Uma mente em chamas

Uma mente em chamas
No cérebro de Wittgenstein encontraram-se os dois hemisférios da filosofia no século 19 – positivismo e idealismo (Reprodução)

 

O encanto exercido pelo filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein se deu em duas frentes de aparência oposta, a da reflexão sobre a lógica e os fundamentos da linguagem e a das ações concretas, que prolongaram e complementaram seu pensamento ético, estético e existencial. O par mínimo formado pelos verbos “dizer” (sagen) e “mostrar” (zeigen), respectivamente atributos da linguagem e da gestualidade, assombraram sua obra e sua vida, ambos tão cheios de reviravoltas romanescas e mudanças repentinas de rumo. Wittgenstein sonhava em conciliar o idealismo transcendental schopenhauriano, típico da cultura germânica, com a filosofia da linguagem, de origem britânica.  Assim, desejou a fusão, talvez impossível, da Viena natal que o formou no espírito do fin de siècle com a Cambridge que lhe deu abrigo intelectual e o projetou para o mundo.

Seu modelo inicial de genialidade foram o compositor Ludwig van Beethoven e o filósofo Otto Weininger, autor do tratado Sexo e caráter. Segundo Ray Monk (em Wittgenstein, o dever do gênio), Wittgenstein o lera ainda na juventude. Tanto um como outro pregaram a entrega total do indivíduo aos imperativos da genialidade. Para Weininger, caso não fosse possível atingir o ideal, a solução seria o suicídio. Ele se matou com um tiro, em outubro de 1903,  aos 23 anos, no interior da casa onde havia morrido Beethoven, na Schwarzpanierstrasse. A missão do gênio é se dedicar inteiramente ao espírito. Esta foi a lição mais cara a Wittgenstein, entre muitas que extraiu da música, da filosofia, das artes e da literatura.

Ludwig Josef Johann Wittgenstein nasceu em 1889 na casa de verão de sua família, em Neuwaldegg, situada em meio aos bosques de Viena.  A casa, reformada em 1917 por Paul Engelmann, foi demolida em 1984 para dar lugar a um conjunto habitacional. Os Wittgensteins possuíam duas outras residências, uma mansão no centro da capital, na Alleegasse, outra no campo, conhecida como Hochreit. Ludwig era o mais novo dos oito filhos do industrial metalúrgico Karl Wittgenstein e de Leopoldine Kamus. A família era católica (apesar da origem judia) e se notabilizava pelo amor e apoio às artes e pelos superdotes musicais. O pai tocava violino e a mãe se revelou uma pianista de alta qualidade. Um irmão, Paul, tornou-se concertista internacional, mesmo tendo perdido a mão direita na I Guerra. O “Palais Wittgenstein”, como era conhecida a casa da Alleegasse, fez fama como um dos salões mais concorridos de Viena. Ali, em 1892, por exemplo, Johannes Brahms fizera estrear seu Quinteto para clarinete. Visitaram a casa Clara Schumann, Gustav Mahler, Arnold Schoenberg, o maestro Bruno Walter e o pintor Gustav Klimt, que fez, em 1905, o retrato da irmã de Ludwig, Margarete. O famoso monumento a Beethoven (1902), de Max Klinger, foi exibido ali, numa das manifestações inaugurais da Secessão, um dos primeiros movimentos das vanguardas que dominariam a Europa na virada do século.

Apesar do empenho modernizador de seu pai e da irmã Hermine, quinze anos mais velha, e que o apresentara ao jornal Die Fackel (A Tocha, publicado entre 1899 e 1904), de Kraus, e à psicanálise de Freud, e a inclinação para a arquitetura e design modernos, o gosto artístico de Ludwig tendia para o conservadorismo. Beethoven, Schubert e Brahms eram seus compositores favoritos. Diante de execuções modernas, costumava comentar, com repugnância: “Já começo a ouvir os sons da máquina.” Em literatura, teve oportunidade de dar dinheiro ao poeta expressionista Georg Trakl, cuja obra não conseguia entender, e a Rainer Maria Rilke, de cuja obra gostava apenas da primeira fase. Seus autores favoritos eram Dickens, Tolstói e Dostoiévski. Durante a I Guerra, levara consigo o romance Irmãos Karamazov, e descobrira O Evangelho Resumido, de Tolstói, obra que, segundo o filósofo, salvara-lhe a vida. No fim dela, duvidava da genialidade de Shakespeare por não aprovar seus símiles e imagens poéticas. Considerava-o inferior a Beethoven – este, sim, para ele, um “coração generoso”.

