A pandemia de agora, o inimigo de sempre

A pandemia de agora, o inimigo de sempre
(Arte Revista Cult)

 

Mais de 30 milhões de trabalhadores assalariados do Brasil passaram algumas horas ontem (segunda, 23) perguntando aos céus, aos colegas, aos patrões e às redes sociais se seu salário cairia no próximo dia de pagamento. As famílias desses trabalhadores também viveram essa expectativa terrível. Todas as pessoas que sabem o impacto que o corte de salários teria para a economia como um todo também. Os patrões que vêm mais do que planilhas na sua frente, os comerciantes que sabem que suas vendas dependem de trabalhadores em sua maioria assalariados, todos que têm algo parecido com um coração – ou um cérebro – também.

Era o efeito da divulgação da medida provisória 927/2020, editada na noite do domingo pelo presidente Bolsonaro. A segunda-feira começou dando destaque nos portais para o significado de um dos artigos dessa MP: o trabalhador poderia ficar até quatro meses sem receber salário. Como? O artigo 18 da MP, num capítulo chamado apenas “Do direcionamento do trabalhador para qualificação”, criava a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, por até quatro meses, “para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional não presencial oferecido pelo empregador, diretamente ou por meio de entidades responsáveis pela qualificação, com duração equivalente à suspensão contratual”.

Durante esse período, de acordo com a MP, o trabalhador teria direito apenas aos “benefícios voluntariamente concedidos pelo empregador, que não integrarão o contrato de trabalho” e o “empregador poderá conceder ao empregado ajuda compensatória mensal, sem natureza salarial”. Ou seja: uns trocados em vez de salário. Assim, tudo o que era direito passava a depender da boa vontade de cada patrão, porque a suspensão seria decidida sem depender de acordo ou convenção coletiva, podendo “ser acordada individualmente com o empregado ou o grupo de empregados”.

A temperatura do país subiu rapidamente e, no início da tarde, o presidente foi ao Twitter (onde a hashtag #BolsonaroGenocida já estava no pico) dizer: “determinei a revogação do art. 18 da MP 927”. A justificativa para a revogação não colou: estava tomando pancada por causa de um texto mal redigido, não era nada disso, imagina… Mas o fato é que, na noite da segunda-feira, foi publicada uma nova medida provisória (928/2020) revogando expressamente todo o art. 18 da MP anterior.

Com essa revogação ligeira, Bolsonaro talvez se veja como herói da classe trabalhadora na luta contra seu ministro Guedes e mesmo contra os empresários bolsonaristas que comemoraram a primeira versão da medida e andam dizendo que “a economia não pode parar por causa de 5 ou 7 mil mortes” (Junior Durski, da rede Madero) ou que “12 mil mortes em 7 bilhões é pouco para histeria” (Roberto Justus, publicitário), mas está bem longe disso, porque, em primeiro lugar, a sombra dessa medida extrema (corte de salário) continua no ar e todos os trabalhadores continuarão tendo pesadelos com isso, e, segundo, entre as “medidas trabalhistas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus”, há diversas outras que podem causar danos semelhantes à vida dos trabalhadores.

Na verdade, não temos como afirmar que essa MP já estava redigida muito antes do coronavírus aparecer, mas sua leitura revela algo que já era possível afirmar com base em declarações do ministro da Economia: Guedes viu na pandemia e no estado de calamidade uma grande oportunidade para testar grande parte do que considera ser uma relação de trabalho “moderna”, “livre” e “justa” (para os patrões).

Enquanto cientistas, médicos, todos os profissionais da saúde, políticos com alguma responsabilidade e a população estão buscando formas de sobreviver e combater a pandemia, Guedes olha para o país como um grande laboratório para o desmonte da proteção social em todos os níveis, por isso a facilidade com que, num momento tão grave, propõe até mesmo transformar o salário (como direito) em ajuda (voluntária) que o empregador poderá – friso: se quiser! – dar aos trabalhadores durante quatro meses que ficarão trancados em casa obrigados a fazer cursos online…

A proposta caiu rapidamente, mas não morreu, tampouco levou consigo as demais medidas de “flexibilização” previstas na MP 927 quanto ao teletrabalho, antecipação de férias individuais, concessão de férias coletivas, antecipação de feriados, banco de horas, suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho, suspensão do recolhimento do FGTS e da fiscalização do trabalho.

É evidente que o combate à pandemia exige medidas que atingirão toda a sociedade, inclusive os direitos dos trabalhadores, mas chama a atenção, na MP 927, primeiramente o fato de que, com ela, o governo tenha-se antecipado a acalmar as empresas e impor aos trabalhadores a forma como pagarão sua parte nessa conta (alguns com todo o salário!). E há também uma lógica que atravessa todos os artigos: escantear os sindicatos e instrumentos coletivos nos processos de decisão sobre as soluções em cada empresa, individualizando as soluções (o que, obviamente, expõe cada trabalhador a uma decisão que favoreça apenas seu respectivo patrão) e, mais que tudo, atropelando a Constituição, a CLT e demais normas do trabalho, inclusive para afirmar, desde já, que “os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal” (art. 29).

A situação é emergencial, sem dúvida, e a principal preocupação deve ser com a saúde da população. Isso não quer dizer que o governo não deva, ao mesmo tempo, tomar medidas que protejam a sociedade também do caos econômico, um caos ainda pior do que aquele que já vinha sendo enfrentado pela maioria da população. Tais medidas, certamente, devem considerar as imensas diferenças que existem no Brasil, seja entre empresários (desde gigantes a pessoas levadas ao empreendedorismo), seja entre trabalhadores assalariados, informais, desempregados e aposentados, sem esquecer das pessoas que dependem e das que passarão a depender de assistência social.

Afirmar que os trabalhadores poderiam ficar até quatro meses sem salário equivale, do outro lado da balança, a uma medida do governo que, por exemplo, obrigasse as empresas a utilizarem toda sua estrutura e recursos, sem contrapartida, para produzir mercadorias e entregar ao Estado ou à população. O governo proporá algo tão radical assim? Creio que não, mas não hesitou em propor, para garantir a normalidade das empresas, que os trabalhadores fossem lançados à anormalidade absoluta.

Não temos qualquer razão para acreditar que o ataque de Bolsonaro e Guedes aos trabalhadores, na contramão da generosidade com que pretendem lidar com bancos, companhias aéreas e outras grandes empresas, se restringe aos termos da MP 927, até porque, no texto dessa medida, é possível ouvir o eco de soluções para a economia que eles sempre repetiram aos quatro ventos. Lamentavelmente, com políticos desse tipo nas principais cadeiras do país neste momento, temos que dividir nossa atenção entre os riscos trazidos pelo cononavírus e o vírus de precarização absoluta do trabalho e da vida que pode vir embarcado nas “soluções” dos governos e empresários.

Isolados em casa, sem condições de responder nas ruas a novos ataques, a pandemia de agora nos deixa mais vulneráveis ao inimigo de sempre: o capital, que certamente não vai descansar enquanto não encontrar formas de manter sua vantagem mesmo num ambiente catastrófico. Aliás, catastrófico para quem?

PS: nas próximas semanas, pretendo continuar escrevendo aqui sobre as medidas dos governos e empresas durante o combate ao coronavírus, aproveitando também para comentar livros que podem nos ajudar a entender como as decisões tomadas agora podem corresponder a sonhos antigos do capital e, assim, implicar novos pesadelos aos trabalhadores e à toda a sociedade.

Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.


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