Winnie’s adventures in Underland

Winnie’s adventures in Underland

Cena de “Oh os belos dias” (Foto: Jean-Charles Mandou)

Welington Andrade

Ah! les beaux jours de bonheur indicible
Où nous joignions nos bouches! – C’est possible.

Colloque sentimental, Paul Verlaine.

Happy days are here again,
The skies above are clear again
So, let us sing a song of cheer again,
Happy times, happy nights, happy days are here again.

Happy days are here again, Milton Ager-Jack Yellen.

Em Exercícios de admiração: ensaios e perfis, o filósofo romeno Emile M. Cioran (1911-1995) apresenta-nos um retrato literário tão conciso quanto perspicaz do escritor e dramaturgo irlandês cujos personagens parecem não viver no tempo e, sim, paralelamente a ele. No perfil “Beckett: alguns encontros”, escrito em 1976, Cioran procura compreender o homem “apartado” que prosseguia um “trabalho implacável e sem fim”, cultivando a solidão e uma “obstinação subterrânea”. Admirador do modo como Beckett tratava da vacuidade da existência (a amizade bissexta dos dois foi tributária da afinidade de pensamento e de estilo que havia entre eles), Cioran flagra o autor de Esperando Godot em uma atitude fundamental: a da recusa em se pronunciar a respeito dos livros e das peças que escreveu. “Se perguntarmos a ele sobre uma peça, não se deterá no conteúdo, na significação, mas na interpretação, reproduzindo seus mínimos detalhes minuto por minuto, diria mesmo segundo por segundo. Tão cedo não esquecerei o brilho com que me explicou as exigências a que deve satisfazer a atriz que deseja representar Not I, onde uma voz ofegante domina sozinha o espaço e o substitui. Que brilho em seus olhos quando via aquela boca ínfima e, no entanto, invasora, onipresente! Parecia que assistia à última metamorfose, à suprema derrocada da Pítia!”.

Eis aí uma chave preciosa para adentrarmos o fascinante mundo beckettiano: evitando repousar nossas convicções de indivíduos bem-pensantes sobre um mecanismo lógico-discursivo disposto a produzir uma reconfortante significação. A famosa tese de Adorno sobre Beckett – a de que nas peças do autor significação alguma é oferecida, nem mesmo a do absurdo – é correlata à ideia que Heiner Müller irá desenvolver mais tarde sobre a impossibilidade da decodificação de sentido no teatro. Para Müller, o texto é “um material como a luz, o cenário ou uma cadeira”. Assim, diretores e atores não deveriam se ocupar em demasia com ele, “tentando dizer outra vez o que o texto já disse claramente”. “Devemos aprender que o texto pode cuidar de si mesmo”, conclui o dramaturgo alemão, ecoando, inversamente, a falaciosa proposição poética que a Duquesa carrolliana faz a Alice: “Take care of the sense, and the sounds will take care of themselves”.

A montagem de Oh os belos dias em cartaz no Teatro do Sesc Santana conta com essa qualidade essencial: tanto o diretor Rubens Rusche como a atriz Sandra Dani deixam o primoroso texto de Beckett cuidar dele mesmo – o que, ao contrário de parecer uma tarefa simples, constitui o resultado de um intenso e meticuloso trabalho de intuição e sensibilidade. A firme direção que Rusche imprime ao espetáculo não deixa dúvida: Oh os belos dias não é uma peça sobre alguma coisa. Antes, ela configura a própria coisa em si. A radical depuração do elemento central do gênero dramático – a trama – proposta por Beckett converte o enredo da peça em uma experiência basilar de fruição do tempo. Ao ser atraído para o centro de gravidade de Oh os belos dias, o público é convidado a partilhar radicalmente daquela experiência – situação que levou o crítico húngaro Martin Esslin à ideia de que a nova forma teatral concebida por Beckett (com a qual as peças de Ionesco e Adamov mantêm alguns pontos de contato – todos os três projetos dramatúrgicos nomeados polemicamente por Esslin de “teatro do absurdo”) propõe a substituição da relação lógica de causa e consequência pela relação analógica que o mundo das imagens mostradas em cena pode suscitar: “A pergunta mais importante não é ‘o que vai acontecer depois’ e sim ‘o que está acontecendo agora?’”.

É natural que, diante de uma imagem tão perturbadora – uma mulher está presa à terra, mais propriamente enterrada nela, e apega-se a pequenos rituais do cotidiano a fim de matar o tempo –, o espectador reaja convencionalmente, procurando atribuir sentido ao que vê, ouve e sente. Entretanto, ele não deve se ater às referências simbólicas engenhosamente construídas por Beckett como se elas integrassem um sistema de significação externo à própria peça, uma vez que nenhuma delas jamais abandona seu estatuto central de “significante”. Beckett “explode por dentro a arte que uma abordagem engajada subjuga de fora, e, portanto, apenas na aparência”, adverte Adorno.