Para a família, Ludwig tinha vocação para engenheiro. Cursou a escola técnica em Linz e em Berlim e ingressou, em 1908, na escola de Engenharia da Universidade de Manchester, Inglaterra. Ali, pesquisou aeronáutica, construiu pipas e balões experimentais e projetou sistemas de propulsão. Em 1911, decidiu se dedicar à lógica e se aproximou de Bertrand Russell em Cambridge. Daí para a metafísica e o projeto de sua obra filosófica foi um salto simples.

 

No cérebro de Wittgenstein
encontraram-se os dois
hemisférios do planeta
filosófico do século 19 –
positivismo e idealismo –
que ele tentaria ultrapassar
por meio de uma filosofia
aforística fragmentária e
radical, próxima da nudez
da poesia modernista.

 

 

Se é que houve, a superação da aporia que contrapunha realidade, ideia, lógica e linguagem se deu por meio de um corpo de pensamentos aparentemente estapafúrdio, que só ganha sentido se for solicitada a presença de uma entidade há muito fora de moda: a do gênio romântico.

Nenhuma outra argamassa epistemológica é capaz de explicar por que Wittgenstein até hoje é um modelo imitado e venerado nos círculos mais infernais da cultura, da filosofia, da matemática à literatura e as artes, passando pelo misticismo pós-moderno e pela nova ética tecnológica. Tornou-se até produto de “mercado” como personagem de romances policiais e filmes de suspense.

Wittgenstein ajudou a edificar os destroços que formaram a  religião (ou a filosofia) em torno de seu nome. Sua obra é feita de fragmentos; seu cânone, apenas agora está sendo definido com o encerramento das edições críticas de sua produção oceânica e indeterminada.

Se publicações valessem para o currículo de glórias do pensador, ele  passaria à história como um obscuro estudante jubilado da Universidade de Cambridge. Publicou muito pouco em vida. A única resenha de sua autoria de que se tem notícia foi publicada no início do ano de 1913 no Cambridge Review. Trata-se de um comentário do ensaio The science of logic, do filósofo P. Coffey. O texto, negativo, ataca a simplicidade das idéias aristotélicas do autor. Wittgenstein tinha 24 anos e já impressionava Russell. Este dizia, para quem quisesse ouvir, que aquele jovem estava destinado a dar “o próximo grande passo em filosofia”.

O passo demorou a ser dado porque, entre a profecia de Russell e a publicação do único livro de filosofia em vida de seu aluno, o Tractatus logico-philosoficus, passaram-se oito anos, uma guerra mundial na qual Wittgenstein lutou como soldado no fronte oriental, ficou prisioneiro dos soldados italianos e decidiu virar professor primário numa escola das montanhas da província austríaca da Estíria. Esboçado ainda em Cambridge, escrito durante a I Guerra Mundial e concluído em julho de 1918 no vilarejo de Hallein, nos arredores de Salzburgo, onde morava seu irmão, Paul, o Tractatus só veio a ser publicado na sua primeira versão em 1921, nos Annalen der Naturphilisophie, periódico alemão do editor Wilhelm Ostwald, sob o título Logisch-Philosophische Abhandlung (Tratado lógico-filosófico). Mas estava povoado de erros. O livro sairia em tradução para o inglês (pelo filósofo analítico C.K. Ogden, segundo as correções do autor) no ano seguinte, com o título definitivo de Tractatus logico-philosophicus, sugerido pelo amigo e lógico G.E. Moore e prefácio de Russell.

O impacto do livro foi enorme e colaborou na formação do chamado Círculo de Viena, liderado por Moritz Schlick, que impulsionou a voga do neopositivismo, logo adotado também em Cambridge. Mesmo assim, Wittgenstein demorou quatro anos para ver estampada outra obra sua: o Dicionário de ortografia para escolas primárias (Wörterbuch für volksschulen), como fruto de sua experiência nas escolas de Trattenbach e Otterthal, publicado em 1925. Produziria até morrer conferências e anotações, eventualmente publicadas, como “Some Remarks on Logical Form” no Proceedings of the Aristotelian Society (1929) .

Em 1930, ele voltou a Cambridge, para lecionar filosofia analítica. Proferiu ali conferências, copiadas com fanatismo por seus discípulos, em número cada vez maior. Nessa época, Wittgenstein se tornava astro na Inglaterra. Magro,de estatura mediana (1,75 metro) e com aparência juvenil, comportava-se de forma mais agressiva e irrequieta que seus alunos. Por essa época, desabrochou seu homossexualismo. O grande amor de sua vida foi um aluno de Cambridge, Ben Richards, por quem se apaixonou em 1946, um ano depois de concluir as Investigações filosóficas (Philosophische Untersuchungen). Richards, porém, não possuía envergadura intelectual para dar conta de sua obra.

