Testando os limites da ordem constitucional liberal

Testando os limites da ordem constitucional liberal
(Foto: Roberto Jayme/Ascom/TSE)

 

Termina o 10º mês de existência do atual governo com os Bolsonaros em ebulição. Na outra semana, Carlos teve que assumir pela primeira vez que publica o que quer na conta e em nome do pai no Twitter, quando caiu mal uma publicação confrontando o STF no julgamento sobre prisões em segunda instância. E, o que é pior, teve que se desculpar. 

Já esta semana, a treta foi por conta de um vídeo, publicado presumivelmente pelo próprio presidente da República, em que ele aparece como um leão atacado por todos os lados por hienas, cada uma delas representando instituições brasileiras, e defendido tão somente por outro solitário e poderoso leão, legendado como “o conservador patriota”. Cada hiena que assalta o leão presidencial está devidamente etiquetada e são os partidos políticos, inclusive o PSL, os órgãos da grande imprensa, as organizações sindicais, movimentos sociais como os Sem Terra e o MBL, e, nada mais nada menos do que a ONU, o Greenpeace, a OAB e até a CNBB. Até os Isentões e a Lei Rouanet são representados como hienas ferozes no cerco ao sitiado presidente, que há de ser salvo, no limite, pelos conservadores. 

O STF não achou engraçada a comparação e coube ao seu decano, ministro Celso de Mello, a tarefa de deplorar o ataque às instituições da democracia liberal feitas pelo Chefe de Estado. Declarou que se refletia na publicação “a expressão odiosa (e profundamente lamentável) de quem desconhece o dogma da separação de poderes e, o que é mais grave, de quem teme um Poder Judiciário independente e consciente de que ninguém, nem mesmo o Presidente da República, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”. E advertiu o presidente para que parasse de se representar “como um ‘monarca presidencial’, como se o nosso país absurdamente fosse uma selva na qual o Leão imperasse com poderes absolutos e ilimitados”, explicando-lhe, em seguida, que em uma sociedade civilizada e de perfil democrático, jamais haverá cidadãos livres sem um Poder Judiciário independente, como o é a Magistratura do Brasil.

Carlos Bolsonaro prontamente foi às redes para dizer que, desta vez, não tinha sido ele o autor da travessura. Então, Jair Bolsonaro fez que sempre faz quando a reação é muito grande aos seus constantes abusos: disse que foi um erro, reiterou que foi mal interpretado, e apagou o vídeo de sua conta depois, naturalmente, que ele já tinha sido visto e replicado por vários milhões de pessoas. 

Mas quem pensava que a quota de ataques públicos dos Bolsonaros às instituições da democracia liberal já tinha sido atingida, não podia prever que o melhor havia sido reservado para a entrevista dada por Eduardo Bolsonaro ao canal da jornalista Leda Nagle no YouTube. Em manifestação na Tribuna da Câmara, na terça, o deputado já havia prometido o uso de repressão caso no Brasil ocorressem protestos como os que estão acontecendo no Chile. “Não vamos deixar isso aí vir para cá”, disse. “Se vier para cá, vai ter que se ver com a polícia. E se eles começarem a radicalizar do lado de lá, a gente vai ver a história se repetir. Aí é que eu quero ver como a banda vai tocar”. 

Mas o que parecia uma bravata autoritária ganhou feições distintas na entrevista. Quando lhe solicitaram que falasse sobre as manifestações de rua no Chile, Eduardo começou endossando a narrativa conspiratória mais comum nas últimas semanas na seita bolsonarista: a de que todos os protestos políticos da América Latina nesses dias estão vinculados entre si e foram arquitetados por uma entidade mítica e onisciente chamada Foro de S. Paulo, cujo objetivo é transformar os latino-americanos em zumbis comunistas obedientes a um regime genocida. Na verdade, Eduardo estava, como em tudo o mais, refletindo uma das fantasias delirantes do seu guru ideológico, Olavo de Carvalho, que no início da semana havia publicado um vídeo dizendo que “Lula não roubou 6 trilhões de reais do Brasil para gastar no puteiro, para comer pato numerado no Ritz, para comprar joias para as amantes dele. Não, ele roubou para salvar da destruição o movimento político mais homicida, mais monstruoso, mais inumano que a humanidade já conheceu”, o movimento comunista, afirmou o santo homem. 