Simbolicamente, a terra, principio passivo, de aspecto feminino, opõe-se ao céu, princípio ativo, de aspecto masculino. Substância universal, primeira matéria a ser separada das águas, a terra simboliza a função maternal, que dá e rouba a vida. Assim, na arte e na literatura, a terra fértil costuma ser comparada à figura da mulher. Explorando toda a complexidade da psicogeografia dos símbolos, Paul Diel afirma que a terra simboliza “a arena dos conflitos da consciência no ser humano”. Mas Beckett atribui à colina de terra crestada que aprisiona Winnie e a impede de ser livre, de voar, uma qualidade eminentemente teatral. O monte de terra que engole a protagonista (concebido, aqui, pela cenografia de Ulisses Cohn como um artefato espalhafatoso, resultante de uma cópia realista malsucedida, conforme queria o autor) a leva à condição de uma criatura interrompida, cuja imobilidade física (“Pense nela [em Winnie] como um pássaro com óleo em suas penas”, aconselhou o dramaturgo à atriz Martha Fehsenfeld”) procura ser compensada pela necessidade contínua que ela tem de falar, embora seu discurso também seja, por sua vez, constantemente interrompido.

Podemos achar irônico o jogo fonético e semântico estabelecido entre os nome Winnie (win, vencer) e Willie (will, ter vontade de fazer algo), como também podemos considerar um golpe de refinamento a quantidade de referências literárias de que Beckett lança mão na peça. Elas parecem estar ali, subterrâneas também, formando, paralelamente, uma outra camada de discurso. Mas, como elementos paródicos (em grego, a palavra paródia significa “canto paralelo”), tais referências talvez não tenham outra finalidade que não seja a de reforçar aquela condição de “criatura interrompida” vivida pela protagonista. “As alusões literárias de Winnie são truncadas, parciais ou desfiguradas”, lembra Fábio de Souza Andrade, grande especialista de Beckett no Brasil, responsável pela excelente edição e tradução em português de Dias felizes para a Cosac Naify “… os fragmentos que Winnie evoca ao longo da peça (explicitamente ou não) são um forte indício de que sua memória está degringolando. De Shakespeare e Milton ela desce a autores cada vez menores, recortados a partir de sua perspectiva restrita…”, completa o ensaísta.

Por acumular uma sólida experiência no trato com o repertório do autor, Rubens Rusche enfrenta de forma discreta, quase asceticamente, cada um dos obstáculos que o texto de Oh os belos dias lhe propõe. O diretor não deseja “competir” com o dramaturgo, querendo soar inventivo. Tampouco, “serve” a ele, anulando-se diante de escritor tão emblemático. A concepção que Rusche tem da obra contempla muito sensivelmente a execução de uma partitura repleta de possibilidades expressivas. (Beckett identificava em suas peças uma forma de movimento própria da música). O diretor confere à montagem um ritmo preciso, instaurando em cena aquela atmosfera de ritual de que falava o próprio Beckett, calcada no uso sistemático das repetições dos gestos e das palavras de Winnie – que a atriz reproduz com a necessária precisão. Sublinhando as palavras que falham e as coisas que escasseiam, a montagem de Rusche evidencia a todo momento o mistério que cerca Winnie e acaba por atingir o público. Entretanto, o clima enigmático conduzido em ostinato por Rusche não tem outra origem senão a materialidade da representação, que convida cada espectador a querer ressignifcar essa experiência livremente, uma vez que são infinitas suas possibilidades de recepção.

