A lama, nosso espelho

A lama, nosso espelho
Região atingida pelo rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho/MG (Foto: Isac Nóbrega/PR)

 

Lama. Barragem. Lama. Rejeitos. Lama. Rompimento. Lama. Brumadinho. Lama. Vale. Lama. Ruptura. Lama. Córrego do Feijão. Lama. Minas Gerais. Lama. Drummond. Lama. Lama. Lama. Começamos a semana assim. Lama. Tomar banho. Lama. Bom dia. Lama. Voltar ao trabalho. Lama. Escrever esta coluna. Lama. Ler as notícias, as infinitas notícias, as dolorosas notícias. Lama. Falar sobre a lama. Pensar os significados da lama. Lembrar quem sumiu na lama. A forma como a lama de hoje remete a outras lamas que ainda não engolimos, que ainda nos engolem. Lama. Chorar ao pensar nas pessoas, nos bichos, nas plantas comidas pela lama. Em tudo que, sob a lama, ainda tenta sobreviver. Escrever sob tanta lama entrando pelos poros da nossa paciência. Lama. Querer saber por que dói de forma tão extraordinária a notícia desse crime em meio a tantas outras notícias de crimes. Lama. Depois de tantas pancadas idênticas que já tomamos. Lama. Talvez porque essa lama, a forma como ela avançou para o noticiário, sobre centenas de vidas incapazes de reação, reúna todas as nossas mazelas numa massa amorfa e escorra sobre nossas forças, parcas forças, num ritmo de pesadelo. Lama. Nossa ideia de progresso, nossa sede de consumo, nossa forma de vida. Lama. Tudo que ela traz, tudo que ela sepulta, tudo que ela torna eterno. Nossa incapacidade de melhorar depois de Mariana, nosso esquecimento de Mariana, nossa certeza de que um governo de direita tem todas as condições de piorar essa situação, mas que um governo de esquerda, por mais que tente, não conseguirá escapar completamente das tendências neoliberais, muito menos fugir ao capitalismo. Lama. Governar é lidar com a lama. O neoliberalismo é uma lama, o capital também nos prende no ritmo do pesadelo. Lama. Nosso estilo de vida é lama, faz lama, quer lama. É tudo novo no noticiário, são outras vidas, inconfundíveis, sob uma nova lama, mas parece que já a conhecemos, que já choramos essas mesmas mortes e que vamos chorá-las, de novo e de novo, em breve. Lama. As campanhas, as fotos que parecem ser as mesmas de tragédias anteriores, as mesmas verdades, as mesmas mentiras, outras lágrimas idênticas. Lama. Os corpos cobertos de lama, as crianças sujas de lama, os olhos de boi vivo nos mirando detrás da lama. Tudo é lama. A inadequação das palavras para lidar com o que nos engole: não é bem “lama”, não é bem “tragédia”, não é bem “morte”. Lama. Mais lama. A lama corre no dicionário e nos cala. A forma como vai se impondo gosmenta sobre o que era vida, abraçando o que encontra pelo caminho. Lama. Imobilizando tudo que respira com o abraço da morte. Lama. Milhares de notícias, também amorfas, que se esparramam como lama, invadem tudo, detêm nossos dedos, nossa garganta, nossas ideias. Lama. Os números que escorrem da fileira dos desaparecidos para a dos mortos. Lentamente. Lamentavelmente. Gosma. Lama. Olhar para a lama dói porque a lama nos espelha. Lama. É a nós mesmos que vemos na lama. É nosso passado, presente, futuro. Lama. Queríamos que fosse simples: o culpado é esse, a responsabilidade é daquele, o crime foi assim, a solução é aquela. Lama. Não é difícil achar o culpado, o culpado da vez, mas no fundo sabemos que as responsabilidades se espalham como lama pela nossa história, pela forma (disforme) como nos desenvolvemos e, ainda pior, como nos desenvolveremos. Lama. É claro que devemos lutar, cobrar punições, buscar indenizações, fazer tudo que existe dentro do sistema para evitar novos crimes. Lama. Temos que ficar vivos. Lama. Temos que continuar disputando politicamente os rumos de tudo isso. Lama. Mas hoje, ao menos, a sensação é de que, com nossos gritos e gestos, somos parte da lama. Como todos que tentaram correr de uma onda de lama que tem muitas vezes a sua altura. Lama. Como todos que tentaram buscar um lugar a salvo da lama, como todos os que em algum momento acreditaram que a lama não chegaria até eles. Lama. Como todos que tentaram nadar contra ela, que tentaram respirar sob a lama. Não se trata de estar conformado à lama, mas de deformar-se pela força dela. Lama. Saber que seu abraço é inevitável e fatal. A lama impõe sua (falta de) forma. Lama onde havia gente. Lama onde havia rio. Lama onde havia tribo. Lama onde havia bichos. Lama onde havia vida. Lama. Temos que tirar lições da lama. Temos que aprender algo, negar que a lama seja nosso espelho e nosso destino. Lama. Negar que sejamos capazes de produzir algo que nos engole. Lama. Mas hoje nada parece sair dela, de nós, de nossas lágrimas. Tudo é lama.

TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.

(2) Comentários

  1. E a ironia é que o presidente do Brasil nos poucos minutos que falou em Davos foi para dizer que as políticas ambientalistas sufocam o país. O desastre em Brumadinho diz tudo de quem é que sufoca o país. Os bilhões da Vale não pagam nunca as vidas sufocadas na Lama.

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