Linn da Quebrada: O ‘cis-tema’ só valoriza os saberes heterossexuais
Linn da Quebrada: Ficou insustentável pras pessoas e pra mídia, principalmente, fingir que nós não existimos (Divulgação)
É a quebrada em cena: Linn, única. Não pode representar ninguém, senão ela mesma. Discutindo representação e justiça, quer manter a vida de pessoas como ela que, no Brasil, não passam dos 35 anos. Se não pode falar “por”, pode falar “com” – e elas são muitas. A criação audiovisual blasFêmea, a qual ela assina roteiro e direção, é uma defesa do feminino. Linn é autêntica ao falar sobre seu próprio percurso, bastante recente. Sua fala nos leva a pensar na máxima spinoziana: “O que pode um corpo?”
Nesta entrevista, Linn demostra conhecimento ao discorrer sobre os estudos queer e dá uma aula sobre micropolítica, subjetividade, violência. Com seu conhecimento, revela o que todos nós deveríamos ser: máquinas em movimento. “Eu passei a brincar com essa imagem, a brincar com todas as possibilidades daquelas que eu poderia ser, sem ter certeza e fazendo do meu corpo um processo. Um processo inacabado, estando sempre em obras, em obras… não em obras das trevas, mas obras das travas”, descreve, em epifania.
CULT – Você, como ex-Testemunha de Jeová, que se converteu para a arte transviada, disse ter marcas no corpo sobre esse passado e pensei ser algo similar à violência sofrida pelos índios com as missões. Que marcas são essas?
Linn da Quebrada – Qualquer que seja nossa trajetória, o corpo carrega memória. Uma das várias marcas que o meu corpo carrega dessa época está relacionada à culpa, uma construção do sagrado, do profano, do pecado, que acabou demorou pra ser desconstruída. Tem a ver com culpa, pertencimentos, perceber o meu corpo como sendo errado, como se eu tivesse de abrir mão de mim mesma para poder existir, para pertencer àquela comunidade.
Quando nasce a Linn da Quebrada?
Eu já estava fazendo teatro, experimentando o corpo com performance e outras coisas, e a Linn nasce em abril do ano passado (2016). Eu estava investigando, fazendo perguntas e encontro a música como possibilidade de comunicação, ferramenta de acesso a outras pessoas. Na época, eu estava estudando na Escola Livre de Teatro e morando com a Liniker. Percebi a potência que a música possibilitava e começo a escrever coisas, mostrar para as pessoas. Até que surgiu a possibilidade de se apresentar num festival chamado Periferia Trans no Grajaú, em São Paulo. Não parei mais. Ainda que não tivesse domínio de produção musical, eu estava fazendo isso de forma muito impulsiva. Pegava as bases que eu encontrava na internet, até que conheço Luana Hansen, rapper, feminista, da quebrada de São Paulo e produzimos Enviadescer. A Linn da Quebrada nasce da rede de apoio, de união, da parceria com pessoas.
O que é terrorista de gênero?
Eu lancei essa ideia porque eu acho que a violência da sociedade com alguns corpos, corpos como o meu, pretos, transviados, de quebrada, essa violência está posta. É necessário responder também com terror, com agressividade, colocando o meu corpo como arma, como protesto, manifesto, como pólvora diante desse sistema que é violento cotidianamente.
Eu penso, antes de tudo, que o “choque” é mais consequência e não causa do conservadorismo. Como é viver no Brasil e na zona leste nos últimos anos?
Exatamente. Ele é resposta. Essa violência, essa opressão, não só na zona leste, mas em toda a São Paulo, nos territórios por onde eu passei, sempre existiu. Essa hostilidade para corpos como o meu, negros, para corpos travestis, corpos trans, corpos pretos, está dada. O que tem mudado é a formação de redes com pessoas que vivem essa mesma situação ou situações semelhantes, estabelecendo parcerias para nos mantermos vivas. Juntas nós conseguimos nos manter mais fortes, nós conseguimos ocupar outros espaços, conseguimos nos proteger.
Depois do programa Amor & Sexo, da Rede Globo, vocês receberam críticas pela participação. O que aprendeu com o episódio?
Aquela apresentação foi útil e interessante pra ver o alcance da televisão. Eu nunca fiz as coisas para agradar. Eu tenho feito e faço o que eu faço pra salvar minha própria vida, pra me encontrar com outras trans como eu, pra fazer perguntas, não necessariamente pra obter respostas, nem aplausos. Eu já esperava que houvesse uma outra resposta a partir disso. É isso que movimenta o meu trabalho, meu trabalho é trânsito, movimento, ele não é fixo, nem estático, ele é esse diálogo com todos. Eu tenho aprendido a lidar com esse jogo e a entender que posição eu estou nesse tabuleiro, com as pessoas que estão comigo, onde estão posicionadas e quais são as consequências e os efeitos da nossa ação.
É nítido que você traz muito do teatro na sua performance. Como você concebeu sua maneira de estar no palco?
