O antipetismo em vertigem
A cineasta Petra Costa, autora de 'Democracia em vertigem', indicado ao Oscar de melhor filme documentário (Foto: Diego Bresani)
Um dos temas desta semana política agitada foi a repercussão internacional de entrevistas de Petra Costa, a jovem cineasta brasileira cujo longa-metragem, Democracia em vertigem, lançado pela Netflix, é candidato ao Oscar de melhor filme documentário. O filme consiste em uma narrativa em primeira pessoa, em que, como diz o site oficial do serviço de streaming, “memórias pessoais se misturam nesta análise sobre a ascensão e queda de Lula e Dilma Rousseff e a polarização da nação”. Desde a primeira imagem do filme, o espectador saberá que está diante de uma reconstrução pessoal sobre um período da história política do país cuja interpretação e sentido ainda são disputados.
Todos se lembram que em 2016, quando o segundo longa-metragem do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, Aquarius, estreou no festival de Cannes, cada integrante do elenco, dentre eles Sonia Braga, levou ao tapete vermelho da sessão de gala cartazes em várias línguas dizendo que um golpe de Estado havia ocorrido no Brasil. Os antipetistas entraram em convulsão. Mas a coisa só piorou para o lado deles, pois em Bacurau, dirigido pelo mesmo Kleber Mendonça Filho e por Juliano Dornelles no ano passado, que teve a ousadia de ganhar o Prêmio do Júri na competição principal de Cannes, é oferecida uma interpretação muito severa sobre a situação política do Brasil atual. A aclamação pelo público brasileiro e pelas instâncias de consagração do campo cinematográfico internacional só dão mais gravidade à visão que os filmes sustentam.
Não é fácil ser selecionado para Cannes ou indicado para o Oscar. Ganhar um desses prêmios internacionais é coisa absolutamente excepcional, gera enorme visibilidade e, consequentemente, confere grande prestígio à interpretação dos fatos que as obras veiculam. Eis aí, então, o problema da politização dos efeitos, reais ou presumidos, de filmes que tomam posição sobre fatos políticos, principalmente quando sustentam um lado diferente ou adversário do grupo que está no poder.
Ainda mais se sociedade brasileira não apenas está politicamente dividida, mas as posições se distanciaram e se radicalizaram, há um mar de ódio, ressentimento e despeito separando os lados e, até aonde a vista alcança, não se veem no horizonte nem a possibilidade de eliminação do adversário nem a promessa alternativa de reconciliação entre as partes. Chama-se polarização, este estado de coisas, e isso afeta tudo, até o julgamento sobre o efeito benéfico ou maléfico que filmes podem exercer em observadores neutros, neste caso, em espectadores internacionais, levando-os a ficar contra o meu lado.
É por esta razão que um filme documentário brasileiro, em um país que, via de regra, não vê filmes nacionais e muito menos documentários, virou o centro da convulsão política nestes dias que antecedem a premiação do Oscar. O bolsonarismo odeia o filme de Petra Costa com todas as suas forças, embora Bolsonaro seja uma sombra secundária no filme, que despende mais energia com o impeachment, Temer e Moro do que como o atual mandatário. Mas o bolsonarismo é histérico e é adepto, como nenhuma outra facção, ao efeito manada: para onde apontam o dedo dos líderes mandando odiar, odeiam todos. A questão é que o sucesso do filme de Petra Costa provoca fúria e irritação para além da mancha estritamente bolsonarista, enquanto deixa deliciados os petistas e a esquerda.
Um exemplo de alguém que passou recibo da sua insatisfação esta semana foi o jornalista e escritor Pedro Bial, que, em uma entrevista ao programa Timeline da Rádio Gaúcha, de Porto Alegre, cunhou para o filme a expressão “ficção alucinada”, que só serviu para jogar mais gasolina na fogueira da esfera pública política nacional. Bial, que é um sujeito reconhecidamente culto, viu o documentário e não gostou (ao contrário da malta bolsonarista vulgar que costuma não gostar sem ter visto), embora tenha considerado que é “um filme bom no sentido da realização“, e tenha declarado, desde o princípio da entrevista, que considera Petra Costa uma “ótima cineasta”.
Instado a falar sobre o filme, Bial escolheu dois registros para justificar por que não gostou do que viu. O primeiro, refere-se à interpretação dos eventos políticos recentes do Brasil. Ele acha que o filme “cria uma relação de causa-consequência entre coisas que não tem a menor relação causal”, que assume subjetivamente como verdadeira uma posição de esquerda – “foram os maus do mercado, essa gente feia, homens brancos que nos machucaram e nos tiraram do poder, porque o PT sempre foi maravilhoso e Lula é incrível” – e que, portanto, a narrativa é uma mentira. Diferentemente do bolsonarismo vulgar, Bial sabe que um documentário “não tem um compromisso com o senso comum ou com a visão estabelecida sobre determinado fato. É a visão do autor. E ele propõe a aqueles que assistem uma experiência: de ver o mundo através dos olhos deste realizador”. Coisa que Petra Costa de fato entrega. Além disso reconhece, que as reações dos espectadores a esta experiência podem ser diferentes e igualmente legítimas: “Eu reagi às gargalhadas, outros podem reagir com raiva, outros podem reagir se sentindo representados”, disse. Não obstante isto, é justamente por essa razão que ele desabona o filme.
No segundo registro das razões do seu desgosto é que Bial entrega o que está por trás do sintoma da fúria contra Democracia em vertigem. Bial acha que Petra Costa está fazendo o mesmo que Kleber Mendonça e o elenco de Aquarius fizeram em 2016 que é, em suas palavras, “expor certas visões que são altamente contestáveis, internacionalmente, como se isso aquilo fosse fato”. Na sua perspectiva, e imagino que o governo Bolsonaro concorde inteiramente com isso, Petra Costa e Kleber Mendonça estão aproveitando uma janela de oportunidade internacional, oferecida pela inclinação de esquerda liberal da mídia internacional e da classe artística americana, para vender, por meio de filmes, entrevistas e manifestações, uma visão divergente dos acontecimentos e da situação política brasileira. Este é o ponto. Para Bial e para meio mundo dos que detestam o filme, não se trata de uma questão de análise fílmica nem de estética, mas de RP e de política de imagem. Como Bial é mais sofisticado, achou isso “meio delicado”, mas a Secom de Bolsonaro, que não conhece sofisticação e moderação, postou no mesmo sentido que “a cineasta Petra Costa assumiu o papel de militante anti-Brasil e está difamando a imagem do país no exterior”.
O fato é que o filme mexe muito dolorosamente com os antipetistas de todas os naipes no Brasil (temeristas, tucanos, coxinhas, impitimistas, bolsonaristas e lavajatistas), uma vez que oferece uma versão alternativa à do antipetismo para, principalmente, os eventos de 2013 para cá. E esta versão, temem, está prevalecendo internacionalmente, em quem vê o filme ou as entrevistas da cineasta, quando parecia ter sido vencida no Brasil e ficado restrita ao nicho lulopetista. Com um agravante: Petra Costa, uma moça de berço rico e plutocrata, estaria traindo a interpretação política dominante da sua classe social de origem. Isso deve doer. Aliás, está doendo muito.
O engraçado é que eu nem gostei da versão dos fatos políticos apresentada em Democracia em vertigem, exatamente porque linear demais, simples demais, excessivamente benevolente com Lula e Dilma. Mas hoje tenho certeza, vendo o enorme sofrimento que provoca nos antipetistas, que alguma coisa muito certa Petra Costa há de ter feito.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)