O futuro de Bolsonaro depois de Trump
Sem Trump, o mais provável é que Bolsonaro volte a ser o mico exótico e feio que era antes de 2016 (Foto: Alan Santos/PR)
Os brasileiros reservaram este mês de novembro para as aflições eleitorais. Curiosamente, não com as eleições municipais, nas quais não se está prestando muita atenção, mas com as eleições gerais americanas. De fato, desde que eu acompanho campeonatos eleitorais nunca vi uma eleição americana em que nos envolvemos tanto, torcemos e sofremos com tanta entrega. Parece a Champions League, em que os nossos times domésticos efetivamente não jogam, mas adotamos um dos participantes do torneio como time do coração e, pronto, somos parte da competição.
Nem na eleição de Barack Obama em 2008 estivemos tão envolvidos. Nem nós nem os próprios americanos, que não compareciam tanto para votar em uma eleição presidencial desde a eleição de 1900, quando o republicano McKinley foi eleito tendo Roosevelt como companheiro de chapa.
O fato é que, desta vez, havia muita coisa em jogo até mesmo para nós. Na verdade, vendo a cobertura dos jornais mundo afora, não me parece que qualquer outro país, exceto os Estados Unidos, tenha se sentido tão implicado na eleição americana quanto o Brasil. Era como se o verdadeiro primeiro turno das eleições de 2022 tivesse acontecido neste novembro e sido disputado não aqui, mas em outro país.
Por que isso? Ora, porque todo mundo por aqui sabe que a eleição presidencial americana de 2016 foi, de fato, o marco zero do bolsonarismo como força eleitoral no Brasil. Foi a vitória de Trump naquele ano que deu à militância e às lideranças conservadoras de direita a convicção de que até uma pessoa como Bolsonaro poderia se tornar presidente da República.
Até novembro de 2016, Bolsonaro era ainda basicamente um personagem de baixo escalão que tentava garantir a cada quatro anos a sua quota de cerca de 200 mil votos de militares e milicianos para manter o emprego na Câmara dos Deputados. Mas que tinha se notabilizado nos últimos anos como a encarnação dramática da crispação do sentimento de frustração e fúria com a política e com a esquerda que a conduzia. Depois da surpreendente vitória de Trump é que finalmente caiu a ficha de que a alternativa eleitoral mais antipolítica, antipetista e antiesquerda poderia representar a maior probabilidade de virada radical nos rumos da política nacional por meio de uma liderança autoritária, de retórica ao mesmo tempo populista, radical e genuinamente antissistema. A partir de 2016, Bolsonaro representou o tapa na cara do PT, o insulto à política, o pé na bunda do estabelecimento institucional brasileiro. Foi um voto de projeto para uns poucos e de escárnio, repúdio e afronta, para a maioria.
Por isso mesmo, o mundo todo se perguntou, em novembro de 2020, se as eleições americanas seriam a consolidação definitiva da onda autoritária, populista e ultraconservadora ou se seria o momento em que os eleitores poderiam corrigir o erro da escolha radical de 2016 mudando a direção para candidaturas mais construtivas, moderadas, pluralistas e liberal-democratas. Estabilização no padrão radical da guinada à extrema-direita de 2016 ou retorno a um padrão pluralista, moderado e mais compatível com os valores da democracia? Este era o dilema.
Imaginários importam
em comunicação política.
O fracasso eleitoral de
Trump em 2020 terá um
grande efeito na
imaginação de alternativas
até na adoção de novas
chaves de leitura para
interpretar o sentido e
o alcance das eleições,
e o que nelas está
em jogo.
Tantos americanos correram às urnas porque sentiram que precisavam que a sua opinião contasse na decisão sobre que padrão de presidência da República adotar. Por pouco, mas o bastante, parece que a segunda opção prevaleceu por lá, e isso há que pelo menos sinalizar que a aventura semiautocrática da nova direita populista não foi vista pela maioria como um projeto sustentável, de longo prazo e que poderia ser mais radicalizada e institucionalizada em um segundo mandato. E, mais importante, que os cidadãos democratas são perfeitamente capazes de se unir para encerrá-la, se forem convenientemente motivados a tanto.
Confirmada a derrota de Trump, neste que foi um plebiscito sobre o trumpismo, a partir de 2021 Bolsonaro sobrará como o mais importante líder da nova direita autoritária e radical-populista no mundo. O fato, porém, é que Jair Bolsonaro nasceu para ser vagão, não locomotiva. Ninguém vai querer ser o Bolsonaro da Hungria, da Polônia ou do Belarus com a mesma felicidade e orgulho com que o nosso chefe de governo enverga o título de “Trump da América do Sul”. Não mesmo! Assim, o mais provável é que Bolsonaro volte a ser o mico exótico e feio que era antes de 2016. Sem Trump, Bolsonaro é a última piada de mau gosto da nova direita casca-grossa do mundo, esta que emergiu há quatro anos.
O bolsonarismo sabe disso e sabe o que esteve em jogo. Prova disso é que distribuiu fake news sobre fraude eleitoral nos Estados Unidos, ou chamados à ação para que não se aceite a eleição de Biden, como se algum bolsonarista estivesse disputando mandatos na Pensilvânia, no Arizona ou na Geórgia. O próprio Bolsonaro primeiro se fechou em silêncios durante a virada nos votos da eleição americana, depois se recusou a cumprimentar o vencedor, como o fizeram líderes de todos os país democratas que contam. Quando enfim saiu da clausura, Bolsonaro foi visto completamente descontrolado em ações e palavras.
Perdida a possibilidade de continuar sendo “o Trump do dia seguinte” nos dois anos que lhe restam de mandato, macaqueando, em um bizarro efeito-Orloff, tudo o que o presidente americano diz ou faz precisará encontrar outro personagem. Mas qual personagem, se o único papel que representou na vida foi o de troglodita de direita que acabou de ser derrotado nos Estados Unidos?
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)