Minha experiência com o teatro realmente contribui bastante, não só para as minhas apresentações, mas a arte, de uma forma geral. Ser artista para mim tem a ver com criar sobre minha própria existência, criar sobre o meu corpo. O tempo, nós estamos atuando, atuação da minha ação, da tua ação, de afetar, de ser afetada, de estar no presente, de gerar movimento. Eu pude praticar isso com o teatro, com a performance, interferindo e fazendo coisas que causassem acontecimentos. Mais que pensar em mudar o mundo, alcançar a paz mundial, o que eu penso é nas relações que estão próximas a mim. Eu penso arte como ação.
É óbvio que a marca do corpo aparece em muitos trabalhos artísticos, mas me parece que essa é a primeira vez que o gênero, o sexo, a identidade estão no centro da questão. Como observa essas genealogias?
O que a gente está fazendo não é necessariamente novo, nós não somos pioneiras. Além de tudo, tem outras pessoas que estão fora da lente midiática e que estão produzindo coisas tão interessantes quanto nós e tão relevantes, senão até mais. Muitas outras pessoas, de uma forma ou de outra, já estavam pondo em xeque essas normas, já estavam implodindo e fazendo um bug no sistema. Ficou insustentável pra grande parte das pessoas e pra mídia, principalmente, fingir que nós não existimos. Na quebrada, o funk é poesia, o rap é poesia e é história. As nossas histórias, geralmente, não são contadas, não são validadas. Nossos corpos não têm peso, não valem a pena. Como nós produzimos o saber preto? Se não tem tanta possibilidade de fazer livros de história, a gente faz isso na música, a gente faz isso nas paredes da cidade, nos pichos, na oralidade, construindo linguagem da nossa forma.
Você conversa com outros artistas como o Liniker, outros coletivos que tratam sobre o gênero na arte? É movimento ou algo mais independente?
Não se trata de um foco centralizado. A gente produz informação, gera movimento, questionamento e produz saber em vários pontos por onde passamos: no salão de beleza, onde estou agora, por exemplo. Eu atuei com o Coletive, em que a gente discutia questões relacionadas a sexualidade e gênero. Discuto na mesa do bar, na balada. O fervo também é espaço de questionamento e de investigação. É como se a gente formasse zonas e territórios autônomos de produção de saber.
Quando você fala de outras formas de poder, seria próximo ao que Preciado diz no Manifesto Contrassexual? Você lê filósofas como Butler? O que é o queer pra você?
Eu leio, li Foucault, Preciado, Butler, leio de tudo, Clarice. Hoje estou mais preguiçosa e tenho encontrado outras fontes de movimento e de saber. Nós temos que pensar o que é queer pra nós. Ele é esse inominável. Se eu tentar falar pra você, vou fixar. O queer é a dúvida, a incerteza, é uma atitude em relação ao próprio corpo, não identidade.
Você acha que é o momento da visibilidade transviada no Brasil como foi para os gays nos anos 90?
Ficou insustentável fingir que nós não existíamos. Éramos representadas de forma jocosa, marginalizada e, de certa forma, desumanizadas. Isso tem se transformado. Somente assim, ocupando esses espaços, de comunicação, de poder e de fala que as coisas podem se transformar. Os veículos de informação e de arte, eles não só imitam a vida, mas eles também limitam a vida e produzem modos e comportamentos de existir. Com isso, há possibilidade de inventarmos novas formas se relacionar, utilizando esses meios.
O corpo da travesti, das pretas, índios, corpos não conformados, serão enfim corpos que importam?
Esses corpos, primeiramente, precisam importar para nós. Por isso acho importante essa formação de rede de apoio emocional, psicológica, econômica e até mesmo sexual. É olhar para nós, umas e outras, com desejo, sem sermos reféns do olhar masculino. O macho está tão bem protegido e situado somente porque os homens admiram outros homens. Ao feminino, independente onde ele esteja, eles só reservam servidão e sexo.
Há uma tradição do rap, do funk ostentação, do ideal da vida do consumo, em que medida isso pode afetar as suas demandas de expressão?
É uma grande questão, sempre um ponto que é preciso estar atenta e observar. Uma pergunta que eu sempre me faço: por que eu faço o que eu faço? Acho justo que nós tenhamos algum tipo de conforto financeiro e econômico. Não seremos nós as mandachuvas no topo do capitalismo. Estamos falando de nós, enquanto pessoas pretas, transviadas, poderem viver e usufruir de outras coisas que até então nos foram negadas. Por isso a gente deve construir essas redes e partilhar.
Quando a gente fala de empoderamento, luta-se para chegar ao centro? É possível resistir ao poder?
Eu não sei responder porque eu não cheguei nesse espaço. Às vezes, essa é uma estratégia do sistema pra fazer com que a gente se afaste dessa possibilidade. É muito justo termos dinheiro, principalmente pra nós enquanto povo, não pra mim, enquanto Linn da Quebrada. A gente não está falando de ter cinco carros na garagem, de ter uma mansão, a gente está falando do direito de ter uma casa própria, ter acesso à saúde pública, escola.
