O medo está lá fora, a angústia aqui dentro
Escritório em uma Pequena Cidade, Edward Hopper,1953 (Reprodução/Wikiarte)
Fomos interpelados por uma nova conjuntura a nos afastar de nossas ocupações habituais do mundo cotidiano e público do trabalho, do lazer, dos afazeres e ficarmos em casa. O que seria um prazer e um conforto para a maioria, no entanto, nos coloca numa sintonia que não é a de proteção e segurança, mas a do medo e da angústia. Isso porque existe uma ameaça lá fora. A ameaça se aproxima dando sinais de que não existe lugar seguro. Se estamos fora, a doença, a dor e a morte podem nos encontrar em qualquer esquina, quer seja na fruta escolhida no mercado, quer nas cestas da farmácia. Se estamos dentro, em casa, o medo se instala como ameaça por vir. Ficamos presos às notícias que acessamos em nossos aparelhos tecnológicos de comunicação, vendo os noticiários da TV e buscando informações. Amigos, familiares e inimigos fazem parte do nosso ser-conjunto que agora precisa acontecer no distanciamento. Nós, mulheres e homens, ocupamos o mundo no modo do ser-com, ou seja, somos pura relação, quer com outros humanos com os quais nos preocupamos, quer com animais e instrumentos dos quais nos ocupamos diariamente. Isso significa que nosso modo de ser no mundo é o modo da convivência.
Para o filósofo alemão Martin Heidegger, um dos modos de ser característicos do homem é o modo do ser-com os outros. Em nossas ocupações ordinárias fazemos parte de algo que extrapola os limites de nossa individualidade para compormos a conjuntura da qual fazemos parte. A ocupação com as coisas do mundo, a preocupação com os outros, pais, mães, filhos e amigos retiram-nos de nossa singularidade nos inscrevendo num lugar público caracterizado pela expressão “a gente”. Nesse sentido, a gente trabalha, cuida dos filhos, vai ao mercado… A gente paga as contas, elege (ou não) um presidente. Na composição da “gente” não há espaço para a individualidade. Nessa dimensão, as perspectivas individuais são anuladas para que a convivência possa acontecer. Este é, para este autor, o sentido de mundo público, ou seja, o espaço composto pelo “nós”, pela “gente”, é o âmbito da impessoalidade.
Estar no mundo dessa forma corresponde à decadência do homem. Entretanto, importante destacar, decadência não significa uma corrupção moral de caráter e tampouco uma queda de status social. A decadência heideggeriana refere-se ao fato de estarmos decaídos no mundo das ocupações, por assim dizer. E, nesse sentido, não há nada antes da decadência, porque sempre somos no mundo. Ora, mundo também não está restrito ao planeta Terra. Mundo é o lugar em direção ao qual nos dirigimos pelo fato dele compor a estrutura que nós somos. Mundo é o espaço aberto para nós e onde podemos realizar nossos modos de ser. Enquanto estamos vivos, nossa existência é caracterizada por possibilidades de ser que podemos realizar ao longo da nossa vida na medida em que elas aparecem para nós. O encontro entre nossa abertura própria, que significa abertura para modos de ser e a emergência dessa possibilidade no mundo em um dado momento histórico correspondem ao que Heidegger entende por destino. A realização de um modo de ser por nós se consuma quando acontece essa mútua abertura. Para isto, é fundamental uma disposição para a escuta atenta aos fenômenos que surgem no horizonte e aos quais podemos corresponder. De que maneira isso pode acontecer? Ora, agora mesmo muitas pessoas estão tendo suas possibilidades de realização de modos de ser sendo interrompidas porque a história, enquanto advento do destino, fez aparecer uma pandemia que interrompeu possibilidades. Contudo, se uma possibilidade é velada é porque outra, ou outras, foi revelada.
Como medida de segurança para preservar a nossa existência, fomos orientados a ficar em casa, reclusos. E de um só golpe fomos arrancados de nossas ocupações e da convivência. Quais os sentimentos poderiam despertar em nós essa nova configuração do real? Angústia e medo certamente chegam ao nosso horizonte de possibilidades afetivas e em algum momento nos encontram. Sempre ouvimos falar que o medo é algo que nos paralisa, que imobiliza. E isso não é apenas uma designação do senso comum. O medo nos aprisiona no presente porque ele se apresenta como algo por vir. Ele é a promessa da ameaça pela qual esperamos sem desejar que chegue. Estamos sempre a olhar para fora para conferir se aquilo que nos ameaça já nos espreita de algum lugar. Aprisionados no presente e imobilizados pela ameaça, nos esquecemos de quem nós mesmos somos, impropriamente ou propriamente, nas ocupações do mundo público ou na retomada de nossa singularidade. O medo remete ao lugar da não-ação, pois o que se teme está sempre no horizonte e vindo ao nosso encontro. Isto, mais que um sentimento, é um modo a partir do qual nos colocamos no mundo e convivemos com os outros. O medo, bem como a angústia, é uma disposição fundamental. Isso significa que, como tal, o nosso modo de compreender e conviver sofre a interferência do modo como nos sentimos. Essa equação, contudo, é uma via de mão dupla. Pois nossa compreensão e convivência também interferem em nossos sentimentos e disposições.
