato foi a de que tinham a informação de que o “STF logo mudaria a interpretação”.

Enfim, os senadores não levaram o projeto adiante – era, como tudo o que foi feito inspirado na Lava Jato, como as 10 Medidas contra a Corrupção e o Pacote anti crime, de precário fundamento técnico e redação inepta.

Mas a mudança que aqueles juízes anteviam de fato aconteceu em fevereiro de 2016. Foi claramente uma mudança circunstancial, induzida pelos propósitos da Lava Jato, que buscava sem cessar a prisão automática em segundo grau. Dizia-se, então, que isto aumentaria as chances de novas delações. Como era a posição do então Procurador Geral da República, Rodrigo Janot: “proibir prisão de condenados em 2ª instância pode inibir delações”, disse, à época, em entrevista ao Jornal O Globo.

A mudança do STF em 2016 foi circunstancial, episódica, e pode-se dizer, provocada por um interesse casuístico. Tanto é que teve vida curta. E mesmo assim bem tumultuada.

Os ministros nem sequer avaliaram a constitucionalidade do art. 283, do CPP; se pretendiam liberar a prisão automática com acórdão, deveriam ter anotado a inconstitucionalidade da lei, porque ela também expressamente o proibia.

Um dos artífices desta mudança, dizia a época o próprio presidente da Ajufe, seria o ministro Gilmar Mendes. E, de fato, foi, mas é o ministro que primeiro se posicionou pelo retorno ao paradigma anterior do STF.

Por fim, a decisão de 2016 jamais pacificou o tribunal; parte dos ministros continuou proferindo decisões em sentido inverso, como é o exemplo de Celso de Mello, decano e um dos membros mais respeitados da Corte.

A decisão perdia fôlego a cada dia e sua manutenção só se deveu à forma e o timing como o STF recolocaria o processo em pauta, tudo de modo a evitar o que se deu na última sexta-feira: o alvará de soltura ao ex-presidente Lula.

Outros réus tiveram a concessão de Habeas Corpus na segunda Turma do STF, mas quando a decisão envolveu Lula, o relator Edson Fachin deslocou a competência para o Plenário, dada a suposta necessidade de discutir colegiadamente a tese. A presidente do STF, ministra Carmen Lúcia, recusou-se, todavia, a pautar as ações declaratórias de constitucionalidade que discutiam a questão em forma de tese. E na decisão que negou o HC para Lula, o voto decisivo da ministra Rosa Weber então prenunciava que somente não acolhia o pedido, porque não era uma votação sobre tese, por mais contraditório que o enredo possa parecer.

Essa situação mal parada foi sendo continuamente adiada pelo ministro Dias Toffoli sem razões aparentes, que não o temor das reações que uma soltura de Lula poderia provocar -como os tuítes conspiratórios do general Villas Boas, cuja credibilidade e influência foram sendo corroídas pelo tempo.

Toda e qualquer sinalização do STF em questionar os abusos da Lava Jato eram recebidas com manifestações ofensivas e intimidatórias dos “bolsomoristas”. Para reagir a estas agressões fascistas, o STF tomou o pior dos atalhos: um inquérito sem forma nem competência, que distribuiu censura e intimidação a granel.

Mas foi a corrosão da própria credibilidade da Operação Lava Jato, a partir da revelação dos vazamentos do site The Intercept Brasil que contribuiu para a solução.

A convicção sobre a legalidade da prisão, sobretudo pelo questionamento consistente da parcialidade do juiz, foi se tornando cada vez mais controversa. Uma série não desprezível de adversários políticos, de jornalistas convertidos, e até mesmo de juristas arrependidos vitaminou um cinturão de dúvidas sobre a condenação.

Um Habeas Corpus discutindo a parcialidade de Moro, e a consequente nulidade da ação, estava na iminência de ser julgado (a liminar não fora concedida por 3×2, mas Celso de Mello adiantou que não se comprometia em votar da mesma forma quando do mérito). Foi nessa quadra que, enfim, as Ações Diretas de Constitucionalidade foram pautadas e o STF instado a rediscutir o tema, agora de forma integral.

O resultado: atrasou-se mais de um ano para que réus presos sem fundamento cautelar pudessem ser libertados. Ano esse que dificilmente será devolvido a quem eventualmente seja absolvido ou tenha sua pena reduzida ou regime alterado.

Dividido ou não, enfim, o STF deu um Habeas Corpus para a Constituição.

Agora é torcer para que o Congresso, em resposta, não condene a Carta à morte, fuzilando uma de suas cláusulas pétreas.

Se essa porta vier a ser aberta, é bom lembrar, todos os direitos individuais estarão em risco, e mesmo os princípios que balizam a República, alojados no mesmo artigo 60, §4º, da CF: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico e a separação dos Poderes.

O que está em jogo é simplesmente a democracia. Será que a prisão de Lula vale tanto assim?

MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, doutor em Criminologia pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.


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