Brasil e Alemanha: extrema-direita, big data e fake news
(Arte Revista Cult)
Na semana passada, estive em Berlim e Munique compondo uma delegação de cinco brasileiros convidados pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha. O propósito da missão segundo os alemães era convidar especialistas brasileiros no campo da transformação digital do governo e da democracia para conhecer as mais importantes instituições do país atuantes nesta área, de órgãos do governo a ONGs, de instituições universitárias a fundações públicas independentes. Mas também para discutir e trocar experiências com as pessoas à frente dessas instituições, comparando o estado das inovações e da conjuntura política e governamental dos dois países. No centro da discussão, conforme programado, estava o problema de como mídias sociais, big data e fake news impactam a sociedade, a política e o governo, consideradas naturalmente as diferenças entre o parlamentarismo alemão e o presidencialismo brasileiro.
O que posso compartilhar com vocês das coisas mais interessantes que apareceram na comparação entre os dois países?
Primeiro, também lá na Alemanha estão todos preocupados e impressionados com o crescimento da extrema direita ultraconservadora mundo afora desde 2016. À parte países onde isso resultou em surpreendentes vitórias eleitorais (como os casos de Trump nos EUA, do Brexit no Reino Unido, do consórcio Liga Norte e Movimento 5 estrelas, na Itália, e de Bolsonaro no Brasil), há crescimento de uma nova extrema direita, populista, digital e particularmente agressiva em toda a parte. Inclusive na Alemanha, com o inquietante crescimento do novo partido-movimento AfD (Alternativa para a Alemanha), que tem todas as características das novas forças sombrias da política da Europa: é de extrema direita, é populista e é xenófobo. Lá, como cá, todos se perguntam o que tem acontecido no mundo para que conservadores (que é uma posição no espectro moral) e direitistas (posição no espectro ideológico) tenham convergido em novos movimentos sociais ou movimentos que se institucionalizam com partidos e, com isso, se radicalizem nessa confluência. Assim como se quer entender com cresceram rapidamente a partir de uma retórica populista, quer dizer, um discurso dominado por um sentimento de ojeriza à política e às suas instituições, tomado por grande raiva e desconfiança contra todas as elites sociais, inclusive as elites intelectuais e científicas, e orientado pela convicção identitária de que apenas “nós”, a massa identificada com a Nação e seus valores, inclusive religiosos, e o nosso líder carismático, é que podemos recolocar o país nos trilhos e no caminho justo.
Segundo, há quase uma ânsia generalizada para se tentar entender o papel das mídias digitais no surgimento e na mobilização eleitoral dos partidos-movimentos da extrema direita ultraconservadora e populista. A intuição geral é que, sim, esses novos movimentos são digitais na medida em que têm uma estratégia digital, resultam das comunidades que ou são formadas em ambientes digitais ou encontram online a multidão de seguidores e aderentes de que precisam, e, por fim, são alimentadas digitalmente por informações, frequentemente falsas ou parciais, para o reforço de pontos de vista e a construção de convicções extremadas. A nova extrema direita de sucesso eleitoral é digital, sobre isto não há dúvida. O que ainda não se compreende completamente é: por que populistas de direita é que têm se revelado mais exitosos no uso de recursos digitais do que os seus concorrentes no centro e na esquerda? Por que plataformas de mídias digitais, que se reputava usadas pela parte mais educada e esclarecida da sociedade, se tornaram um espaço público tão promissor para ideias que contrastam tão frontalmente com valores liberais, iluministas e humanistas, como o ódio ao imigrante, o nacionalismo mais grotesco, a intolerância religiosa, como no caso da Europa, ou o ódio à homossexualidade e ao feminismo, a satanização das posições progressistas em geral, o ataque ao meio ambiente, à universidade e à Ciência, e o desprezo pelo pluralismo, no caso brasileiro?
Por fim, apareceu um problema justamente em uma diferença identificada entre os dois países. A extrema direita populista cresceu nos no Brasil e na Alemanha, seguindo nisso uma tendência mundial cujo pico foi alcançado em 2016. Em uma avaliação preliminar, acreditamos que a adesão às agendas ultraconservadoras e extremistas de direita chega, no máximo, a 20% da população votante, nos dois países. A diferença fundamental é que o Brasil, como os Estados Unidos e outros, faz parte do conjunto de países em que a maioria democrática, liberal e moderada sucumbiu eleitoralmente à minoria extremista, enquanto na Alemanha o avanço dos extremistas de direita nem de longe ameaça a hegemonia do partido de centro que governa o país. Na Alemanha, a maioria moderada e de centro governa e os extremistas estão, por enquanto, confinados às poucas cadeiras parlamentares que conseguem controlar; no Brasil, a minoria extremista é que governa, os brasileiros desertaram do centro e, neste momento, não há público para posições moderadas. Por quê?
Os alemães argumentam que a própria experiência histórica recente (o nazismo e o Holocausto), e o modo como ela é social e legalmente tratada – negar o Holocausto é crime na Alemanha, assim como defender o nazismo – são freios sociais muito importantes para evitar uma adesão de massa ao populismo de direita. No Brasil, não há freios legais para o revisionismo histórico da ditadura ou até mesmo para o elogio da escravidão e outras aberrações da nossa história. O que abre um grande espaço para a propagação das ideias mais extremistas entre nós.
O segundo argumento é que há ainda uma presença forte do Estado em regiões mais pobres do país, por meio de políticas de Bem-Estar Social remanescentes de uma socialdemocracia que já foi pujante na Alemanha, mas ainda é consiste. Em suma, à Alemanha falta o ingrediente da crise econômica e da pobreza e miséria, que são um combustível abundante no Brasil, principalmente desde o fim de 2014.
Em terceiro lugar, por mais que a Alemanha padeça do mesmo movimento mundial de erosão da confiança do público em instituições da política e do jornalismo, o nível de confiança nessas instituições é ainda várias vezes superior ao que se verifica no Brasil nos últimos cinco anos. O alemão médio confia em jornais e telejornais tradicionais e de reputação para formar a sua opinião política e acredita em remédios institucionais para os problemas políticos. Isso impede uma adesão de massa a movimentos que antagonizam a política, como no Brasil, na Itália e nos Estados Unidos. E lê e confia em jornais de qualidade, o que faz com que as fake news tenham um papel muito menos importante na decisão eleitoral e na alimentação do ódio político do que têm entre nós.
Além disso, naturalmente há fatores conjunturais especificamente brasileiros que explicam por que minorias extremistas governam aqui e não lá – os escândalos de corrupção nos governos do PT, o terremoto do impeachment e a terra arrasada da operação Lava Jato, antipolítica e antipetista – mas os elementos comparativos são, sim, elementos muito importantes na explicação do abismo em que nos precipitamos.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)