Com alguma diferença do medo, a angústia se apresenta de modo ainda mais avassalador. Quando somos abatidos pela angústia, o mundo não nos ameaça – e isso não porque ele não tenha deveras perigos incalculáveis, mas porque ele não significa nada para nós. Na angústia, o mundo perde seu significado, é estranho. A estranheza é o que caracteriza o mundo do angustiado. E o que fazer num lugar estranho? O curioso da nossa atual realidade é que a angústia se aproximou de nós enquanto estamos no lugar mais conhecido, nosso lar. Isso é importante notar pelo fato de que quando somos deslocados de nossos afazeres, de nosso cotidiano, de nossa alienação diária, nos sentimos como estrangeiros, pois nada nos conforta. Sim, porque a alienação, isto é, nossa ocupação com o mundo público é que conforta e gera a sensação de segurança da nossa existência. A sensação de pertencimento, de acolhimento, de “fazer parte”. A alienação, conceito heideggeriano, nada mais é do que a imersão na homogeneidade do público, do “nós” e, consequentemente, o distanciamento do nosso “eu” mais próprio e singular. Esse autoconhecimento aparente, entretanto, chega à derrocada quando a angústia se apresenta e quando nada mais faz sentido. A angústia põe a nossa identidade à prova porque quando o mundo perde o seu significado, resta-nos a responsabilidade de atribuir-lhe um novo. E o que isso tem a ver com a pandemia?
Quando fomos retirados dos lugares com os quais nos relacionávamos diariamente e nos voltamos para o nosso lar, a nossa rotina expirou. Temos que lidar com o espaço que mais nos identifica, com as pessoas mais íntimas e, contudo, que se apresentam agora como estranhos. Isso porque a lida diária foi alterada, a alienação acabou e somos “convidados” a ressignificar este mundo, este espaço de acolhimento. Para isso, um caminho de volta à nossa singularidade deve ser feito. Este caminho não é fácil, ao contrário, convida a mergulhar no Hades que cultivamos em nós mesmos. Este mundo de sombras – de que também somos feitos – abriga tudo o que de alguma maneira nos ocupamos de esquecer. Temos que encarar o fato de que nossa existência é feita de esquecimentos. Esquecemos que somos abertura, somos possibilidades de sentimentos, de modos de ser, modos de criar, porque a lida cotidiana, a rotina, o conforto alienante nos proporcionou a ilusão de uma vida segura e confortável. Até a ameaça aparecer e nos devolver ao nosso estranho lar. Não é possível adiar a angústia, pois este estranhamento convoca a uma decisão. Nossos dias são feitos de escolhas e a angústia é um cobertor quente numa madrugada de verão. É preciso jogá-lo para fora da cama, chutá-lo com os nossos pés e decidir ficar livre para o sereno acolhedor. Não é fácil, estamos insones, estamos cansados… Mas este momento de reclusão é um momento de ressignificação. Não estamos a ressignificar apenas nossa rotina, com crianças em casa, sem horário para escola, trabalho, ou ir às compras… Estamos ressignificando, sobretudo, a convivência. Estamos há um mês convivendo com os outros de modo completamente diferente do que poderíamos algum dia supor. E, nesse ponto, a tecnologia mostra definitivamente sua face mais importante, a de que ela é o modo de ser da nossa época.
No início do século, começamos a lidar com a tecnologia de modo mais direto no nosso cotidiano. A evolução dos meios de comunicação marca e caracteriza a época tecnológica de uma maneira tão radical porque revela o comportamento e o modo como nossa existência é guiada pela lógica de sua estrutura. A tecnologia é uma face da técnica, ou melhor, ela compõe a lógica da técnica que regula, agora, o nosso modo de convivência. Estamos, de uma vez por todas, deixando de lado a dicotomia que marcou o início deste século, qual seja, virtual versus real, como se fossem dois mundos separados por dimensões distintas em que um não interfere na dinâmica do outro. No entanto, a forma como as pessoas estão se apropriando da rede de comunicações, a internet, e estão existindo aí, deflagra a nossa característica atual, qual seja, a de sermos tecnológicos. E isso não se trata apenas de ter ou não uma rede social, mas de como nossas vidas são reguladas por decisões tomadas a partir das informações compartilhadas em rede por um ou outro grupo de pessoas. E pelo fato de que se não “existirmos” neste ambiente estaremos submetidos aos impactos de ordem existencial no nosso cotidiano. O fato de o auxílio emergencial pago pelo governo a trabalhadores autônomos ou vulneráveis através de cadastro via internet ou aplicativos de celular refletem bem essa característica de que tratamos. De tão inacreditável que é, parece estarmos vivendo uma cena do filme “Eu, Daniel Blake”, de Ken Loach. As bolhas sociais criadas pelos algoritmos gerenciam nosso cotidiano, nos afetam, despertam nossos sentimentos para o bem-estar ou para a inconformidade. As relações são diretas entre o que está na internet e o que eu posso ou não da minha vida objetivamente. Não há barreiras a transpor.