Em entrevista especialmente publicada no dossiê que a revista Cult dedicou a Beckett em dezembro de 2009, Rubens Rusche afirmava: “É importante que o diretor, ao escolher o ator/atriz, já tenha certa intuição do personagem e da peça, talvez até mesmo do estilo de representação. É preciso, então, que ele trabalhe arduamente sobre o físico do ator, sobre sua história pessoal, sobre seu ser mais íntimo, no sentido de extrair organicamente dele a interpretação de sua partitura, de modo que essa interpretação não venha a se perder em inúteis e gratuitos formalismos”. Pois bem, a escolha da intérprete que Rusche convidou para encarnar Winnie não poderia ser mais adequada. A veterana atriz gaúcha Sandra Dani compreendeu muitíssimo bem a personagem, não contrariando sua inefabilidade, sabendo com acerto dotá-la das necessárias mudanças de tons e de tempos. Parece mesmo muito bom que o público paulistano não esteja diante de uma atriz conhecida dele, cuja persona artística poderia relegar a personagem à mera condição de coadjuvante de seu próprio ego. Assim é que a interpretação de Sandra Dani acaba por se relevar ilustre. A atriz se entrega de corpo e alma aos jogos a que se lança a personagem. Varia as sonoridades, os ritmos e os silêncios, executa com precisão gestos e falas (ora mais, ora menos monótonas) e encarna, por fim, o humor e o pathos daquela mulher tristemente cômica, cindida não somente pela terra, mas também pelo acender e apagar de sorrisos. O gracioso movimento dos braços de Sandra Dani a leva a executar muitíssimo bem o jogo de Winnie com os objetos de sua bolsa. Tanto quanto a veemente presença em cena da atriz lembra a cada espectador que a personagem está ali também para jogar com ele o jogo do tempo.

Vale registrar o trabalho do ator Luiz Paulo Vasconcellos, que transforma um papel bastante difícil em uma performance exemplar: o tartamudeante Willie que ele constrói em cena é dotado de um temperamento todo especial, o de um coadjuvante masculino cuja órbita risível em torno de Winnie está assentada em atitudes físicas e em inflexões de voz produzidas entre o formal e o desimportante. Igualmente dignos de nota são a iluminação de Wagner Freire, austera e precisa, assegurando a transição dos diferentes micro-momentos do espetáculo, e os figurinos de Leopoldo Pacheco, cuja beleza expressiva intermedeia muito bem a essencialidade dos gestos de ambos os atores, servindo-lhes de fato como uma segunda pele.

Se conseguir renunciar tanto ao peso excessivo das leituras ontológicas (para o crítico francês George Steiner as criaturas de Beckett faziam parte de um fascinante ou monstruoso guignol metafísico) quanto à má vontade habitual dirigida às experiências artísticas e culturais não pautadas pelo viés do “espetaculoso” e do “sensacional” (categorias que cada vez mais vêm enchendo os olhos e esvaziando a sensibilidade e a inteligência dos “usuários” da indústria cultural), o espectador de Oh os belos dias certamente usufruirá de uma experiência plural. Primeiramente, sabendo porque o modernismo de Beckett não envelheceu. Depois, confirmando o enorme talento de um diretor que deve muito ao autor irlandês (segundo ele mesmo afirma no programa da peça), mas com quem Beckett também tem uma enorme dívida no Brasil, pelo fato de ele cuidar tão bem de sua obra entre nós. Em seguida, descobrindo uma senhora atriz (imputemos o fracasso do trocadilho à própria temática beckettiana), que chega assim tão despretensiosamente a São Paulo e nos oferece uma belíssima atuação. Por fim, aprendendo a mover as peças no tabuleiro metalinguístico que as formas artísticas mais inquietas armam diante de nós: uma mulher parcialmente enterrada pode representar meramente uma atriz presa ao palco. Sabendo que está sendo observada, ela é obrigada a atuar não só porque o som estridente de uma campainha lembra-a disso a todo momento, mas também pelo fato de um refletor de iluminação mantê-la constantemente sob seu foco. Winnie repete tudo meticulosamente, como atores o fazem a cada espetáculo, e acaba por deixar inconclusas as tarefas que se impõe. Nunca é demais lembrar que no teatro o final marca o começo de uma nova repetição.

Se a imagem do monte de terra em que Winnie está incrustada pode aludir indiretamente a uma questão filosófica ancestral (“Um grão de milho não é um monte. Acrescente um grão e ainda não há um monte. Quando um monte começa a existir?”), igualmente poderá conduzir o espectador à mesma dúvida semiótica que toma de assalto o casca-grossa senhor Shower – ou Cooker: “Enterrada até as tetas nesta terra estrumada… O que será que ela pensa que isso significa?”. Renunciando a agradar tanto aos pré-socráticos quanto aos pós-integrados, a presente montagem de Oh os belos dias não deixa dúvida: enterrada do jeito que está no palco do Teatro do Sesc Santana, Winnie não faz o menor sentido. Bravo, Rubens, por esse seu velho estilo!

Oh os belos dias
Onde: SESC SantanaAv. Luiz Dumont Villares, 579 – Jd. São Paulo
Quando: até 18 de maio – sextas e sábados, às 21h, domingos, às 18h
Quanto: R$5 a R$25
Info.: http://www.sescsp.org.br/

welingtonandrade@revistacult.com.br

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