Somente em 1953, dois anos depois da morte de Wittgenstein, seriam publicadas as Investigações (pela Basil Blackwell, de Oxford), editadas em inglês e alemão pelos herdeiros do espólio literário do autor, Elisabeth Anscombe e Rush Rhees, alunos melhores dotados que Richards.

Assim, o Tractatus e as Investigações compõem o eixo canônico da obra do filósofo: uma acabada em vida e nem por isso menos enigmática na sua construção da lógica como proposição simples entre as balizas da contradição e da tautologia; outra, póstuma, trata dos jogos de linguagem e “editada” pelos herdeiros. Há os neopositivistas, devotados à reflexão sobre lógica, que seguem o velho testamento (Tractatus), o chamado “primeiro Wittgenstein”. Há os que, afeitos à digressão, prefiram o novo  (Investigações), mesmo que este tenha sido maquiado pela posteridade imediata; o “segundo Wittgenstein”.

Sob a égide dos alunos inventariantes, sucederam-se outras obras: Remarks on the foundation of mathematics (Observações sobre a fundação da matemática, 1956), Notes on Logic (Notas sobre lógica, 1957), The blue and brown books (Os livros azul e marrom, 1958), Philosophische Grammatik (Gramática filosófica, 1969), Remarks on colour (Observações sobre cor, 1977) , Notebooks 1914-1916 (Cadernos de notas, 1979) e, a partir de 1993, os fragmentos dos anos 20 e 30 reunidos por seu aluno Michael Nedo, professor do Trinity College e curador dos Wittgenstein Archives em Cambridge e editor da Edição Vienense (Wiener Ausgabe), ainda em elaboração.

O trabalho, financiado pela editora Springer de Viena, atingiu onze imensos volumes, em formato grande, de 600 páginas cada, mas o plano é chegar a quinze. O material no qual Nedo se baseia foi escrito entre 1929 e 1933, manuscritos e textos datilografados, num total de 30 mil páginas. Os nove tomos iniciais compreendem as Philosophische Bemerkungen, Philosophische Betrachtungen e a Philosophische Grammatik (Considerações, Observações e Gramática filosóficas). O décimo primeiro volume contém a primeira parte do  The big typescript, em 19 capítulos e 140 seções, considerado o texto mais acabado entre os inacabados do autor. Escrito entre 1930 e 1934, ele resume as idéias anteriores, como a Gramática filosófica. No momento, estão sendo produzidos pela editora Springer os volumes 12 e 13, que concluem o Big typescript.

Em junho último, saiu na inglaterra a série Nachlass – The Bergen electronic edition (Espólio – A edição eletrônica de Bergen), com originais de Wittgenstein em CD-ROM copiados em Bergen (onde há um Wittgenstein Archive), Cambridge, Tel-Aviv, Viena e Nova York. São anotações e diários escritos nos anos 30 e 40, a maior parte em alemão (apesar de fluente em inglês, ele nunca abandonou a língua natal). Destaca-se na edição o primeiro manuscrito completo das Investigações filosóficas, concuído em 1938. Este serviu para a publicação crítica do livro, em 2001, por Joachim Schulte – considerada a mais fiel das edições da obra.

O fato é que até hoje o imenso volume de manuscritos e originais datilografados do filósofo continua sendo inacessível para a maioria dos estudiosos, mesmo os que leem alemão. O que cai nas mãos dos pesquisadores vira ouro: e Wittgenstein I ou II se torna instrumento para análise da política, da ética, da religião e até da estética. Seu pensamento é um celeiro de onde se arrancam frases que justificam quase tudo o que seja desconstrução.

 

O certo desse oceano textual
é que o filósofo produziu de
forma febril e inspirada, ao
sabor das circunstâncias,
um livro único, imenso e
fragmentado, mapeando
as suas dúvidas, hesitações
e triunfos eventuais.

 

 

Construiu uma espécie de ruína. Nesse sentido paradoxal, seu trabalho remete aos protagonistas da Jung Wien, ou Viena fin de siècle, que engendrou a psicanálise de Freud, a arquitetura funcional e geométrica de Adolf Loos e Paul Engelmann, o dodecafonismo de Arnold Schoenberg e Anton Webern e a pintura secessionista de Gustav Klimt, Egon Schiele e Oskar Kokoschka. Na expressão de outra personagem dessa Viena ebuliente em plena desagregação do Império Austro-Húngaro, o crítico Karl Kraus, a capital austríaca se firmava como “o laboratório de pesquisa para a destruição do mundo”. Ou, pelo menos, de um mundo que ruía com a I Guerra Mundial, o dos grandes sistemas filosóficos e estéticos. Do laboratório nasceriam a arte e o pensamento modernos.