Entretanto, esse modo de convivência nos faz perder o choque, o combate. A sensação é a de que convivemos apenas com quem compartilha das mesmas ideias, do mesmo gosto por cinema, do mesmo entendimento político… Os “currais” do algoritmo encerram a população como combinações simples, como aquelas que aprendemos em matemática do segundo grau. Somos então, encurralados com iguais nesse mundo que não é mais virtual, diluindo nossa individualidade ao rolar para baixo a nossa “timeline”. O aparecimento do mundo sem combate é o perigo que se apresenta nessa configuração. Isto não é, definitivamente, uma apologia à guerra. O combate é a força de ação entre opostos que permite fundar o mundo, estabelecer lugares e abrir espaço. Um combate como o da enxada e a terra, como o do pincel e o quadro, o formão e a madeira… O combate é criativo, dinâmico, uma tensão entre opostos que se singularizam como uma harmonia. “Não compreendem como o divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tensões contrárias, como de arco e lira” (Heráclito, Os pré-socráticos). Como é possível combater entre iguais? Sem dúvida que falseamos com demasiada facilidade a essência do combate, na medida em que confundimos a sua essência com a discórdia e com a desavença, e em que só o conhecemos como distúrbio e destruição. No combate essencial, porém, os combatentes elevam-se um ao outro na auto-afirmação do seu estar-a-ser”, escreve Heidegger no texto “A origem da obra de arte”.
Mais uma vez, a face do poder da técnica manifesta seu enraizamento, pois o nivelamento de opiniões, gosto, modo de vida é algo característico de sua manifestação. A técnica como modo de ser, para o homem, se apresenta no sentido deste nivelamento, alimentado pela sua capacidade de auto formatação e organização que nos antecipa uma maneira específica de viver. E, como dissemos anteriormente, não cabe a nós a decisão de sermos ou não tecnológicos, porque essa é a configuração atual da nossa realidade.
Contudo, há sempre a possibilidade da escuta de um apelo. Um apelo que não é externo, que não vem de fora. Mas um apelo interior, da nossa consciência, que nos convoca ao encontro com nós mesmos. Esse apelo é espontâneo. Não se trata de uma decisão ou de algo que se possa alcançar numa “tomada de consciência”, ou “retomada da lucidez” como se esta estivesse perdida em algum ponto de nossa subjetividade. Importante dizer que esta consciência não se refere a uma situação psicológica, como uma conduta de uma pessoa racional e, por isso, não é algo que se possa alcançar através de uma decisão pessoal. Trata-se de fazer aparecer algo do âmbito da memória, do não esquecimento. O apelo convoca para uma atitude que se dirige a nós mesmos, isto é, refere-se a um chamado ou retorno ao si mesmo de cada um de nós, que são nossas possibilidades de ser, mais especificamente, a nossa abertura para essas possibilidades. Em tempos de isolamento social, em que re-aprendemos a conviver, é difícil pensar uma instância de ação enquanto esperamos pela resolução de uma situação histórica que está para além de nossas decisões. Todavia, a espera em nosso isolamento individual não precisa ser uma espera passiva, imobilizada. Lembremos de Penélope esperando Odisseu, rodeada de pretendentes, presa numa ilha. Mesmo ali, naquela angustiante espera, era possível uma ação. Então ela tecia durante o dia e desfazia o bordado durante a noite, a fim de enganar os possíveis usurpadores da sua terra. Conforta-nos a sentença de Heráclito de Éfeso sobre a importância de saber esperar e o encontro com o inesperado: “Se não esperar o inesperado não se descobrirá, sendo indescobrível e inacessível”.
Estamos angustiados e é aí que temos força de decisão. Escolher a ação e o combate é ao mesmo tempo escolher uma forma de ressignificar o modo como existimos e convivemos. Se somos já tecnológicos, é urgente pensarmos de que maneira estamos nos relacionando com a tecnologia. Quais os desafios impostos por ela? Quais portas se abrem com ela? Como é possível criar com ela, seja ciência, seja arte? O poeta romântico Hölderlin nos incita com seus versos quase proféticos: Ora, onde mora o perigo/ É lá que também cresce/ O que salva”.
O que acontece se olharmos de frente para a angústia? O encontro desse olhar será mais avassalador do que a face da Medusa? Não é tempo de se furtar a esse encontro. O apelo já está feito e só nos resta repensar nosso modo de ser e como seremos quando o recolhimento passar. Seremos estátuas de pedra? Seremos borboletas? Temos, no que diz respeito às escolhas pessoais, a chance de reconfigurar o nosso modo de conviver. Agora! Porque precisamos salvar o que foi colocado no saldo de uma ameaça, isto é, o ser que nós mesmos somos.
Leidiane Coimbra é doutoranda em Filosofia do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Goiás sob a orientação da Professora Doutora Carla Milani Damião.