Não há um perigo em tornar-se um modelo, criar uma identidade?
Sempre há esse risco porque nós vivemos sobre o molde da representação. Isso é muito perigoso. Eu não posso representar ninguém, a não ser eu mesma. É preciso que a gente repense essa lógica. O interessante seria, mais que representação, a lógica da participação, na qual cada pessoa apresentasse e representasse o seu próprio corpo. A lógica da representação nos deixa confortáveis em nossos lugares. Causa ilusão de que qualquer uma pode chegar lá e é mentira. Nós sabemos que é mentira.
Você sofre bastante ataque do tribunal das redes sociais e vejo como sabe lidar com isso. Você acredita que criminalizar pode ajudar ou tem que ter outra via de mudança?
Eu não acredito nesse sistema judicial, não acredito na lógica da justiça punitiva. Eu acho que nós temos que repensar o conceito de justiça. Quem continua sendo punido, marginalizado e trancafiados nas cadeias? Nós estamos falando de uma população preta. Eu não acho que criminalizar o tribunal do Facebook seja [solução]. É mais uma vez cortar a possibilidade da gente pensar o que está acontecendo. Não sei exatamente qual a maneira que devemos fazer isso, mas eu acho que devemos pensar essas questões e perceber o que a gente está construindo com essa lógica de justiça punitiva.
A Grada Kilomba disse que o racismo é uma problemática branca. A transfobia é uma problemática cisgênera?
Eu acho [que sim], porque a transfobia, e eu tenho pensado muito sobre a transfobia, ela é como eu sinto a transfobia…você sente a transfobia?
Eu sinto porque sou um cis aliado e vejo quando estou com minhas amigas trans, eu percebo.
Exatamente. Agora as pessoas que sentem a transfobia, sentem de forma tão naturalizada que, às vezes, a gente não consegue nem identificar que o que estamos passando é transfobia. A transfobia é a negação de nós, pessoas trans, enquanto humanas. Ela nos nega o direito à relação. Em todos os espaços, eu sinto que, para que as pessoas se envolvam comigo, para que eu tenha credibilidade ou para que as pessoas me olhem de forma que eu esteja no mesmo lugar que elas, assim como qualquer outro ser humano, eu preciso provar que eu sou merecedora. Por exemplo, eu já estava fazendo tudo isso que eu estou fazendo, falando dessas coisas, mas é preciso ter uma aprovação midiática, uma outorgação de pessoas com legitimidade para que o que eu estava falando tenha validade. E isso só acontece porque esse cis-tema, cis, ele só valoriza os saberes heterossexuais. São essas pessoas que construíram e escreveram os livros de biologia, que disseram o que é história. Essas pessoas que falaram quais são os valores que devem ser cultivados entre nós, que criaram e inventaram o conceito de cultura. E cultura é aquilo que nós cultivamos. Foi cultuado um repúdio e aversão às pessoas trans, um menosprezo pelo feminino.
O seu vídeo blasFêmea é bastante potente nas questões do feminino. Tem planos para outros projetos?
Nunca tive certeza sobre o que eu faria no futuro. Eu comecei a dançar, depois a fazer teatro, depois a fazer performances. Tenho feito e experimentado essa linguagem do audiovisual também. Tenho vontade de escrever um livro. Não tenho certeza do que vou fazer no futuro, tenho certeza do que eu quero fazer agora. Quero lançar meu álbum, estou inclusive com uma campanha de financiamento coletivo para o primeiro [álbum], Pajubá. Depois eu vou entender qual é a resposta do público e das pessoas. É diálogo. Eu espero que o álbum também seja motor e impulsione outras pessoas a fazerem coisas. Depois eu vou me dar um tempo, porque esse sistema é muito cruel, e não dá tempo para que a gente crie vontade. Ele exige que a gente tenha pressa, já quer a promessa de algo novo. Eu preciso sentir a vontade de fazer outra coisa. Eu posso inclusive trabalhar no projeto de outra pessoa que não o meu. Não preciso ser o centro, ocupar os holofotes o tempo todo. Jogo, cena, teatro é composto justamente de você entrar em cena e você saber o momento de sair de cena.
Eu gostaria que você falasse de algum momento de epifania que você tenha vivido.
Uma amiga disse pra um grupo de amigos que estava se descobrindo travesti, e eles falaram: “mas você é tão bonito de menino! Por que você só não se monta de vez em quando, por que quer virar mulher?”. Daí ela falou uma coisa que mudou a minha vida: “você já se olhou no espelho todos os dias e teve a certeza de que o que está sendo refletido não é você?” A partir desse dia, eu passei a olhar no espelho e não ter certeza sobre a imagem que estava construída. Eu passei a brincar com essa imagem, a brincar com todas as possibilidades daquelas que eu poderia ser, sem ter certeza e fazendo do meu corpo um processo. Um processo inacabado, estando sempre em obras, em obras… não em obras das trevas, mas obras das travas.
MARCELO DE TRÓI é jornalista