O bolsonarismo e o admirável mundo novo depois do fim da corrupção
Bolsonaro em visita ao Parque Nacional da Serra da Capivara, em julho de 2020 (Foto: Alan Santos/PR)
O bolsonarismo foi eleitoralmente eficiente porque conseguiu ser o maior beneficiário de um movimento que acabou predominando na política brasileira na última década e que consistiu em transformar a disputa eleitoral em uma disputa moral. Com isso, as prioridades nacionais que dominaram as eleições desde os anos 1990, que eram principalmente demandas por respostas de política econômica e de políticas sociais, foram substituídas por demandas em termos daquilo que poderíamos grosseiramente chamar de “políticas morais”.
Só para lembrar, FHC foi eleito em 1994 e reeleito em 1998 porque o principal problema do país parecia ser, para a maioria dos eleitores, o controle da inflação, e a solução de política pública à base de ajuste das contas do governo pareceu a mais sensata. Em 2002, Lula foi eleito porque nos convenceu de que o principal problema do país era a questão social e que o candidato do PT era o homem certo para dar respostas à base de políticas sociais. Entre 2002 e 2014 manteve-se a questão social como o principal problema do país na percepção da maioria e, coerente, o modelo de políticas públicas foi vitorioso e mantido até a sua exaustão.
Já em 2014, contudo, Aécio Neves havia pressentido que a eleição podia ser decidida como um julgamento moral sobre o PT e, na reta final, apostou toda as suas fichas no antipetismo. Quase deu certo, não foi suficiente por pouco, mas o caminho estava aberto.
Note-se que o antipetismo não é um juízo sobre a incompetência do PT, mas o resultado de um julgamento moral que condenou o partido por corrupção, por quebra de confiança popular na sua superioridade moral por má conduta republicana.
Em 2018, todos os problemas sociais tradicionais relacionados à economia e à questão social (educação, moradia, pobreza, desigualdade, saúde) foram preteridos pelo problema moral da corrupção. E mesmo o último problema social que se manteve firme, o da segurança pública, foi analisado e diagnosticado moralmente: não tinha sido resolvido porque a esquerda gostava de bandido e será resolvido porque será estabelecida uma solução do tipo “vigiar e punir”.
Corrupção é degradação moral. Não é à toa que a expressão vem do vocabulário religioso, e não da política, e denota como uma perda e uma queda. A corrupção da carne e a corrupção do espírito resultam da perda de uma situação original de felicidade e perfeição por causa do pecado, a violação da única interdição vigente no paraíso. Desde então, temos a história de uma queda – que precipita todos nós, filhos de Eva, neste vale de lágrimas – e das tentativas, frequentemente malogradas, de resgate e redenção.
Pois bem, a partir principalmente de 2015, os brasileiros foram se convencendo e convencidos de que a política nacional se havia corrompido ao ponto do irremediável. E a revelação dizia que os anjos caídos que trouxeram a corrupção eram os políticos em geral, a esquerda governante em particular e o PT em especial.
Também foram convencidos de que, pari passu com a corrupção da política, havíamos chegados pela mão do PT e da esquerda à mais completa corrupção dos costumes. Artistas esquerdistas corrompiam a alma dos inocentes por meio de instalações e pinturas, professores e alunos se entregavam a rituais orgiásticos nos campi universitário de fazer inveja a bacanais pagãos, o PT incentivava os indefesos infantes ao sexo precoce e incentivava a criançada à homossexualidade por meio de políticas públicas financiadas pelo contribuinte.
Particularmente eficiente como estratégia de convencimento das pessoas foi a narrativa sobre a corrupção das criancinhas. O contraste entre, de um lado, a pureza da alma infantil e a inocência dos seus corpos, e, de outro, a malignidade dos adultos sem fé e sem Deus, desenhava um quadro assustador. A esquerda e o PT foram apresentados como abortistas, corruptores da infância, defensores da pedofilia, arautos do sexo desregrado, paladinos da homossexualidade, advogados de modelos infames de família e da arte degeneradas, inimigos da religião, da pureza, de Deus, enfim.
Cortem para 2020. A corrupção da política tem hoje nomes, datas e números de cheques e contas correntes. O presidente da República, empossado como o anjo purificador do mundo da política, avisa ao jornalista que a única resposta que consegue e deseja dar à legítima indagação sobre como tanto dinheiro de origem duvidosa foi parar na conta corrente da sua mulher consistirá em encher-lhe a boca de porrada. A este ponto já não há mais dúvida, segundo o jornalismo de referência e o MP, de que dinheiro ilicitamente desviado do Estado por meio de funcionários fantasmas e do expediente criminoso de “rachadinhas”, gerenciados por um amigo de 30 anos do mandatário maior da nação, foram parar nas contas da mulher do presidente e de um dos seus filhos, senador da República, que teria enriquecido por este meio.
Enquanto isso, o presidente, beneficiário direto de um esquema de corrupção do sistema nacional de Justiça em 2018, operado por meio de um conluio entre procuradores e um juiz, depois recompensado com um ministério, foi acusado, por este mesmo juiz e sócio da sua bem-sucedida campanha, de estar corrompendo a Polícia Federal, usando-a para fins privados e familiares.
Além disso, a Suprema Corte precisou se dar ao trabalho decidir em juízo que, não, o presidente da República não pode corromper de tal forma as forças de inteligência do Estado a ponto de transformá-las em uma Gestapo particular e que listas de funcionários públicos inimigos da presidência era uma corrupção inaceitável da democracia.
Mas, pelo menos no terreno da luta contra a corrupção dos costumes, está tudo em paz no bolsonarismo, não é mesmo? Afinal, no outro dia mesmo lá estava ele, o bolsonarismo, na frente de um hospital no Recife tentando impedir um aborto legal. Coerente. E toda semana, chova ou faça sol, mude algo ou nada no mundo, há uma tag contra a pedofilia no Twitter cuja função, basicamente, é nenhuma, a não ser manter o tema ativo na memória da tropa.
Mas aí vem o desfecho da trama diabólica da deputada bolsonarista Flordelis e de, como disse o delegado do caso, 20% dos seus 50 filhos. E a narrativa é um fantástico exercício de hipocrisia e maldade da turma que se elegeu para evitar que as criancinhas continuassem a ser corrompidas, para que a família santificada fosse restaurada como centro da vida nacional e para que Deus fosse reposto como soberano do país. “Crianças”, diz a mãe exemplar de 50, pastora e anti-abortista, “precisamos matar o pai de vocês, não o suporto mais. Já tentei veneno e pistoleiro, mas o sujeito não morre. Vamos ter que resolver isso na bala”. “Mas mãe, se não o suporta, não basta se separar?”, haverá ponderado ao menos um dos infantes. Ao que terá respondido a impoluta progenitora: “Comunista! Esquerdista! Petista! Quer dar escândalo? Não vê que é pecado se separar?”.
Nada demais, não é mesmo? Tem coisa mais sublime do que a família, enfim redimida da corrupção? Ainda bem que o bolsonarismo nos resgatou da corrupção e do pecado, não é mesmo?
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)