Diante de Leda Nagle, Eduardo preferiu explicar a origem do dinheiro não pela desvairada tese do roubo de 6 trilhões de reais, mas adotando a hipótese de que por trás de tudo o que ocorre no Chile está o dinheiro que o BNDES teria dado para os comunistas “para fazer essas revoluções”. Em seguida, passou a pregar a ideia de que as tais revoluções comunistas, que começaram pelo Chile, estão na iminência de chegar ao Brasil. Prevenido como é, o arguto deputado começou já a arquitetar um plano de contingência, que expôs à benevolência e cumplicidade da jornalista-simpatizante:

Eduardo: “A gente em algum momento tem que encarar de frente isso daí. Vai chegar um momento em que a situação vai ser igual ao final dos anos 60 no Brasil: quando sequestravam aeronaves, quando executavam-se e sequestravam grandes autoridades (cônsules, embaixadores), execução de policiais, de militares. Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta ela pode ser via um novo AI5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito como ocorreu na Itália.  Alguma resposta vai ter que ser dada. Porque é uma guerra assimétrica, não é uma guerra em que você está vendo o seu oponente do outro lado e você tem que aniquilá-lo, como nas guerras militares. É um inimigo interno de difícil identificação aqui dentro do país. Espero que não chegue a esse ponto, mas a gente tem que estar atento”.

Leda: Igual àquela frase sua, dois cabos e um soldado, ou dois soldados e um cabo. Como é que é mesmo a frase?

Eduardo: hahaha… não. Era só um cabo e dois soldados.

Leda: Então não eram dois, era um só? Haha. Você viu a confusão que você arrumou com isso, né?”

Pronto, já está tudo esquematizado. Ou teremos um plebiscito à italiana ou teremos um novo AI-5 quando a revolução, ou seja, os protestos de rua, chegarem ao Brasil. O plebiscito à italiana que todo mundo conhece são os plebiscitos fascistas, a começar pelo de 1929, que simplesmente passaram a ser usados em lugar de eleições. O regime fazia uma lista fechada e a população ia às urnas dizer sim ou não para o cardápio decidido: eis o plebiscito à moda Eduardo Bolsonaro. Quanto ao AI-5, acho que nem preciso lembrar que foi a oficialização da morte da democracia liberal no país, em um triste 13 de dezembro de 1968, quando foi dado ao presidente o poder de fechar todas as casas legislativas do país (o Congresso Nacional foi fechado no mesmo dia), o poder de cassar mandatos e suspender direitos políticos em caráter permanente, ao mesmo tempo em que se suspendia o instituto do habeas corpus para os desafiantes do regime que fossem acusados de crimes políticos, contra a segurança nacional ou contra a ordem econômica. Faleceu naquele dia a ordem constitucional liberal e, portanto, os direitos do indivíduo ao devido processo legal, às liberdades de expressão, reunião e movimento, assim como desapareceu a subordinação do governo ou do executivo às leis aprovadas por um parlamento eleito (o “estado de direito”) e sucumbiu a separação de poderes entre executivo, legislativo e judiciário. 

Trata-se, na verdade, de apenas mais uma tentativa dentro da mesma estratégia de testar limites. Quem lida com crianças e adolescentes conhece o procedimento: eles estão sempre testando os limites das regras e princípios com alguma atitude para se ver se é possível empurrar as balizas e os confins para níveis que lhes sejam mais confortáveis e convenientes. Se houver complacência, as fronteiras passam a ser colocadas cada vez mais distantes, se houver reação, volta-se aos limites anteriores. Pois, bem, os quatro Bolsonaros testam praticamente todos os dias a aceitação social da ideia de uma suspensão da ordem constitucional liberal. A base bolsonarista aceita e rejubila, claro, mas como essa é uma ideia ainda insuportável para a parte ainda lúcida da sociedade, o resultado é um clamor nacional de repúdio, a começar por pessoas com responsabilidade institucional no legislativo e no judiciário, passando-se pela mídia e pelos intelectuais. Havendo reação, o Bolso Pai reagiu hoje como tem reagido todas as vezes: recuando e passando a mão na cabeça “do garoto”. “A gente lamenta essa notícia, mas meu filho está pronto para se desculpar tendo em vista ter sido mal interpretado”, disse em entrevista à Band. Pronto. Na semana que vem, tudo começará outra vez. 

WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

 

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