Ao correr de uma vida intelectual agitada que durou mais ou menos 40 anos, ele sempre comparou seus pensamentos a uma chama, que incendiava projetos ou se apagava repentinamente, para seu desespero. As imagens de “idéias” e “fogo” são recorrentes nos seus cadernos de anotações, diários e correspondência. Em março de 1913, escreveu para Russell: “Sempre que tento pensar sobre lógica, minhas idéias ficam tão vagas que nada chega a se cristalizar. O que sinto é a maldição de todos aqueles que têm só meio-talento; é como um homem que nos leva por um corredor escuro com uma vela e justamente quando estamos no meio do corredor a vela se apaga e ficamos sozinhos.” Em 1915, de licença do exército em Viena, reclamou a um amigo de que não conseguia enxergar nada mais do que coisas prosaicas e sem vida. “É como se uma chama houvesse se apagado e eu precisasse aguardar até que volte a arder de novo”. No final da vida, reclamava do torpor intelectual em que se encontrava, por causa do tratamento do câncer intestinal que o mataria em 1951, em Cambridge, situação bem diversa da de vinte anos atrás, quando seu cérebro “ardia em chamas”. A inspiração lhe parecia um dom divino e a solidão, um estado necessário para formular suas reflexões.

A forma dessa expressão torturada deveria ser o aforismo, o fragmento, enumerado numa ordem de aparência rígida, mas que não encerra uma continuidade precisa. Wittgenstein como que corrobora uma das leis básicas do Romantismo alemão, expressa nos Fragmente de Friedrich Schlegel (Athenäum, publicado em Berlim em 1798, obra que inaugura o Romantismo alemão): “Muitas obras dos antigos se tornaram fragmentos. Muitas obras dos novos já surgem assim.”

Nada mais romântico e metafísico que a chama do pensamento cristalizada em um pedaço inacabado de proposição. A perfeição do argumento se converte em mero aceno, esboço a ser completado pelo leitor. O que consta escrito é um fragmento de algo que o precede e se encontra certamente na vida, nesse universo do inefável – segundo Wittgenstein, do indescritível.

Enigmas percorrem sua existência e pensamentos. Às vezes ele soa como um individualista extremado, solipsista à maneira de Schopenhauer. Ora se parece com seus discípulos neopositivistas. Ele próprio tentou explicar, num texto de 1916, quando estava no front em Cracóvia e encontrou tempo de reler Nietzsche e Schopenhauer: “Este é o caminho que percorri: o idealismo separa os homens do mundo como se fossem únicos, o solipsismo separa apenas a mim; no final, vejo eu, eu também faço parte do resto do mundo, de modo que de um lado nada resta, e, de outro, único, o mundo. Assim, o idealismo, se concebido com rigor, leva ao realismo.”

O que chama atenção no pensador analítico são menos os resultados da busca pela essência da proposição lógica ou da elaboração aos pedaços da teoria dos jogos de linguagem do que o gesto da busca em si, cujo referente se encontra num sujeito que rechaçava, já no Tractatus, o que chamava de “moderna visão de mundo”, fundada, segundo ele, “na ilusão de que as chamadas leis naturais sejam as explicações dos fenômenos naturais”, deixando aparentar que “está tudo explicado”. Que doutrina filosófica poderia surgir contemporaneamente tamanha e brutal negação da ciência natural? Daí o misticismo wittgensteiniano gozar hoje de alta reputação. Trata-se de um esoterismo que lembra o ideal romântico de refutação do mundo mecânico e tecnológico. O pensador ressurge no mármore negro e revoltoso do Beethoven de Klinger.

É difícil compreender o pensamento de Wittgenstein separado das idéias do indivíduo que as produziu e do ambiente conturbado em que este se formou. Um cimenta o outro; um subverte o outro. O fogo de suas idéias parece não encontrar limites interpretativos por parte da posteridade.

Luís Antônio Giron é jornalista e escritor, autor de Ensaios de ponto (Editora 34), Mário Reis: O fino do samba e Minoridade crítica – Folhetinistas diletantes nos jornais da Corte (1826-1861).


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(1) Comentário

  1. Como achei muito marcante o seu escrito, gostaria de entender melhor o pensamento de wittgenstein e portanto, gostaria de ler o livro do weininger.
    Sabe se existe tradução no Brasil para o livro Sexo e Caráter de Otto Weininger?

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